Quando vemos televisão julgamos ver a realidade quando o que temos perante nós não passa de uma ilusão electrónica.
Mas para muitos espectadores a televisão é o mundo real. Conheço muita gente que diz: “Só é realidade se passar na televisão”. Por isso comparam a sua experiência real com o que observam no ecrã da televisão. Para algo ser real necessita da confirmação da imagem da televisão. Se isso não é metafísica, se isso não é a caverna de Platão, então não sei o que é.
Os meios de comunicação tiveram, alegadamente, como base um princípio extremamente meritório: tornar acessível à maioria das pessoas informações que de outro modo lhe estariam totalmente vedadas ou seriam de difícil acesso. Contudo, esta capacidade, ou poder, de viabilizar o direito à informação tem associado um outro poder, que é tudo menos meritório: o de controlar a informação divulgada. Este risco de manipulação informativa é tanto maior quanto os detentores deste poder não estão de modo algum sujeitos ao controlo dos interessados, do público em geral. Argumenta-se normalmente contra isto que:
Primeiro existe um auto-controlo que é em grande medida garantido pelo código deontológico dos jornalistas e pelas leis respeitantes à comunicação social, em geral. Em segundo a existência de diversos órgãos de comunicação social, dá ao público uma possibilidade de escolha que funciona como controlo da informação. Ou seja, os indivíduos podem sempre optar pelo órgão de comunicação social que consideram fornecer-lhes a melhor informação. A livre concorrência seria assim uma garantia da pluralidade e independência informativas.
Quanto ao primeiro ponto deve-se dizer que, por um lado, o código deontológico dos jornalistas é como a generalidade dos códigos profissionais uma declaração geral de princípios que deixa bastante margem de manobra relativa a decisões particulares. Por outro, considerar esse código como um mecanismo eficaz para prevenir a manipulação informativa seria considerar os jornalistas como únicos, ou principais, responsáveis por essa manipulação.
O argumento de que a existência de múltiplos órgãos de comunicação social é por si só uma garantia de liberdade e pluralidade de informação é falacioso. Por um lado, quantidade não é nem nunca foi necessariamente sinónimo de qualidade nem de verdade. Por outro é necessário analisar de que diversidade se está a falar. É necessário recordar que a maioria dos órgãos de comunicação social são propriedade de grandes grupos económicos e financeiros.
Convém analisar a tendência geral para a liberalização neste sector. O Estado, embora defendendo o princípio da livre concorrência, criou uma legislação que limitou essa possibilidade a grandes grupos económicos. Um exemplo disso é o que se passou, há uns anos, com a legalização das rádios. Anteriormente, existia um grande número de rádios locais, muitas funcionando num sistema de amadorismo, que sendo, na sua maioria, independentes de grandes interesses económicos, garantiam uma considerável pluralidade e democraticidade informativa. Toda a legislação apontou, em parte por pressão de algumas das grandes rádios legalizadas, para a inviabilização, ou minimização, desta independência.
Por seu turno, no campo televisivo, a liberalização limitou-se à entrega a grupos económicos de canais. Note-se que mesmo esta “abertura” e a consequente perda do monopólio dos meios de comunicação audiovisuais por parte do Estado foi uma cedência difícil, que, em grande parte, ocorreu porque se antevia que a manutenção do monopólio estatal contribuiria, a curto ou médio prazo, para desencadear um fenómeno semelhante ao das rádios livres. Para o evitar, optou-se por entregar dois canais a grupos “seguros”.
A crescente tendência para o monopólio é confirmada pelo facto de existirem já grupos económicos que detêm, simultaneamente, canais de televisão, estações de rádio e órgãos de imprensa. Os diversos órgãos de comunicação social devem ser hoje encarados como o que realmente são: empresas concorrentes na venda de um mesmo produto, funcionando numa lógica semelhante à de quaisquer outras empresas no mercado.
A televisão deve ser considerada como um órgão de comunicação social muito particular e merece uma análise separada.
Em primeiro lugar, porque, por um variado número de motivos, tem um impacto e um alcance que, por exemplo, a imprensa não tem nem nunca teve. Em segundo lugar, e é esta a principal razão, porque sendo o meio de comunicação que tem possibilidade de levar mais longe o princípio do direito à informação é exactamente aquele que mais o desvirtua.
