Se o socialismo de Estado consistiu na tentativa de uma sociedade pós-capitalista, então o seu colapso faz de toda a crítica elementar do capitalismo uma empreitada inútil, que melhor seria deixar de lado. Essa consequência foi retirada pela maior parte da inteligência da antiga Alemanha Oriental, bem como pela maioria dos críticos sociais de esquerda do Ocidente, pelo Partido Verde etc. Muitos deles afirmam exercer ainda a crítica do capitalismo, se bem que apenas no horizonte do próprio modo de produção capitalista. O problema não foi elaborado historicamente; o que se fez foi engolir sapos e vender isso como "realismo": sem preços "justos", rentabilidade etc., não há saída. A capitulação incondicional ante os cegos critérios normativos e sistémicos do mercado rebaixa forçosamente a crítica social a uma liga inócua de paliativos: um pouquinho de paz, um pouquinho de compatibilidade social. Se entretanto o socialismo de Estado foi essencialmente um projecto de "modernização tardia" no leste e no sul do planeta, em cuja origem estão os problemas do subdesenvolvimento capitalista, então ele era absolutamente incapaz de formar uma sociedade pós-capitalista. Antes, sob tais pressupostos ele reflectia o problema dos retardatários históricos no moderno sistema produtor de mercadorias, que, na melhor das hipóteses, ainda eram incapazes de transpor esse horizonte. Lenine, aliás, sabia disso, na medida que isso podia ser percebido à época. Só mais tarde o problema foi ideologizado em proveito da auto-afirmação.
Qual seria então a verdadeira superação do capitalismo, agora não mais determinada pelo problema dos retardatários históricos, mas antes pelo super desenvolvimento da própria economia de mercado mundial? Seria logicamente a transformação do sistema produtor de mercadorias num modo superior de sociabilização, sem as formas fetichistas da mercadoria e do dinheiro. Esta era a concepção fundamental de Marx, pela qual ele é agora qualificado de simplório – precisamente pelos antigos representantes do "aparato ideológico" do marxismo. Assim é que, hoje, tanto a esquerda quanto a burguesia eterniza ideologicamente um modo de vida e produção que, como totalização da forma-mercadoria, constitui na verdade somente um período ínfimo da história humana. A consciência moderna do "ganhar dinheiro" é pura e simplesmente estilizada como forma eterna da consciência humana. O fato de a superação (Aufhebung) de dinheiro e mercadoria parecer um despropósito e, por assim, uma quimera, além do fato de os desdenhadores de tal ideia poderem sentir-se em tácita concordância com a consciência das massas, revela apenas o parti pris vinculado a um sistema de coordenadas históricas comum que parece confundir-se com a identidade própria e no qual todos nós fomos sociabilizados (os intelectuais em forma teórica, inclusive). Uma crítica que toque este núcleo só não seria efectivamente inútil sob uma condição: a sociedade mercantil total, por meio de sua própria sistematicidade cega, estar imersa numa crise irrevogável. É justamente a esquerda que não quer nem ver, nem ouvir, nem falar sobre isso (os célebres gestos dos três macacos); para tanto, evoca-se a confiança cega na pretensa "capacidade eterna de adaptação" do capitalismo. Mas e se a realidade estiver apoiada na ignorância da grande coalizão de "realistas"? Quando sobrevier a grande crise, tanto pior para o centro de produção mercantil da "sociedade do trabalho". Dai-nos "trabalho"! exigem as pessoas; e a classe política, os sindicatos etc. digladiam-se apenas sobre como fazer para criar "empregos" e como a "posição da Alemanha" há de ser mantida. A referência, porém, não é a simples actividade produtiva e vital das pessoas, mas, tacitamente, a transformação do "trabalho abstracto" (Marx) da produção de mercadorias em dinheiro, isto é, em salário e lucro. Há 150 anos, ninguém consideraria isso como normal. Não só por causa dos baixos salários e das terríveis condições de trabalho, mas porque se afigurava um tremendo desplante ingressar às 7 ou 8 em ponto num edifício feio de dar medo e lá "trabalhar" até à noite, num contexto que não se define por objectivos autónomos e comuns, mas por um plano estatal e/ou pelas leis anónimas do mercado. Mesmo dos servos e dos escravos não se exigia todo o tempo de vida para actividades alheias, mas só uma parte. O "trabalho", no sentido actual (determinado por outrem em vista do dinheiro), seria tido como uma espécie de prostituição infamante.
Pois bem, habituamo-nos a ser prostitutas da produção mercantil e a oferecer diariamente nosso corpo ao trabalho abstracto. A contrapartida histórica foi uma ampliação das necessidades: veículos, turismo, máquinas de lavar, televisores, secretárias electrónicas. No novo desemprego em massa, porém, cada vez mais nos é negada a própria auto prostituição, e, naturalmente, também as gratificações de consumo (nova pobreza). Tanto a esquerda quanto os burgueses esperam que se trate, mais uma vez, de uma paralisação momentânea no processo de valorização do dinheiro, que logo um novo "modelo de acumulação" acenará com um sorriso. Isso haverá de ocorrer, em suma, por meio de uma elevação da produtividade. E através do que a produção será elevada? Por meio da racionalização. Ora, os empregos não são precisamente eliminados pela racionalização? Algo parece em dissonância com o resto.
