sábado, março 18, 2006

Por que somos também contra a propriedade intelectual

Enquanto a publicação aberta é uma característica bastante conhecida do site do Centro de Mídia Independente, a ideia de copyleft, de subversão dos direitos autorais, é ainda muito pouco conhecida e discutida. No rodapé da página principal do site, ao invés da tradicional nota lembrando os direitos autorais, lemos o seguinte: “Centro de Mídia Independente. É autorizada a reprodução, na rede ou em outra parte, para uso não comercial, desde que citada a fonte.” Ao invés de restringir a divulgação, a nota de “copyleft” (um trocadilho com “copyright”), permite e mesmo estimula a distribuição posterior da informação que o site veicula. Essa política de “copyleft” faz parte de um movimento amplo de oposição aos direitos de propriedade intelectual.Desde que a legislação foi primeiramente elaborada, ela sempre foi justificada pelo estímulo material que o criador receberia. Mas será que o estímulo material é o único e o melhor estímulo que se pode dar para o desenvolvimento do saber, da cultura e da tecnologia? Será que antes do advento das leis de propriedade intelectual as pessoas não eram estimuladas a escrever livros e canções e a inventar dispositivos tecnológicos? Boa parte do desenvolvimento artístico parece dizer que não. Pintores importantes como Rembrandt, Van Gogh e Gauguin morreram na pobreza e sem reconhecimento, assim como músicos como Mozart e Schubert e um escritor como Kafka, embora nunca tenha sido verdadeiramente pobre, não chegou a ser reconhecido em vida. Será que a falta de perspectiva de recompensa material em algum momento impediu que eles se dedicassem à música, à pintura ou à literatura? Será que não tinham outro tipo de motivação – a expectativa do reconhecimento póstumo, o simples amor pela sua arte? A questão da propriedade intelectual, quando pensada fora da imagem tradicional da balança que opõe estímulo material ao criador e interesse social em usufruir a obra ou invenção, leva a muitas outras ordens de consideração. Será que os artistas devem ser remunerados pela criação das obras? Poderiam eles contribuir para esse bem colectivo e anónimo que é a cultura humana sem ter usufruído e incorporado antes a rica e generosa contribuição dos outros artistas, contemporâneos e do passado? E se achamos que é preciso um estímulo material além da vaidade pessoal e da vontade de contribuir para o bem comum, não seria possível então desenvolver um sistema público de recompensa para os inventores?
Na verdade, questões como essas, ou seja, se se deve ou não recompensar materialmente a criação e se a melhor forma de fazê-lo é através da exploração comercial privada são questões às quais não cabem respostas teóricas. São os movimentos sociais que estão buscando alternativas concretas à propriedade intelectual que deverão oferecer as respostas – e, de facto, já estão a fazer.Desde que obras e patentes passaram a ser registradas, os direitos sobre elas passaram a ser violados. Uma parte dessa violação dos direitos é, sem dúvida, mero crime. No entanto, à parte a violação marginal e clandestina dos direitos de propriedade intelectual, sempre houve um fenómeno diferente de desobediência civil das leis que instauravam esses direitos. A desobediência civil, como se sabe, é muito diferente do crime.