De facto, se a imprensa manteve uma forte ligação ao princípio da informação, independentemente desta poder ser limitada ou distorcida, a televisão remeteu esta para um lugar relativamente secundário – a informação não ocupa hoje mais de 8% -16% do tempo diário de emissão televisiva. Refira-se que o período de emissão diária de telenovelas oscila entre os 21% e os 32% do tempo total de emissão. Parece bastante evidente que , por exemplo, num noticiário com a duração de meia hora é impossível tratar qualquer assunto com um mínimo de profundidade. Ou seja, a informação televisiva para além de limitada é superficial.
Tudo isto não impediu, contudo, que tivesse sido o meio de comunicação que ganhou de longe a preferência da maioria das pessoas. Este facto, levou a que os seus defensores passassem a considerá-la praticamente intocável e acima de qualquer crítica. Emídio Rangel, director de informação e programas da SIC, a propósito da polémica sobre a violência na televisão, denunciou a existência de “fundamentalistas retrógrados que aparecem sempre em todas as ocasiões para combater o progresso e a inovação, são os eternos “velhos do Restelo” e os seus mecanismos de difamação da civilização. É assim desde tempos imemoriais. Sócrates também foi acusado pelos seus compatriotas de desviar a juventude com os seus postulados filosóficos” (Público, 2/12/94).
Estas afirmações são pouco explícitas, nomeadamente no que respeita à identificação da televisão com progresso, inovação e civilização. Não basta afirmar que a televisão constitui um progresso, é necessário explicar porquê. Caso contrário, corre-se o risco de se identificar indiscriminadamente progresso com qualquer novidade tecnológica. Um argumento que é sem dúvida perigoso porque tanto serve para justificar a televisão, a máquina de lavar louça, o último modelo de avião de combate ou a bomba atómica. O progresso e avanço civilizacional que determinada tecnologia constitui, deve medir-se pelas suas consequências e pela sua real utilidade, não pelo simples facto de existir. É necessário perguntar: Para que serve? Qual a sua utilidade? Tem alguma razão de existir? Se estas perguntas forem feitas relativamente à maioria dos electrodomésticos que temos em casa, a resposta é bastante óbvia. O mesmo não parece ocorrer relativamente à televisão. Uma vez que a função informativa da televisão se encontra muito diminuída a sua utilidade não parece muito evidente.
Naturalmente, a utilidade de que falo é a que se refere aos espectadores não a utilidade para os que dirigem o negócio; do mesmo modo que a utilidade de uma máquina de lavar louça deve ser medida pelas vantagens que dela tiram os seus utilizadores e não pelos lucros dos donos da empresa que a produz. Ora, é exactamente a vantagem dos espectadores de televisão que não é muito clara.
Contribui a televisão para a melhoria do nível intelectual, cultural e educativo e artístico dos espectadores? Para um aprofundamento da democracia através do alargamento do debate e da pluralidade de ideias e opiniões? Não só a resposta para todas estas questões é negativa, como a televisão contribui geralmente para agravar uma educação e cultura deficientes.
É normalmente alegado, pelos defensores da actual televisão, que ela não tem que cumprir funções que competem à escola, à família e a outro tipo de instituições. A televisão não é certamente responsável por todos os males da sociedade; a educação e cultura deficientes, bem como a falta de consciência ética e política dos indivíduos é um problema de base. Aquilo pelo que é responsável é por perpetuar sistemática e deliberadamente este estado de coisas. Os responsáveis televisivos têm perfeita consciência que a melhoria geral do nível intelectual da população contribuiria para alterações pouco agradáveis nos espectadores de televisão: interesse por assuntos extremamente “inconvenientes” e desejo de os debater profundamente; exigências cada vez maiores de participação nas decisões de programação e de orientação televisivas, etc. No fundo, conduziria a um desejo de democratização dos meios de comunicação.