Desde os primeiros grandes surtos de racionalização nas fábricas de automóveis de Henry Ford no princípio deste século, o sector mais racionalizado em sua execução foi a própria actividade laboral humana (taylorismo, esteira rolante etc.). Só assim os bens produzidos no mercado foram barateados a ponto de poderem ingressar no consumo de massas. A incipiente produção "fordista" para as massas não precisava de menos assalariados, antes pelo contrário; as economias de tempo nas secções de trabalho específicas foram em muito ultrapassadas pela ampliação dos mercados. Até meados do século XX, impôs-se dessa maneira a "racionalidade empresarial" da economia de mercado (antes apenas um segmento social) como forma de reprodução total. Se até o momento o trabalho assalariado e a economia de mercado ainda estavam impregnados de outras actividades reprodutivas (domésticas, comunais etc.) não fundadas – pelo menos em princípio – no dinheiro, a lógica do nexo "trabalho"-dinheiro-consumo tomou-se, por sua vez, a normalidade sem excepção para as massas. Desde o início dos anos 80, entretanto, a concorrência do mercado mundial deu à luz um novo tipo de racionalização, cujo suporte técnico-científico é a micro electrónica. Agora, a força de trabalho humana não é mais racionalizada dentro de sua actividade; antes, os "empregos" são crescentemente substituídos por robôs, sistemas guiados e pela precisão da informática (lean production). Na exacta inversão do antigo processo, a racionalização começa a exceder de maneira constante a ampliação (sempre ecologicamente precária) dos mercados. Por isso estamos às voltas com um desemprego de massas estrutural e perene, e não cíclico ou temporário. De ciclo a ciclo, cresce o "desemprego de base", sem que se abra nenhuma perspectiva de solução.
Esse processo de crise não é somente social, mas também fruto da própria acumulação do capital, pois o dinheiro nada mais "é" que a "forma de exposição" (Darstellungsform) de trabalho morto, e o capital nada mais "é" que o movimento de valorização do dinheiro capitalizado. Com a eliminação do "trabalho" pela racionalização, o capital sorve a sua própria substância, de maneira semelhante à nova doença surgida na Inglaterra de bactérias assassinas, que sorvem o tecido celular. Na superfície do mercado, os empresários se dão conta disso ao perceberem que os robôs e as estruturas em rede não compram absolutamente nada. A contradição absurda de um sistema que logra produzir cada vez mais bens com menos "trabalho" – embora a apropriação destes bens esteja ligada exclusivamente ao poder de compra (dinheiro) e, portanto, à capacidade de consumo "rentável" do "trabalho" – ingressa em seu estágio maduro. O ponto crítico não será alcançado só quando o último trabalhador produtivo em termos de capital apagar a luz, mas obviamente muito antes, na medida que o enorme estoque de capital não pode por muito tempo ser suficientemente valorizado através da diminuição auto produzida da "substância" do capital. A transformação do desemprego cíclico em estrutural corresponde à transformação da "super acumulação" cíclica do capital em super acumulação estrutural. Com isso, o sistema alcança seu limite histórico absoluto.
Esse claro limite do sistema pôde ser contornado no mercado mundial (sobretudo pelos países capitalistas mais fortes) através da "exportação de crises". A partir do início dos anos 80, a crise foi parcialmente descarregada sobre os retardatários históricos de capital fraco, por meio da concorrência global (preços de importação-exportação). O socialismo de Estado e grande parte do Terceiro Mundo foram vítimas de um colapso económico, já que não puderam mais acompanhar o ritmo de produtividade do capital intensivo, embora, de acordo com sua própria forma, tivessem de medir-se pelos critérios do sistema produtor de mercadorias. Ora, com o empobrecimento e o isolamento forçado de boa parte da economia mundial pautada pela forma-mercadoria, o processo de crise estende-se agora, numa espiral cada vez mais estreita, aos demais concorrentes.
Não importa que haja neste quadro esta ou aquela constelação de ganhador ou perdedor: a crise global da estrutura mantém-se a mesma. Ao fim, a acumulação de capital teve de reduzir-se substancialmente, por assim dizer, ao tamanho de uma tampinha de cerveja. O resultado é claro: por toda parte, inclusive nos próprios centros ocidentais, uma parcela vertiginosamente crescente da população se vê excluída de toda reprodução humanamente digna – suas vidas são sacrificadas a critérios feministas da produção de mercadorias. Isso não em virtude da maldade subjectiva, mas porque se trata de um desvario universal do sistema. As reacções a este franco enlouquecimento da economia de mercado são de pânico generalizado. Para salvaguardar a receita monetária, forçam-se até mesmo "trabalhos" absurdos e nocivos à população; os impostos ecológicos são minorados, a destruição do mundo ganha velocidade. A esquerda e o Partido Verde, entregues aos critérios da economia de mercado, têm de rezar para que a acumulação do capital possa arrancar novamente.
Quando a dúvida reina no campo económico, ecoa impreterivelmente o choramingo pelo Estado e pela "configuração política" da catástrofe da economia. Mas como se trata de uma crise do sistema, ela atinge tanto o mercado de trabalho e de mercadorias quanto o Estado, na condição de instância central secundária da produção de mercadorias totalizada. O Estado não possui, aliás, nenhum meio próprio de acção, pois tem de expor seu "poder" e suas medidas sociais e ecológicas por intermédio do mercado, na figura do dinheiro. Endividamento excessivo e emissão de moeda sem lastro substancial só levam à hiper inflação (hoje, "situação normal" na maioria dos países). Com isso, porém, a esquerda aferrada ao mercado se mete de vez numa camisa de onze varas. De fato, ela jamais aprendeu algo diverso do dirigismo estatal ou da distribuição de renda. O fim da cantilena tem de ser necessariamente a colaboração infamante com a administração anti-social da pobreza em nome do terror do financiamento, a cujo sortilégio as lideranças "realistas" do Partido Verde parecem agora entregues. Quando não for mais possível deixar de notar o pistão fundido da máquina de cunhagem, então virá à luz uma problemática há muito soterrada, que zomba de todo "realismo" de matriz mercado lógica: os homens têm de assumir o controle de suas próprias vidas, controle este perdido para o mercado e o Estado. Com efeito, nos últimos 200 anos a dependência pessoal ao senhor feudal só foi substituída pela burocracia estatal nas várias ditaduras devotadas à modernização. A ideologia (neo)liberal, por seu turno, prometeu a autonomia humana através do mercado. Hoje está demonstrado que a ditadura -sem sujeito -do dinheiro exclui com tanto mais razão a autonomia e aborta as iniciativas individuais, já que as submete à lei da rentabilidade. A maioria da humanidade actual tornou-se infelizmente pouco rentável. As imposições do mercado e a burocracia estatal são duas faces da mesma moeda. A saída para tal miséria pode ser formulada apenas em termos gerais: é imprescindível o desenvolvimento de actividades autónomas, comuns à sociedade, e formas de reprodução para além do mercado e do Estado. Para isso são necessárias tentativas práticas e uma nova moldura teórica interdisciplinar, no objectivo de transformar a crise histórica do sistema produtor de mercadorias numa superação (Aufhebung) positiva. Quem não procura, não acha. A transformação do sistema não estará à disposição como uma oferta barata de supermercado.