O crime é uma violação de lei clandestina, feita às escondidas e com o entendimento de que a lei que se viola é legítima. A desobediência civil, por sua vez, é uma violação pública das leis motivada por seu carácter ilegítimo. A desobediência civil se faz abertamente e ela não reconhece que a lei que está sendo infringida seja justa. Desde que os direitos de propriedade intelectual foram instaurados, houve uma resistência aberta à sua aplicação no sector privado e comunitário. A enorme dificuldade de fiscalização fez com que essa desobediência civil tivesse um carácter passivo, que não se enquadrava na contestação das leis de propriedade intelectual, mas simplesmente as ignorava. As pessoas sabiam que os direitos existiam e deviam ser respeitados e simplesmente passavam por cima deles porque achavam que eram absurdos. Evidentemente não estou a referir-me à pirataria comercial que era, sem exagero, apenas crime. A indústria pirata reconhecia a legislação vigente e fugia dela de forma clandestina, sem contestá-la. Aliás, todo o industrial pirata não podia aspirar a coisa maior do que transformar sua indústria pirata numa indústria legal e passar a utilizar assim os direitos autorais a seu favor.Mas coisa muito diferente eram os usuários que reproduziam a obra para fins não comerciais, "para a sua instrução mútua e a melhoria das condições", como dizia Jefferson. Quando aparelhos de reprodução se popularizaram, as pessoas automaticamente começaram a reproduzir livros, canções, fotos e vídeos, para si e para os seus amigos, sem pagar os devidos direitos, assim como, antes, já encenavam peças nas escolas e nos bairros e cantavam e tocavam canções para os amigos e para a comunidade também sem pagar os direitos. Por mais que a campanha dita cívica promovida pela indústria e pelo governo lembrasse a todos a importância de pagar os direitos, as pessoas desconfiavam, frequentemente de forma intuitiva, que aquele pagamento não fazia sentido pois quem apenas usufruía desse bem colectivo que é a cultura humana não podia estar a roubar nada a ninguém. Como Benjamin Franklin escreveu na sua autobiografia, na produção da cultura e do saber e da tecnologia, nada pode ser feito sem que se tenha antes aprendido com a imensa comunidade dos outros produtores contemporâneos e dos que nos precederam. E da mesma forma que usufruímos e aprendemos gratuitamente com todos eles, de maneira tão ampla que sequer podemos nomeá-los individualmente, devemos disponibilizar a nossa contribuição para a formação das novas gerações.Embora nem a indústria, nem o governo tenham conseguido coibir de forma eficiente o uso privado e comunitário das obras sem o pagamento dos direitos autorais correspondentes, fizeram o possível e o impossível para obstruir a difusão de tecnologias de reprodução doméstica.
O interesse crescente das grandes empresas na manutenção e ampliação dos direitos autorais deve-se à forma específica como eles foram estabelecidos. Quando a propriedade intelectual foi concebida no final do século XVIII, sua finalidade era conceder ao autor um monopólio sobre a exploração comercial da obra, de forma que quem quisesse ler o livro que tinha escrito ou escutar a música que tinha composto, teria que pagar-lhe. Ele poderia exigir esse pagamento porque tinha o direito exclusivo de comercializar a obra, sem concorrência.