É suposto a televisão ser uma instituição independente dos governos e que tem em conta a opinião dos seus espectadores. É também isto que Emídio Rangel parece afirmar quando discorda da intervenção governamental nos conteúdos televisivos: “...os governos não se devem envolver na “regularização” dos conteúdos comunicacionais. Qualquer “intervenção eficaz” nesse domínio significa a instauração de regimes censórios. A sociedade civil, a mesma que serve para escolher os deputados e os governos, tem capacidade e mecanismos para sancionar ou não a programação das televisões. Os seus gestos são de uma crueza terrível e os seus juízos inapeláveis. Ai daqueles que desprezem a existência desse Grande Júri.” Convém dizer que a actuação do governo no respeitante ao problema da violência na televisão, tem toda a aparência de ser apenas uma manobra política visando melhorar a sua imagem nacional e internacional, uma vez que tem à sua disposição os meios legais para impedir a transmissão de tais programas. A lei de televisão nº 58/90 proíbe que sejam transmitidos “...programas susceptíveis de influir negativamente na formação da personalidade das crianças ou adolescentes...” e estão previstas multas para punir qualquer infracção.
Parece, pois, que também se privilegia aqui a participação da sociedade civil, mas talvez seja melhor lermos o que é afirmado mais adiante na entrevista, para clarificar que tipo de participação é essa e quais os seus mecanismos.
“Se uma pessoa vale como eleitor de quatro em quatro anos, porque é que a sua escolha não é igualmente legítima e reconhecida no minuto a minuto da televisão? Não acham que é insultar a inteligência de milhões de pessoas a imposição de um gosto privado? Não acham que é um direito intocável dos cidadãos, em geral, ver o “Perdoa-me”, se lhes apetece esse entretenimento, ou rejeitarem a leitura de Foucault se não compreendem as suas teses?”
Embora tudo isto seja extremamente confuso parece já ser possível perceber quais são os tais mecanismos de controlo que tem a sociedade civil. Porém é conveniente fazer aqui um parêntesis para referir que a pergunta certa não é se as pessoas preferem ou não ver determinado programa, mas porque razão preferem ver esse programa. É que a questão do gosto, ou da preferência, só pode ser colocada quando se trata de uma escolha consciente, informada e com igualdade de oportunidades entre múltiplas opções. Tudo isto nos remeteria para a já anteriormente discutida, questão da qualidade dos programas e da educação e cultura dos espectadores.
Encerrado o parêntesis, voltemos aos mecanismos de participação dos telespectadores. Quanto a este aspecto, há nas declarações de Emídio Rangel uma confusão deliberada entre as sondagens de opinião e a intervenção dos cidadãos, com o intuito de dar uma imagem democrática da televisão. A este respeito, é necessário dizer que os indivíduos não têm hoje maior intervenção na televisão do que têm no mercado em geral. Ou seja, em ambos os casos são apenas consumidores. As sondagens relativas à preferência por determinados programas não são uma prova de democracia, mas antes uma prospecção do mercado que visa essencialmente determinar a cotação dos diversos espaços publicitários. O facto de uma empresa produzir um determinado modelo de sapatos que se sabe ter mais venda, pode ser apresentado como um exemplo de boa gestão comercial, mas nunca como um exemplo de democracia. Não parece haver razões para que se adopte para a televisão um critério diferente.
A televisão tem um discurso unilateral que convida o espectador à passividade. Isto acontece mesmo nos programas de debate político, económico ou social, que convidam o espectador a “participar”. Estes programas devem ser analisados sob três aspectos fundamentais: quem são os convidados, qual é o âmbito do debate e qual a natureza da participação dos espectadores. Os convidados são geralmente de áreas políticas muito pouco diversificadas, na maior parte dos casos membros ou figuras próximas dos dois partidos maioritários, o que é aliás um modo velado de promover o bipartidarismo, ou, na melhor das hipóteses, o debate é alargado aos outros partidos representados na Assembleia da República. Isto é normalmente justificado pelo facto de representarem a maioria do povo português. O voto já é por si próprio um direito tão reduzido e que dá origem a poderes tão amplos, que parece extremamente abusivo ser ainda utilizado pelos que dele beneficiam para se arrogarem o direito de falarem sobre qualquer assunto como se estivessem a expressar a opinião dos seus eleitores.