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Mesmo que a pressão da crise já faça ruir as vigas da sociedade mercantil, quem tenciona levar uma vida para além do salário e do sucesso no mercado parece postar-se desamparado ante um muro negro. Essa transgressão do tabu é quitada com malícia e no tom grave da concordância com os critérios dominantes do sistema pela destrambelhada consciência de clã dos filofetichistas -consciência esta que se limita, de bom grado, à rentável produção-bolha de sabão ("nova política industrial", "regulação democrática", "apresentar programas de conjuntura" ou mesmo "perceber os interesses alemães"). Em sua vertente séria, ela não passa da representação militante de alguma clientela e algum lobby no campo de batalha da luta cega e encarniçada da concorrência: egoísmo de ramo e empresarial, patriotismo regional e selvajaria social pululam como chagas na epiderme da sociedade. E o lema sem rodeios é: ó Deus, fazei-nos mais ricos e lançai os outros por terra!
4. A desvinculação entre tempo e dinheiro
Seria obviamente descabido, na actual situação de "estaca zero" em que se acha o discurso teórico e político, anunciar a descoberta da pedra filosofal. É preciso antes solucionar o problema de uma desvinculação progressiva do nexo determinado pela trindade trabalho-dinheiro-consumo de mercadorias. A "liberação do tempo" há muito é palavra de ordem, sem que seus protagonistas (Oskar Negt, por exemplo) jamais tenham sido capazes de desligar-se do "trabalho" sob a forma-mercadoria e do dinheiro. A praxis social, nesse meio tempo, ensejou o debate sobre a redução da jornada de trabalho sem compensação salarial, isto é, a jornada parcial. Com isso, o sistema não é salvo, pois a racionalização não é barrada e a diminuição da renda perpetua o ciclo de crise. Mas não se trata também de uma simples desfaçatez capitalista, como o salário reduzido para jornadas integrais (ou ainda o trabalho forçado para os beneficiários da Previdência Social). Com efeito, ao salário reduzido corresponde uma compensação: maior "tempo disponível", que não precisa mais ser regateado para tampar a boca dos assalariados. Claro, por falta de dinheiro o tempo ganho não pode mais ser preenchido (conforme ao padrão fordista) com o desvario do consumo e os infantis brinquedos tecnológicos. Mas, justamente, ele abriria espaço para aquelas actividades autónomas, para além do mercado e do Estado.
Não se trata portanto de rompimento aparentemente radical em comunas isoladas, como é propagado por Rudolf Bahro. Semelhante alternativa permanece absolutamente sem mediação em termos socio-políticos e arrisca assumir traços sectaristas. A troca de tempo disponível por receita monetária reduzida, ao contrário, não suspende a mediação social em crise. O terreno do trabalho assalariado não é simplesmente abandonado à sua própria sorte, mas permanece, como que numa estratégia dupla, a medida para as acções (por exemplo, compensação salarial para grupos de baixa renda, equiparação das mulheres, participação nas conquistas sociais do trabalho parcial ao invés de empregos sem segurança etc.)
Quais reproduções sociais poderiam, em princípio, ser organizadas como autónomas, não mais mediadas pelo dinheiro? Duas ideias básicas talvez sirvam de ponto de partida. Primeiro: se o mercado apoderou-se apenas progressivamente, num processo histórico, de todas as mediações sociais, então algumas destas articulações lhe podem ser actualmente retiradas, sem que as pessoas simplesmente se furtem à sociabilidade. Segundo, a mudança tem de iniciar na esfera individual e ser tangível praticamente no dia-a-dia. Um exemplo aleatório: uma comunidade de compras que elimina as etapas do comércio intermediário (e pode respeitar melhor que o indivíduo a qualidade sensível e ecológica) é um pequeno passo de desvinculação em face da lógica ubíqua do dinheiro. André Gorz sugeriu algo semelhante para esferas como a educação infantil e o cuidado de idosos, além da produção de alimentos, consertos, actividades culturais etc. A auto-administração e o auto-abastecimento não pautados pela forma-mercadoria seria o princípio director. O importante é que tais esferas não excluam as mulheres, sendo antes repartidas entre ambos os sexos.
É pena que em Gorz estas actividades autónomas, cuja matriz não é a forma-mercadoria, sejam indirectamente dependentes do dinheiro, uma vez que ele sugere, através de um modelo de subvenção (estatal), a redução da jornada de trabalho com plena compensação salarial. Com isso, o pressuposto tácito é a acumulação bem-querida de capital e a posição do próprio país como ganhador no mercado mundial, ou seja, seria, em última instância, uma subvenção às custas dos perdedores no resto do mundo. Na crise, este modelo é insustentável. Além disso, Gorz é forçado a manter perfeitamente incólume o "trabalho" capitalista nas grandes estruturas reificadas (o seu progresso, de fato, há de financiar, indirectamente, o todo). As actividades autónomas, cuja matriz não é a forma-mercadoria, assumem assim como que o carácter de um hobby pouco sério. Importa fazer, justamente, com que tais actividades se desvinculem substancialmente do dinheiro, mas não pareçam secundárias e inferiores -meras medidas de emergência ou simples passatempo – e sim uma perspectiva de desenvolvimento dotada de força própria.
Sobretudo, porém, a transformação não pode parar por aí. Trata-se somente de firmar um pé no chão para superar a paralisia da crítica prática ao sistema totalizado do mercado. As pessoas já independentes, com os pés firmes nas actividades comunitárias auto-administradas, podem então proceder à crítica social e ecológica da macro estrutura capitalista, com conhecimento de causa. A produção destrutiva do mercado mundial tampouco pode continuar intocada. Entre as actividades autónomas estão as de crítica social e resistência prática. A discussão sobre os custos ecológicos e sociais do sistema incluem-se aqui, assim como a investigação crítica (ainda primária) das vias de reprodução material, muitas vezes absurdas, exigidas pela lógica da mercadoria. As actividades de reprodução não mais mediadas pelo dinheiro poderiam, assim, ser entretecidas à crítica ecológica e a outras iniciativas (Terceiro Mundo, anti-racismo) numa nova urdidura crítica do capitalismo.