Mas é óbvio que os autores não podiam fazer isso. A não ser que o autor de um livro se tornasse também editor, ele não poderia directamente explorar a obra. Ele teria que recorrer a um editor, a um capitalista, que iria explorar a obra por ele e tirar parte dos rendimentos para si próprio, como compensação pelo investimento. Dessa forma, o autor cedia ao capitalista o direito de exploração exclusiva, sem concorrência, que tinha recebido do estado e dividia com ele os dividendos da criação. Mas, nessa relação, o elo fraco era o autor. A distribuição de livros, discos e outros produtos sempre foi relativamente cara e havia muitos autores para poucas empresas interessadas em lançá-los. Isso fez com que as empresas tivessem um poder muito grande de determinar as condições dos contratos e conseguissem assim uma grande participação nos dividendos advindos da exploração comercial da obra. Era evidente que se o objectivo era estimular o autor e não beneficiar as grandes empresas, não havia porque o monopólio de exploração comercial ser cedido à empresa. A melhor forma de beneficiar o autor teria sido ele manter para si o monopólio de exploração e ceder para diferentes empresas concorrentes o direito não exclusivo de publicação da obra. Assim, com a concorrência entre as empresas, a obra seria barateada e melhor difundida e os dividendos se concentrariam com os autores que poderiam disputar licenças de exploração mais vantajosas. Com o monopólio de exploração comercial oferecido pelos direitos autorais sendo cedido integralmente para as empresas, não eram mais os autores que se beneficiavam primariamente, mas as grandes empresas da indústria cultural.À medida que o poder da indústria cutural crescia, também cresciam as campanhas contra as violações dos direitos autorais. Essa pressão fez, de certa forma, com que aquela desobediência civil passiva que aparecia quando as pessoas simplesmente ignoravam as leis, se tornasse mais consciente e, assim, movimentos de oposição declarada aos direitos autorais começassem a surgir. Enquanto pequenos grupos de hackers radicais começaram campanhas de violação deliberada dos direitos autorais, distribuindo música, vídeos, textos e programas de graça na internet sob o lema "a informação quer ser livre", grandes movimentos espontâneos menos conscientes e menos radicais tomavam conta de um público mais amplo. Entre esses movimentos, o de maior impacto, sem dúvida, foi a formação da comunidade Napster.Trata-se de um sistema ponto a ponto, em que usuários podem ter acesso a arquivos em pastas compartilhadas em computadores de outros usuários através de links recolhidos por um servidor. Os arquivos de música ficavam no computador de cada usuário e o servidor do Napster apenas disponibilizava os links de acesso a eles. O Napster trazia uma concepção inteligente que descentralizava o armazenamento dos arquivos. Com isso, criava uma situação legal ambígua. Não se tratava mais de um grande servidor distribuindo música, mas de uma rede de usuários trocando generosamente arquivos de música entre si. De certa forma, nada distinguia a troca de arquivos na rede Napster do hábito que as pessoas sempre tiveram de gravar fitas cassetes para os amigos. A diferença era que isso era feito numa rede de cinco milhões de usuários – e foi com base nessa grande dimensão que a associação das gravadoras americanas, sustentou um processo contra o Napster.






Um dos factos mais relevantes do fenómeno Napster foi a constituição da comunidade Napster. Na ausência de um servidor que armazenasse os arquivos, o funcionamento da rede Napster exigia uma comunidade de usuários que compartilhasse suas músicas de maneira generosa. Se todos estivessem na rede apenas para descarregar músicas e se recusassem a disponibilizar os seus próprios arquivos, a rede fracassaria. Mas o notável é que, a despeito de não ganharem nada e, pelo contrário, consumirem uma fatia às vezes considerável da sua banda de acesso, milhões de pessoas disponibilizaram músicas para outras pessoas que não conheciam, formando uma verdadeira comunidade virtual. O fenômeno Napster deflagrou grandes discussões públicas sobre os direitos autorais entre 1999 e 2001, quando o Napster perdeu o processo na justiça. Por um lado, essa discussão evidenciou o carácter de desobediência civil que envolvia a utilização do programa. Embora o estatuto legal do Napster estivesse em julgamento, na grande imprensa e na opinião pública formada por ela, a mensagem uníssona era a das grandes gravadoras e dos grandes artistas que condenavam o Napster e acusavam-no de roubo, pirataria e de tirar o sustento de milhares de artistas esforçados. Apesar dessa massiva campanha de propaganda dos órgãos de imprensa, muitos dos quais ligados a grupos empresariais que também controlam grandes gravadoras, as pessoas não paravam de aderir à rede Napster numa demonstração aberta de que não consideravam legítima uma lei que impedia a livre troca dos bens culturais.A discussão sobre o Napster, por outro lado, gerou um debate sobre a remuneração dos artistas e sobre as dificuldades de se compatibilizar a livre troca de informações com o sustento de uma classe de criadores profissionais remunerados. Não apenas as grandes gravadoras se opuseram ao Napster, mas uma série de artistas estabelecidos, argumentaram que a livre troca de música sem o pagamento dos direitos autorais retirava a sua fonte de sustento. E embora esse debate tenha sido muito desequilibrado porque sempre estava ausente um verdadeiro opositor dos direitos autorais ele teve o mérito de pôr em evidência o objectivo primário da instituição dos direitos de autor.Enquanto em alguns fóruns alternativos a possibilidade de um mundo sem direitos autorais era discutida um tanto teoricamente, um movimento iniciado por programadores começava a mostrar a viabilidade efectiva desse projecto. Não se tratava de pensar como poderia ser uma sociedade sem direitos autorais, mas de começar a pô-la em prática.O significado do desenvolvimento e principalmente da difusão do sistema operacional GNU/ Linux não é apenas o de romper o monopólio do sistema Windows, da Microsoft, mas, principalmente, de fazê-lo por meio de um empreendimento em grande medida colectivo e voluntário. Tirando alguns poucos funcionários que recebiam salários relativamente baixos da Fundação para o Software Livre, a maioria dos técnicos do GNU/Linux eram programadores ligados a empresas e universidades que davam a sua contribuição voluntariamente sem esperar qualquer outro tipo de retorno que não o reconhecimento público por um trabalho bem feito. Como Benjamin Franklin, esses programadores, entre os quais encontravam-se alguns dos melhores na sua área, doavam o seu trabalho de forma "gratuita e generosa" esperando contribuir para "o bem comum" e "a melhoria das condições". E apenas com esse trabalho voluntário e generoso que nos últimos anos passou a ser bem explorado por grandes empresas conseguiu montar-se