Estes programas, à partida limitados, servem para criar no espectador a ilusão de que o assunto se esgota no âmbito do debate e que só existem duas ou três alternativas possíveis. Um exemplo claro do que acabo de afirmar, foram os debates que tiveram lugar quando da queda dos regimes de Leste. Tratava-se sem dúvida de um tema de grande importância e interesse que teria merecido melhor tratamento. Em todos os programas que trataram o tema houve um pressuposto subjacente que nunca foi discutido: o do modelo de economia de mercado como única alternativa possível ao modelo “socialista”. Diga-se também, e nós somos totalmente insuspeitos nesse aspecto, que faltou honestidade intelectual às conexões que se pretenderam estabelecer entre a queda destes regimes e a rejeição da obra de Marx como um todo. De um modo geral, o tema foi apresentado como um triunfo e uma consolidação do modelo ocidental, pretendendo criar no espectadores a ilusão de que vivemos no melhor dos mundos possíveis, a que bastará limar umas arestas para ser perfeito. Aliás, quando são feitas críticas ao sistema político, económico ou social português, elas não visam o sistema em si, mas o seu atraso e deficiências quando comparado com modelos capitalistas mais avançados como o americano, o alemão ou o inglês.
Além de “bizarrias”, como alternativas à economia ou a participação dos cidadãos nos meios de comunicação, há assuntos muito mais banais que são tabu, como é por exemplo o caso da publicidade comercial. Um conjunto de debates sérios, no que é considerado o horário nobre, sobre o publicidade, os seus mecanismos de funcionamento e os efeitos que é suposto ter sobre os potenciais consumidores, de preferência através de uma exemplificação com anúncios que passam diariamente nos televisores, teria consequências desastrosas para qualquer canal de televisão. Ou melhor, não teria porque um programa desse género nunca seria aceite.
É neste contexto de debates À partida viciados que o espectador é incentivado a participar, geralmente através do seu voto telefónico em uma de duas opções, que só muito vagamente correspondem às suas opiniões. Estas votações telefónicas não servem absolutamente para nada, como aliás os próprios convidados do debate fazem questão de sublinhar ao afirmarem, sobretudo quando estas lhes são desfavoráveis, que para lhes ser atribuído significado seria necessário um estudo do universo dos espectadores, etc, etc.
Outra hipótese é a de meia dúzia de telespectadores poder expressar publicamente, por telefone, as suas opiniões em alguns segundos, maior parte dos quais gastos a cumprimentar os presentes e a agradecer a oportunidade de participar. É óbvio que a esmagadora maioria das pessoas não têm oportunidade de falar e aquelas a quem é dada essa possibilidade não têm tempo para dizer seja o que for, mas cria-se a ilusão de que os espectadores são ouvidos (é só a questão de ter a sorte de telefonar primeiro!).
A questão das alternativas ao actual sistema de comunicações é complexa. Embora seja argumentável que a televisão é um órgão tão poderoso que não pode ser democratizada e que se deve pura e simplesmente advogar a sua extinção, essa parece a solução menos interessante. Principalmente porque seria desistir de todas as potencialidades que a tecnologia televisiva pode oferecer.
Restam pois duas alternativas que não se excluem mutuamente: exigir uma maior participação nos actuais canais televisivos e nos outros meios de comunicação; criar canais e meios de comunicação alternativos.
A primeira solução, apenas praticável nos canais estatais passaria largamente por uma exigência do alargamento do tempo de antena das organizações de cidadãos com as mais diversas orientações e finalidades. Isto deve ser tentado apesar dos entraves e limitações que certamente serão colocadas e tendo sempre em conta o risco que comporta este tipo de participação: integração no sistema e reforço da aparência de democraticidade do canal em questão.
A melhor solução, embora a mais difícil, é a de criar meios de comunicação alternativos. Um projecto deste género, que poderia funcionar por exemplo em sistema cooperativo, deveria englobar o maior número possível de associações de índoles diversificadas: sindicais, políticas, culturais, regionais, etc. Deveria ser dedicado cuidado especial a evitar a monopolização por parte das organizações de maiores dimensões ou controle do projecto por parte de grupos económicos, reproduzindo assim o modelo vigente.
Mas o primeiro passo é o de alertar para os aspectos de manipulação, limitação e controlo da comunicação televisiva para desta maneira os cidadãos lançarem as bases para uma democracia mais significativa.