5. O deserto persiste
A crítica da forma-mercadoria total sempre refulgiu na história de afirmação do sistema, sem nunca deixar mais do que vestígios. O dinheiro liberto pôde assim crescer à solta, enquanto a sua própria lógica ainda não se esgotara – seja através das esporas das ditaduras de modernização tardia, seja com o afago das gratificações de consumo. Toda a crítica da mediação monetária e da forma-mercadoria parecia apenas remontar à primitiva economia aldeã e a velhos laços de sangue como unidade de produção carente de necessidades e repressiva. Ainda hoje a exigência da crítica ao dinheiro é repelida com tais referências. No actual estágio de crise do sistema, porém, estes são argumentos homicidas e irreflectidos. Nesse meio tempo, o próprio processo de desenvolvimento capitalista deu origem aos potenciais que permitem reformular a antiga questão.
Os próprios agentes há muito foram a tal ponto individualizados pelo capitalismo que não há mais que se falar num regresso à comunidade aldeã e à reprodução com base no parentesco de sangue. Porém o sofrimento causado pela individualidade abstracta do homem mercantilizado cria novas formas de sociabilidade, nas quais se reúnem as pessoas individualizadas: grupos de ajuda mútua, comunidades de moradia, iniciativas civis, grupos de bairro, sociedades e meios culturais etc. Tudo isso, sem dúvida, é ainda muito precário, mas não sem perspectivas. Se nessas formas já existentes a individualidade for respeitada e não surgir nenhum terror psicológico, elas podem tornar-se uma alternativa tanto à tutela burocrática do Estado quanto à solidão lupanar do dinheiro. É necessário mobilizar estas formas e infundi-las de crítica social, talvez forçando-as a abandonar seu carácter de hobby ou passatempo e organizando-as como verdadeiras esferas reprodutivas, fora da lógica do dinheiro.
Ao mesmo tempo, em razão das novas forças produtivas, diminuíram as possibilidades de se recair nos antigos meios primitivos. Antigamente, só se podia imaginar a sociabilização como um grande aparato, no espaço gigante de administração burocrática e suas máquinas enormes. Ao contrário, a micro electrónica criou hoje uma miniaturização tecnológica e informática que permite aplicar-se às diversas etapas produtivas, inclusive em pequena escala. A par disso, a ecologia nos fornece pequenos modelos de reprodução em rede como alternativa à sociabilização grosseira da dobradinha Estado-mercado. A crítica da forma-mercadoria e do dinheiro não precisa mais voltar-se para trás; ela pode ao contrário ser efectuada pelo homem moderno com meios modernos, como progresso na evolução social. Ao final (depois de muitos debates), poderia nascer um novo modo de regulação social, sem base na forma-mercadoria, reflectido em termos ecológicos/cibernéticos e da "teoria do caos" – não mais um plano estatal mecanicista, hierárquico e burocrático (como fora para o problema da "modernização tardia"), porém uma rede descentralizada e informatizada, em cujas partes o todo esteja presente e o governo aja como "aliança horizontal", em vez de vertical e burocrática.
Os elementos básicos da miniaturização tecnológica, rede informática e "individualidade organizada" como base da transformação social proíbem, não obstante, uma crítica reduzida da sociedade mercantil, caracterizada no "feminismo de Bielefeld" de Claudia Werlhof, Maria Mies e outras por uma recusa absolutamente indiferente da micro electrónica e de todas as potencialidades da tecnologia informática. Apesar de ideias importantes, os próprios meios escapam a essa crítica "naturalista" (como em Bahro). O legado tecnológico do capitalismo não pode ser, por outro lado, assimilado em sua forma hoje existente – este se tornou, aliás, um lugar comum ecológico. O que importa é seleccioná-los criticamente, segundo critérios da "razão sensível", em vez de repudiá-los abstractamente.
Por exemplo, isto significa utilizar de forma crítica os meios de produção e as tecnologias informáticas modernas (inclusive as "tecnologias de crise") e ao mesmo tempo desencadear uma "revolução cultural", pela qual se exporá ao ridículo o padrão de vida e consumo destrutivos deste sistema. Não no sentido de uma conservadora "ideologia da recusa" (que, de toda forma, mesmo na sociedade de mercado total dependente do consumo de massas, permanece um sofisma), mas como anseio alternativo de uma "vida melhor", norteada por relações humanas satisfatórias e pelo prazer sensível. O terror do tempo abstracto no sistema monetário total é tão incompatível com isto quanto o lastimável consumo compensatório. Seria preciso, por exemplo, uma campanha cultural contra o automóvel como máquina essencialmente capitalista, contra o turismo comercial de massas, e a favor de formas alternativas de repouso e comunicação.
O conflito tem também, é claro, um lado directamente material. As actividades autónomas, não pautadas pela forma-mercadoria, não podem ter lugar no vácuo. São precisos recursos: terra, edifícios escritórios, oficinas, jardins, meios de produção e comunicação etc. Estes precisam ser exigidos do Estado e do mercado. Tais exigências tornam-se tanto mais plausíveis quanto menos o sistema produtor de mercadorias é capaz de administrar sensatamente os recursos e quanto mais intactos e improdutivos se acham os meios essenciais à vida, só porque não satisfazem ao fetiche da rentabilidade. Para "dar início ao fim" da lógica monetária caberia ainda, ao lado dos recursos materiais, exigir até mesmo dinheiro do Estado – para investimentos que servirão de impulso às actividades autónomas (o que seria algo fundamentalmente diverso do modelo subvencionista). O movimento alemão ocidental por centros autónomos de comunicação nos anos 70 e o movimento de ocupação de casas nos anos 80 foram os precursores destes conflitos. A questão elementar será cada vez mais a da propriedade de terra. O único objectivo é excluir a terra da esfera da compra e venda, isto é, desvinculá-la, como fundamento da vida, do dinheiro. Aqui seria necessário, porém, desenvolver institucionalmente um critério decisório comunitário e autónomo acerca da utilidade, em oposição a um burocrático e centralista, como era característico do socialismo de Estado.
Tudo isso mostra que o deserto da sociedade de mercado total ainda não está inteiramente morto. Formas de vida alternativa, iniciativas de desempregados e "subsistência dissidente" estão em alta em toda a Europa. Nelas, somam-se experiências de que a teoria pode lançar mão. Basta vincular tais esforços à análise da crise, ao debate sobre a redução da jornada de trabalho e à crítica básica da produção mercantil, para assim chegar a um novo programa integrado de crítica social radical.
http://obeco.planetaclix.pt/robertkurz.htm
Qual seria então a verdadeira superação do capitalismo, agora não mais determinada pelo problema dos retardatários históricos, mas antes pelo super desenvolvimento da própria economia de mercado mundial? Seria logicamente a transformação do sistema produtor de mercadorias num modo superior de sociabilização, sem as formas fetichistas da mercadoria e do dinheiro. Esta era a concepção fundamental de Marx, pela qual ele é agora qualificado de simplório – precisamente pelos antigos representantes do "aparato ideológico" do marxismo. Assim é que, hoje, tanto a esquerda quanto a burguesia eterniza ideologicamente um modo de vida e produção que, como totalização da forma-mercadoria, constitui na verdade somente um período ínfimo da história humana. A consciência moderna do "ganhar dinheiro" é pura e simplesmente estilizada como forma eterna da consciência humana. O fato de a superação (Aufhebung) de dinheiro e mercadoria parecer um despropósito e, por assim, uma quimera, além do fato de os desdenhadores de tal ideia poderem sentir-se em tácita concordância com a consciência das massas, revela apenas o parti pris vinculado a um sistema de coordenadas históricas comum que parece confundir-se com a identidade própria e no qual todos nós fomos sociabilizados (os intelectuais em forma teórica, inclusive). Uma crítica que toque este núcleo só não seria efectivamente inútil sob uma condição: a sociedade mercantil total, por meio de sua própria sistematicidade cega, estar imersa numa crise irrevogável. É justamente a esquerda que não quer nem ver, nem ouvir, nem falar sobre isso (os célebres gestos dos três macacos); para tanto, evoca-se a confiança cega na pretensa "capacidade eterna de adaptação" do capitalismo. Mas e se a realidade estiver apoiada na ignorância da grande coalizão de "realistas"? Quando sobrevier a grande crise, tanto pior para o centro de produção mercantil da "sociedade do trabalho". Dai-nos "trabalho"! exigem as pessoas; e a classe política, os sindicatos etc. digladiam-se apenas sobre como fazer para criar "empregos" e como a "posição da Alemanha" há de ser mantida. A referência, porém, não é a simples actividade produtiva e vital das pessoas, mas, tacitamente, a transformação do "trabalho abstracto" (Marx) da produção de mercadorias em dinheiro, isto é, em salário e lucro. Há 150 anos, ninguém consideraria isso como normal. Não só por causa dos baixos salários e das terríveis condições de trabalho, mas porque se afigurava um tremendo desplante ingressar às 7 ou 8 em ponto num edifício feio de dar medo e lá "trabalhar" até à noite, num contexto que não se define por objectivos autónomos e comuns, mas por um plano estatal e/ou pelas leis anónimas do mercado. Mesmo dos servos e dos escravos não se exigia todo o tempo de vida para actividades alheias, mas só uma parte. O "trabalho", no sentido actual (determinado por outrem em vista do dinheiro), seria tido como uma espécie de prostituição infamante.
Pois bem, habituamo-nos a ser prostitutas da produção mercantil e a oferecer diariamente nosso corpo ao trabalho abstracto. A contrapartida histórica foi uma ampliação das necessidades: veículos, turismo, máquinas de lavar, televisores, secretárias electrónicas. No novo desemprego em massa, porém, cada vez mais nos é negada a própria auto prostituição, e, naturalmente, também as gratificações de consumo (nova pobreza). Tanto a esquerda quanto os burgueses esperam que se trate, mais uma vez, de uma paralisação momentânea no processo de valorização do dinheiro, que logo um novo "modelo de acumulação" acenará com um sorriso. Isso haverá de ocorrer, em suma, por meio de uma elevação da produtividade. E através do que a produção será elevada? Por meio da racionalização. Ora, os empregos não são precisamente eliminados pela racionalização? Algo parece em dissonância com o resto.
Desde os primeiros grandes surtos de racionalização nas fábricas de automóveis de Henry Ford no princípio deste século, o sector mais racionalizado em sua execução foi a própria actividade laboral humana (taylorismo, esteira rolante etc.). Só assim os bens produzidos no mercado foram barateados a ponto de poderem ingressar no consumo de massas. A incipiente produção "fordista" para as massas não precisava de menos assalariados, antes pelo contrário; as economias de tempo nas secções de trabalho específicas foram em muito ultrapassadas pela ampliação dos mercados. Até meados do século XX, impôs-se dessa maneira a "racionalidade empresarial" da economia de mercado (antes apenas um segmento social) como forma de reprodução total. Se até o momento o trabalho assalariado e a economia de mercado ainda estavam impregnados de outras actividades reprodutivas (domésticas, comunais etc.) não fundadas – pelo menos em princípio – no dinheiro, a lógica do nexo "trabalho"-dinheiro-consumo tomou-se, por sua vez, a normalidade sem excepção para as massas. Desde o início dos anos 80, entretanto, a concorrência do mercado mundial deu à luz um novo tipo de racionalização, cujo suporte técnico-científico é a micro electrónica. Agora, a força de trabalho humana não é mais racionalizada dentro de sua actividade; antes, os "empregos" são crescentemente substituídos por robôs, sistemas guiados e pela precisão da informática (lean production). Na exacta inversão do antigo processo, a racionalização começa a exceder de maneira constante a ampliação (sempre ecologicamente precária) dos mercados. Por isso estamos às voltas com um desemprego de massas estrutural e perene, e não cíclico ou temporário. De ciclo a ciclo, cresce o "desemprego de base", sem que se abra nenhuma perspectiva de solução.
Esse processo de crise não é somente social, mas também fruto da própria acumulação do capital, pois o dinheiro nada mais "é" que a "forma de exposição" (Darstellungsform) de trabalho morto, e o capital nada mais "é" que o movimento de valorização do dinheiro capitalizado. Com a eliminação do "trabalho" pela racionalização, o capital sorve a sua própria substância, de maneira semelhante à nova doença surgida na Inglaterra de bactérias assassinas, que sorvem o tecido celular. Na superfície do mercado, os empresários se dão conta disso ao perceberem que os robôs e as estruturas em rede não compram absolutamente nada. A contradição absurda de um sistema que logra produzir cada vez mais bens com menos "trabalho" – embora a apropriação destes bens esteja ligada exclusivamente ao poder de compra (dinheiro) e, portanto, à capacidade de consumo "rentável" do "trabalho" – ingressa em seu estágio maduro. O ponto crítico não será alcançado só quando o último trabalhador produtivo em termos de capital apagar a luz, mas obviamente muito antes, na medida que o enorme estoque de capital não pode por muito tempo ser suficientemente valorizado através da diminuição auto produzida da "substância" do capital. A transformação do desemprego cíclico em estrutural corresponde à transformação da "super acumulação" cíclica do capital em super acumulação estrutural. Com isso, o sistema alcança seu limite histórico absoluto.
Esse claro limite do sistema pôde ser contornado no mercado mundial (sobretudo pelos países capitalistas mais fortes) através da "exportação de crises". A partir do início dos anos 80, a crise foi parcialmente descarregada sobre os retardatários históricos de capital fraco, por meio da concorrência global (preços de importação-exportação). O socialismo de Estado e grande parte do Terceiro Mundo foram vítimas de um colapso económico, já que não puderam mais acompanhar o ritmo de produtividade do capital intensivo, embora, de acordo com sua própria forma, tivessem de medir-se pelos critérios do sistema produtor de mercadorias. Ora, com o empobrecimento e o isolamento forçado de boa parte da economia mundial pautada pela forma-mercadoria, o processo de crise estende-se agora, numa espiral cada vez mais estreita, aos demais concorrentes.
Não importa que haja neste quadro esta ou aquela constelação de ganhador ou perdedor: a crise global da estrutura mantém-se a mesma. Ao fim, a acumulação de capital teve de reduzir-se substancialmente, por assim dizer, ao tamanho de uma tampinha de cerveja. O resultado é claro: por toda parte, inclusive nos próprios centros ocidentais, uma parcela vertiginosamente crescente da população se vê excluída de toda reprodução humanamente digna – suas vidas são sacrificadas a critérios feministas da produção de mercadorias. Isso não em virtude da maldade subjectiva, mas porque se trata de um desvario universal do sistema. As reacções a este franco enlouquecimento da economia de mercado são de pânico generalizado. Para salvaguardar a receita monetária, forçam-se até mesmo "trabalhos" absurdos e nocivos à população; os impostos ecológicos são minorados, a destruição do mundo ganha velocidade. A esquerda e o Partido Verde, entregues aos critérios da economia de mercado, têm de rezar para que a acumulação do capital possa arrancar novamente.
Quando a dúvida reina no campo económico, ecoa impreterivelmente o choramingo pelo Estado e pela "configuração política" da catástrofe da economia. Mas como se trata de uma crise do sistema, ela atinge tanto o mercado de trabalho e de mercadorias quanto o Estado, na condição de instância central secundária da produção de mercadorias totalizada. O Estado não possui, aliás, nenhum meio próprio de acção, pois tem de expor seu "poder" e suas medidas sociais e ecológicas por intermédio do mercado, na figura do dinheiro. Endividamento excessivo e emissão de moeda sem lastro substancial só levam à hiper inflação (hoje, "situação normal" na maioria dos países). Com isso, porém, a esquerda aferrada ao mercado se mete de vez numa camisa de onze varas. De fato, ela jamais aprendeu algo diverso do dirigismo estatal ou da distribuição de renda. O fim da cantilena tem de ser necessariamente a colaboração infamante com a administração anti-social da pobreza em nome do terror do financiamento, a cujo sortilégio as lideranças "realistas" do Partido Verde parecem agora entregues. Quando não for mais possível deixar de notar o pistão fundido da máquina de cunhagem, então virá à luz uma problemática há muito soterrada, que zomba de todo "realismo" de matriz mercado lógica: os homens têm de assumir o controle de suas próprias vidas, controle este perdido para o mercado e o Estado. Com efeito, nos últimos 200 anos a dependência pessoal ao senhor feudal só foi substituída pela burocracia estatal nas várias ditaduras devotadas à modernização. A ideologia (neo)liberal, por seu turno, prometeu a autonomia humana através do mercado. Hoje está demonstrado que a ditadura -sem sujeito -do dinheiro exclui com tanto mais razão a autonomia e aborta as iniciativas individuais, já que as submete à lei da rentabilidade. A maioria da humanidade actual tornou-se infelizmente pouco rentável. As imposições do mercado e a burocracia estatal são duas faces da mesma moeda. A saída para tal miséria pode ser formulada apenas em termos gerais: é imprescindível o desenvolvimento de actividades autónomas, comuns à sociedade, e formas de reprodução para além do mercado e do Estado. Para isso são necessárias tentativas práticas e uma nova moldura teórica interdisciplinar, no objectivo de transformar a crise histórica do sistema produtor de mercadorias numa superação (Aufhebung) positiva. Quem não procura, não acha. A transformação do sistema não estará à disposição como uma oferta barata de supermercado.
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Mesmo que a pressão da crise já faça ruir as vigas da sociedade mercantil, quem tenciona levar uma vida para além do salário e do sucesso no mercado parece postar-se desamparado ante um muro negro. Essa transgressão do tabu é quitada com malícia e no tom grave da concordância com os critérios dominantes do sistema pela destrambelhada consciência de clã dos filofetichistas -consciência esta que se limita, de bom grado, à rentável produção-bolha de sabão ("nova política industrial", "regulação democrática", "apresentar programas de conjuntura" ou mesmo "perceber os interesses alemães"). Em sua vertente séria, ela não passa da representação militante de alguma clientela e algum lobby no campo de batalha da luta cega e encarniçada da concorrência: egoísmo de ramo e empresarial, patriotismo regional e selvajaria social pululam como chagas na epiderme da sociedade. E o lema sem rodeios é: ó Deus, fazei-nos mais ricos e lançai os outros por terra!
4. A desvinculação entre tempo e dinheiro
Seria obviamente descabido, na actual situação de "estaca zero" em que se acha o discurso teórico e político, anunciar a descoberta da pedra filosofal. É preciso antes solucionar o problema de uma desvinculação progressiva do nexo determinado pela trindade trabalho-dinheiro-consumo de mercadorias. A "liberação do tempo" há muito é palavra de ordem, sem que seus protagonistas (Oskar Negt, por exemplo) jamais tenham sido capazes de desligar-se do "trabalho" sob a forma-mercadoria e do dinheiro. A praxis social, nesse meio tempo, ensejou o debate sobre a redução da jornada de trabalho sem compensação salarial, isto é, a jornada parcial. Com isso, o sistema não é salvo, pois a racionalização não é barrada e a diminuição da renda perpetua o ciclo de crise. Mas não se trata também de uma simples desfaçatez capitalista, como o salário reduzido para jornadas integrais (ou ainda o trabalho forçado para os beneficiários da Previdência Social). Com efeito, ao salário reduzido corresponde uma compensação: maior "tempo disponível", que não precisa mais ser regateado para tampar a boca dos assalariados. Claro, por falta de dinheiro o tempo ganho não pode mais ser preenchido (conforme ao padrão fordista) com o desvario do consumo e os infantis brinquedos tecnológicos. Mas, justamente, ele abriria espaço para aquelas actividades autónomas, para além do mercado e do Estado.
Não se trata portanto de rompimento aparentemente radical em comunas isoladas, como é propagado por Rudolf Bahro. Semelhante alternativa permanece absolutamente sem mediação em termos socio-políticos e arrisca assumir traços sectaristas. A troca de tempo disponível por receita monetária reduzida, ao contrário, não suspende a mediação social em crise. O terreno do trabalho assalariado não é simplesmente abandonado à sua própria sorte, mas permanece, como que numa estratégia dupla, a medida para as acções (por exemplo, compensação salarial para grupos de baixa renda, equiparação das mulheres, participação nas conquistas sociais do trabalho parcial ao invés de empregos sem segurança etc.)
Quais reproduções sociais poderiam, em princípio, ser organizadas como autónomas, não mais mediadas pelo dinheiro? Duas ideias básicas talvez sirvam de ponto de partida. Primeiro: se o mercado apoderou-se apenas progressivamente, num processo histórico, de todas as mediações sociais, então algumas destas articulações lhe podem ser actualmente retiradas, sem que as pessoas simplesmente se furtem à sociabilidade. Segundo, a mudança tem de iniciar na esfera individual e ser tangível praticamente no dia-a-dia. Um exemplo aleatório: uma comunidade de compras que elimina as etapas do comércio intermediário (e pode respeitar melhor que o indivíduo a qualidade sensível e ecológica) é um pequeno passo de desvinculação em face da lógica ubíqua do dinheiro. André Gorz sugeriu algo semelhante para esferas como a educação infantil e o cuidado de idosos, além da produção de alimentos, consertos, actividades culturais etc. A auto-administração e o auto-abastecimento não pautados pela forma-mercadoria seria o princípio director. O importante é que tais esferas não excluam as mulheres, sendo antes repartidas entre ambos os sexos.
É pena que em Gorz estas actividades autónomas, cuja matriz não é a forma-mercadoria, sejam indirectamente dependentes do dinheiro, uma vez que ele sugere, através de um modelo de subvenção (estatal), a redução da jornada de trabalho com plena compensação salarial. Com isso, o pressuposto tácito é a acumulação bem-querida de capital e a posição do próprio país como ganhador no mercado mundial, ou seja, seria, em última instância, uma subvenção às custas dos perdedores no resto do mundo. Na crise, este modelo é insustentável. Além disso, Gorz é forçado a manter perfeitamente incólume o "trabalho" capitalista nas grandes estruturas reificadas (o seu progresso, de fato, há de financiar, indirectamente, o todo). As actividades autónomas, cuja matriz não é a forma-mercadoria, assumem assim como que o carácter de um hobby pouco sério. Importa fazer, justamente, com que tais actividades se desvinculem substancialmente do dinheiro, mas não pareçam secundárias e inferiores -meras medidas de emergência ou simples passatempo – e sim uma perspectiva de desenvolvimento dotada de força própria.
Sobretudo, porém, a transformação não pode parar por aí. Trata-se somente de firmar um pé no chão para superar a paralisia da crítica prática ao sistema totalizado do mercado. As pessoas já independentes, com os pés firmes nas actividades comunitárias auto-administradas, podem então proceder à crítica social e ecológica da macro estrutura capitalista, com conhecimento de causa. A produção destrutiva do mercado mundial tampouco pode continuar intocada. Entre as actividades autónomas estão as de crítica social e resistência prática. A discussão sobre os custos ecológicos e sociais do sistema incluem-se aqui, assim como a investigação crítica (ainda primária) das vias de reprodução material, muitas vezes absurdas, exigidas pela lógica da mercadoria. As actividades de reprodução não mais mediadas pelo dinheiro poderiam, assim, ser entretecidas à crítica ecológica e a outras iniciativas (Terceiro Mundo, anti-racismo) numa nova urdidura crítica do capitalismo.
5. O deserto persiste
A crítica da forma-mercadoria total sempre refulgiu na história de afirmação do sistema, sem nunca deixar mais do que vestígios. O dinheiro liberto pôde assim crescer à solta, enquanto a sua própria lógica ainda não se esgotara – seja através das esporas das ditaduras de modernização tardia, seja com o afago das gratificações de consumo. Toda a crítica da mediação monetária e da forma-mercadoria parecia apenas remontar à primitiva economia aldeã e a velhos laços de sangue como unidade de produção carente de necessidades e repressiva. Ainda hoje a exigência da crítica ao dinheiro é repelida com tais referências. No actual estágio de crise do sistema, porém, estes são argumentos homicidas e irreflectidos. Nesse meio tempo, o próprio processo de desenvolvimento capitalista deu origem aos potenciais que permitem reformular a antiga questão.
Os próprios agentes há muito foram a tal ponto individualizados pelo capitalismo que não há mais que se falar num regresso à comunidade aldeã e à reprodução com base no parentesco de sangue. Porém o sofrimento causado pela individualidade abstracta do homem mercantilizado cria novas formas de sociabilidade, nas quais se reúnem as pessoas individualizadas: grupos de ajuda mútua, comunidades de moradia, iniciativas civis, grupos de bairro, sociedades e meios culturais etc. Tudo isso, sem dúvida, é ainda muito precário, mas não sem perspectivas. Se nessas formas já existentes a individualidade for respeitada e não surgir nenhum terror psicológico, elas podem tornar-se uma alternativa tanto à tutela burocrática do Estado quanto à solidão lupanar do dinheiro. É necessário mobilizar estas formas e infundi-las de crítica social, talvez forçando-as a abandonar seu carácter de hobby ou passatempo e organizando-as como verdadeiras esferas reprodutivas, fora da lógica do dinheiro.
Ao mesmo tempo, em razão das novas forças produtivas, diminuíram as possibilidades de se recair nos antigos meios primitivos. Antigamente, só se podia imaginar a sociabilização como um grande aparato, no espaço gigante de administração burocrática e suas máquinas enormes. Ao contrário, a micro electrónica criou hoje uma miniaturização tecnológica e informática que permite aplicar-se às diversas etapas produtivas, inclusive em pequena escala. A par disso, a ecologia nos fornece pequenos modelos de reprodução em rede como alternativa à sociabilização grosseira da dobradinha Estado-mercado. A crítica da forma-mercadoria e do dinheiro não precisa mais voltar-se para trás; ela pode ao contrário ser efectuada pelo homem moderno com meios modernos, como progresso na evolução social. Ao final (depois de muitos debates), poderia nascer um novo modo de regulação social, sem base na forma-mercadoria, reflectido em termos ecológicos/cibernéticos e da "teoria do caos" – não mais um plano estatal mecanicista, hierárquico e burocrático (como fora para o problema da "modernização tardia"), porém uma rede descentralizada e informatizada, em cujas partes o todo esteja presente e o governo aja como "aliança horizontal", em vez de vertical e burocrática.
Os elementos básicos da miniaturização tecnológica, rede informática e "individualidade organizada" como base da transformação social proíbem, não obstante, uma crítica reduzida da sociedade mercantil, caracterizada no "feminismo de Bielefeld" de Claudia Werlhof, Maria Mies e outras por uma recusa absolutamente indiferente da micro electrónica e de todas as potencialidades da tecnologia informática. Apesar de ideias importantes, os próprios meios escapam a essa crítica "naturalista" (como em Bahro). O legado tecnológico do capitalismo não pode ser, por outro lado, assimilado em sua forma hoje existente – este se tornou, aliás, um lugar comum ecológico. O que importa é seleccioná-los criticamente, segundo critérios da "razão sensível", em vez de repudiá-los abstractamente.
Por exemplo, isto significa utilizar de forma crítica os meios de produção e as tecnologias informáticas modernas (inclusive as "tecnologias de crise") e ao mesmo tempo desencadear uma "revolução cultural", pela qual se exporá ao ridículo o padrão de vida e consumo destrutivos deste sistema. Não no sentido de uma conservadora "ideologia da recusa" (que, de toda forma, mesmo na sociedade de mercado total dependente do consumo de massas, permanece um sofisma), mas como anseio alternativo de uma "vida melhor", norteada por relações humanas satisfatórias e pelo prazer sensível. O terror do tempo abstracto no sistema monetário total é tão incompatível com isto quanto o lastimável consumo compensatório. Seria preciso, por exemplo, uma campanha cultural contra o automóvel como máquina essencialmente capitalista, contra o turismo comercial de massas, e a favor de formas alternativas de repouso e comunicação.
O conflito tem também, é claro, um lado directamente material. As actividades autónomas, não pautadas pela forma-mercadoria, não podem ter lugar no vácuo. São precisos recursos: terra, edifícios escritórios, oficinas, jardins, meios de produção e comunicação etc. Estes precisam ser exigidos do Estado e do mercado. Tais exigências tornam-se tanto mais plausíveis quanto menos o sistema produtor de mercadorias é capaz de administrar sensatamente os recursos e quanto mais intactos e improdutivos se acham os meios essenciais à vida, só porque não satisfazem ao fetiche da rentabilidade. Para "dar início ao fim" da lógica monetária caberia ainda, ao lado dos recursos materiais, exigir até mesmo dinheiro do Estado – para investimentos que servirão de impulso às actividades autónomas (o que seria algo fundamentalmente diverso do modelo subvencionista). O movimento alemão ocidental por centros autónomos de comunicação nos anos 70 e o movimento de ocupação de casas nos anos 80 foram os precursores destes conflitos. A questão elementar será cada vez mais a da propriedade de terra. O único objectivo é excluir a terra da esfera da compra e venda, isto é, desvinculá-la, como fundamento da vida, do dinheiro. Aqui seria necessário, porém, desenvolver institucionalmente um critério decisório comunitário e autónomo acerca da utilidade, em oposição a um burocrático e centralista, como era característico do socialismo de Estado.
Tudo isso mostra que o deserto da sociedade de mercado total ainda não está inteiramente morto. Formas de vida alternativa, iniciativas de desempregados e "subsistência dissidente" estão em alta em toda a Europa. Nelas, somam-se experiências de que a teoria pode lançar mão. Basta vincular tais esforços à análise da crise, ao debate sobre a redução da jornada de trabalho e à crítica básica da produção mercantil, para assim chegar a um novo programa integrado de crítica social radical.
http://obeco.planetaclix.pt/robertkurz.htm
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