uma comunidade estimada hoje em mais de 15 milhões de usuários. O sucesso da difusão desse sistema operacional e de centenas de outros programas livres deveu-se ao facto de que esses programas garantiam a permanência das suas características livres.
Quando se iniciou o movimento pelo sofware livre, concebeu-se um tipo de licença de direitos autorais que assegurava a manutenção das liberdades em versões reproduzidas e melhoradas dos programas. A esse tipo de licença deu-se o nome de "copyleft" (esquerdo autoral), num trocadilho com "copyright" (direito autoral). Ao invés de simplesmente abrir mão dos direitos autorais, o que permitiria que empresas se apropriassem de um programa livre, modificando-o e redistribuindo-o de forma não livre, pensou-se num mecanismo de constrangimento que assegurasse a manutenção da liberdade que o programador havia dado ao programa. O mecanismo pensado era reafirmar os direitos autorais abrindo mão da exclusividade de distribuição e alteração desde que o uso subsequente não restringisse aquelas liberdades. Em outras palavras, a pessoa que recebia um programa livre, recebia esse programa com a condição de que se o copiasse ou o aprimorasse, mantivesse as características livres que tinha recebido: o direito de rodar livremente, de modificar livremente e de copiar livremente. Com isso, os programas livres, frutos de esforços colectivos voluntários, ganhavam uma licença que garantia que mesmo que as empresas quisessem usá-los e distribuí-los, o fizessem de forma a manter as suas liberdades iniciais. O sucesso do sistema operacional GNU/Linux e do movimento do software livre trouxe um exemplo concreto da possibilidade de se constituir um sistema de criação onde a remuneração não fosse a forma principal de estímulo e onde o interesse colectivo de usufruir com liberdade a cultura humana fosse mais importante do que a exploração comercial das ideias. Claro que a objecção de que os autores ficariam desprovidos de sustento e teriam que sujar as mãos com trabalhos não puramente criativos permaneceu. Mas o exemplo de Richard Stallman, que iniciou o movimento pelo sofware livre, que trocou o papel de programador que cedo ou tarde seria forçado a submeter-se às empresas pelo papel de conferencista e assessor técnico independente ou ainda, o exemplo de George Gershwin, que antes de garantir o sustento de sua família por três gerações, ganhou a vida executando, como pianista e regente, as suas próprias composições, mostram que uma vida sem direitos autorais é possível. Hoje o movimento pelo copyleft, pela livre circulação da cultura e do saber ampliou-se muito além do universo dos programadores. O conceito de copyleft é aplicado na produção literária, científica, artística e jornalística. Há ainda muito trabalho de divulgação e esclarecimento a ser feito e é preciso que discutamos politicamente os prós e os contras dos diferentes tipos de licença. Esse trabalho não é o trabalho de imaginar um mundo possível, mas de passar a construí-lo, tout de suite.

http://resistir.info/varios/copyleft.html

Sem comentários: