O exercício da liberdade supõe certas condições, sem as quais ela não se realiza a não ser num nível precário e mínimo. O primeiro filósofo contemporâneo a reflectir profundamente sobre as condições subjectivas para o exercício da liberdade foi Kant. Humanamente livre é, para Kant, aquele homem que realiza a sua própria autonomia, seguindo os ditames da sua própria razão esclarecida. Cada homem, seguindo os procedimentos racionais que sendo transcendentais, são universais a toda espécie humana define as normas morais universais obedecendo unicamente a si próprio. O Estado tem o papel objectivo de reprimir aqueles que, agindo de modo contrário às exigências da razão, obliteram o exercício da liberdade alheia. Cabe a cada homem ter a coragem de usar o seu próprio entendimento e sair da condição de menoridade, na qual é tutelado por outro que lhe diz o que fazer. Conforme Kant, os guardiões de rebanho se encarregam de tutelar os que tem medo de pensar por conta própria. Assim, para o fundador do idealismo transcendental, o esclarecimento, que no campo da convivência social exige ao homem seguir os imperativos categóricos da razão, levaria à superação da menoridade e a uma vivência ética emancipada. Não tardou, entretanto, para que as teses de Kant sobre o exercício da liberdade fossem superadas dialecticamente isto é, incorporadas e transformadas em uma nova construção filosófica. Hegel desdobrará a análise sobre as condições objectivas para o exercício da liberdade, ou, para que a ideia de liberdade possa efectivar-se objectivamente, o que somente ocorre na mediação do Estado. Se para Kant é possível que o público se esclareça a si mesmo se lhe for assegurada a liberdade, a pergunta torna-se agora como assegurar objectivamente a liberdade ao público, a todo o povo? Hegel compreende claramente que a liberdade é exercida por um processo histórico, dinâmico, em conflito, cheio de interesses e tensões. Não há, portanto, uma razão que possa esclarecer-se a si mesma independentemente de um conjunto de mediações históricas subjectivas e objectivas. Sendo assim, a liberdade somente pode realizar-se publicamente se forem garantidas as sua condições de possibilidade. A moralidade privada como bem analisa Hegel, afirma condutas que alguém, em particular, pode pretender que sejam universais, mas que sendo determinadas por interesses económicos privados, não possibilitam a realização universal da liberdade dos seres humanos de modo ético. A sociedade civil burguesa é a esfera dos interesses privados, económicos, particulares do cidadão, leia-se burguês, que se afirmam a partir de sua moralidade sem preocupar-se com a realização dos interesses públicos. Frente a isso, a mediação objectiva necessária para a efectivação da ideia de liberdade é a esfera política do Estado. O Estado é a esfera dos interesses públicos do cidadão afirmados a partir de uma eticidade que, voltada para a realização do bem público, determina um outro carácter para o exercício da liberdade privada. Se em Kant o direito deve ser uma garantia à liberdade privada vivida sob os imperativos da moralidade, em Hegel ele é expressão da eticidade e substrato próprio da cidadania. Em ambos é uma mediação política para assegurar a liberdade de todos os homens. Contudo, a posição de Hegel, que inaugurou um idealismo histórico, não tardou muito a ser criticada; em meio a tal crítica foram destacadas, então, as condições objectivas económicas para o exercício da liberdade. Conforme Proudhon seguido de muito perto por Marx a realização da liberdade supõe condições objectivas não apenas políticas mas também económicas. A liberdade exige propriedades materiais para o seu exercício, que lhe são, também, condições reais de possibilidade. Embora o Estado pareça assegurar a liberdade de todos com a formal igualdade jurídica, na verdade assegura apenas a liberdade dos que tem propriedades materiais para exercê-la, na própria extensão possibilitada por tais posses. Assim, o Estado sob o capitalismo, fundamentalmente, não é uma mediação ética para assegurar a universalidade da liberdade mas para assegurar a uma parcela de proprietários o contínuo domínio e possibilidade de dispor de sua propriedade privada, condição material objectiva do exercício de sua liberdade. Como para o exercício efectivo da liberdade desta pequena parcela cindida da realização da liberdade pública, se destina a maior parte da riqueza económica que se converte nas mediações materiais de tal liberdade, mediações essas que não podem ser utilizadas para o exercício da liberdade das maiorias que não tem sobre elas o direito de propriedade, isto é, de apropriar-se delas com autonomia, a realização da liberdade de tal parcela minoritária, deste modo, é simultaneamente a negação da realização universal da liberdade do conjunto dos indivíduos daquela sociedade. A propriedade é privada porque todos os demais estão privados de usufruí-la. Deste modo, a propriedade privada que possibilita o exercício caprichoso da liberdade de alguns é o que impede o exercício das liberdades mais elementares dos outros e até mesmo a satisfação adequada de suas necessidades básicas humanas como trabalhar, morar, comer, educar-se, desfrutar de um lazer mais criativo…Ora, sendo a propriedade privada, colocada acima do interesse público, a mediação básica que mantém as privações materiais das maiorias para a realização elementar de sua humanidade e sendo os bens materiais condições objectivas indispensáveis para a realização do exercício da liberdade, conclui-se que para a realização da liberdade de todos e do desenvolvimento humano de cada um é necessário que a posse dos bens económicos seja universalizada, o que exige o estabelecimento de um controle público sobre a riqueza produzida na sociedade, modificando-se o modo de apropriação dessa riqueza superando-se as privações sociais. Tal a proposta proudhoniana. Podemos concluir que para a realização da liberdade são necessárias, portanto, condições subjectivas e objectivas. Não basta, entretanto, que um indivíduo possua autonomia, condições políticas e económicas para o exercício de suas escolhas se não dispuser, entretanto, da informação qualitativa e suficiente para a tomada de decisão. Privado da informação qualitativa e suficiente o indivíduo escolhe, toma decisões em seus juízos autónomos, de acordo com os interesses daqueles que lhes fornecem as informações insuficientes ou parciais. De tudo isso podemos concluir que, por não assegurar universalmente, nas sociedades em que se implanta as condições objectivas ou seja, económicas, políticas e culturais para o exercício da liberdade de cada pessoa o capitalismo deve ser liminarmente rejeitado como modelo de realização da liberdade e da cidadania.
http://www.milenio.com.br/mance/quatro.htm
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