terça-feira, abril 04, 2006

Islamofobia e liberdades

O caso das caricaturas de Maomé é típico do nosso tempo. Um gesto irresponsável realizado num rincão do planeta pode ter consequências desastrosas do outro lado do mundo. Os ambientalistas chamam a isso o efeito borboleta. Porque, em certas circunstâncias, as asas de uma borboleta em Porto Rico podem provocar redemoinhos de ar que se transformam em brisa, depois em rajadas de vento, para acabarem em violenta tempestade na costa da Galiza.
Na Europa, muitos comentaristas – em nome da liberdade de expressão – reagiram com arrogância ante as manifestações de cólera do mundo muçulmano. E consideraram a ira dessas massas indignadas como uma expressão de obscurantismo arcaico e de intolerância. Em França, alguns jornais não duvidaram em reproduzir as caricaturas como que para afirmar com mais contundência, e até com vontade de provocação, o seu apego à liberdade de expressão.
Mas confundem o debate. A liberdade de expressão – pilar fundamental da democracia – não está ameaçada hoje na Europa pelo islão. Como se sabe, essa liberdade está em perigo por outras causas: a concentração mediática, o poder do dinheiro e os consensos ideológicos.
Alguns negam­‑se a ver que, em democracia, a liberdade de expressão não autoriza tudo, e não constitui um direito à irresponsabilidade. A lei limita o seu uso. Em França, por exemplo, a lei proíbe e sanciona toda a expressão de racismo ou de anti-semitismo. No Reino Unido, o Parlamento aprovou há duas semanas uma lei contra a incitação ao ódio religioso. Com essa lei, a imprensa britânica não teria podido publicar as caricaturas de Maomé.
Por outro lado, a verdadeira coragem, em matéria de liberdade de expressão, não consiste em atacar a cultura dos demais, senão em usá-la para criticar os tabus da nossa própria cultura. Caso contrário, ter­‑se­‑ia de admitir que os clichés racistas da época do colonialismo, que ridicularizavam os costumes dos povos de ultramar, eram mostras de infinita valentia em matéria de liberdade de expressão.
Poucos se interrogaram sobre o contexto político da Dinamarca, que favoreceu a publicação das caricaturas no diário de maior tiragem, Jyllens-Posten. Este situa­‑se muito à direita, e apoia o Governo minoritário liberal­‑conservador que só se mantém graças ao apoio do Partido do Povo Dinamarquês (PPD), de extrema direita, dirigido por Pia Kjaersgaard, cujos discursos se caracterizam pela xenofobia e a islamofobia e que compara os muçulmanos com um «tumor canceroso».
O Jyllens-Posten tem, de modo sistemático, um tom muito crítico a respeito dos muçulmanos, e publica com frequência artigos nos quais o desprezo e o racismo estão muito presentes. E teve, no Verão passado, a ideia lamentável de lançar entre os seus leitores um concurso de caricaturas para ridicularizar Maomé, o qual não podia senão humilhar a comunidade muçulmana.
O que ocorreu depois era mais do que previsível [1]. Em alguns países islâmicos, hoje em dia pressionados por razões diversas pela União Europeia, como a Síria (que conserva uma influência importante no Líbano), o Irão (que possui uma grande capacidade de mobilizar as massas xiitas no Iraque), o Afeganistão (onde os taliban e a rede da Al Qaeda mantêm uma presença considerável) e a Palestina (depois da vitória eleitoral de Hamas, ao qual os europeus ameaçam com suspender as ajudas), este caso e a indignação dos fiéis ofereceram o pretexto ideal para uma revanche. Daí os saques das representações diplomáticas nesses países, e só nesses.
O que confirma que as intransigências se nutrem umas às outras. E que o choque de civilizações é, sobretudo, o choque dos extremismos.

[1] Numa mostra da sua duplicidade de critérios, o jornal recusou publicar em Abril de 2003 desenhos sobre Jesus Cristo porque «provocarão protestos». Gwladys Fouché, The Guardian, 06/02/2006 (n. IA).


http://www.infoalternativa.org/autores/ramonet/ramonet085.htm

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