Oficial ou oficiosamente, mass media passou a dizer-se e a escrever-se, “órgãos de comunicação social” ou, de forma abreviada, “a comunicação social”. Um exame simples permite-nos verificar que de mass media a “comunicação social” a distância conceptual é enorme. Ou seja, “comunicação social” para significar mass media é uma péssima tradução. Mais: conceptualmente é uma fraude. De modo objectivo, o sintagma mass media não contém uma sinonímia de comunicação, e muito menos social, que implica uma relação directa. O que ele designa, de forma sintética e até um tanto rude, sem atavios idiomáticos, é um conjunto de meios cuja acção se destina a um consumo de massas; esses meios, como se sabe, são a imprensa, a rádio, os best-sellers, o cinema e sobretudo a televisão – um vasto e harmonioso conjunto a que poderemos chamar Ministério da Propaganda em lembrança do outro e que, comparado com este, até era rudimentar.
Esta curiosa congregação vocabular que dá pelo nome de “órgãos de comunicação social”, sugere insidiosamente a ideia duma grande liberdade e duma comunicação recíproca, aquela que dois ou mais interlocutores podem estabelecer entre si em condições de igualdade e simultaneidade. Mas “comunicação social” sinónimo de imprensa ou de televisão não tem estes atributos ; o que a define é justamente o contrário disso: o seu carácter unilateral, o facto de ser uma “voz do dono” emanando de um centro incontestado. De resto, com a concentração crescente das empresas proprietárias de jornais, revistas, rádios, produtoras de cinema e canais de televisão (concentração resultante da tendência geral do movimento económico e da ramificada implementação de impérios financeiros também nos sectores da indústria cultural), aquilo a que assistimos é à constituição progressiva dum nebuloso regime autocrático no domínio da informação e dos novos dogmas operacionais. Chamar “comunicação social” à imprensa ou à televisão significa assim uma inversão da realidade, constituindo isto, na ordem da linguagem, um processo ideológico de nomeação, típico da nova língua orweliana em que as palavras significam precisamente o seu contrário
(“ignorância é força, guerra é paz, liberdade é escravidão” – e, agora, televisão é comunicação).
Os interesses antagónicos das classes sociais, manifestam-se na própria linguagem, na terminologia, na capacidade ou incapacidade de nomearem os fenómenos. Por isso esta tão idílica tradução de mass media em português está longe de ser um fenómeno inocente; a sua fácil popularização ocorre numa época em que o abastardamento da linguagem e a sua redução aos cânones duma falsificação legitimada, analisado já por Orwell nos anos 40, se tornaram elementos orgânicos do controle difuso exercido por uma nova oligarquia que exprime, no plano da indústria cultural, o ponto de vista, cada vez mais único e absolutista da tirania económica.
A comunicação social realmente existente, no seu sentido verídico e não invertido, implica reciprocidade, implica a impossibilidade de alguém, entidade ou indivíduo, exercer um poder incontestável na sua manifestação imediata.
Mas será assim tão difícil traduzir em português mass media? De modo algum. A tradução até é simples: meios de massas, ou, facilitando um pouco, meios de informação de massas. Os hábitos, porém, como os monges, são muitas vezes despóticos – e capazes de proceder a eficientes lavagens ao cérebro. E por isso os cidadãos entretanto devidamente domesticados, para designar os poderes que os formatam gostarão mais facilmente de pronunciar: “órgãos de comunicação social”.
É verdade que o rei vai nu mas não gosta que lho digam.
E quanto a tornar os media mais democráticos? Há limites muito estreitos para isso. É como perguntar como podemos tornar as corporações mais democráticas? A única maneira de o fazer é vermo-nos livres delas. Se tivermos o poder concentrado, não digo que não possamos fazer alguma coisa, mas na verdade não se pode afectar a estrutura do poder porque fazê-lo seria uma revolução social. E se não estivermos prontos para uma revolução social, o poder vai estar noutro sítio, os media vão manter a sua estrutura actual e vão representar os seus interesses actuais. Não digo que não se deva fazer coisas, pois faz sentido tentar forçar os limites de um sistema.
E qual esperam que seja o ponto de vista resultante disto? Sem outros pressupostos prevê-se que resulta daí uma imagem do mundo, uma percepção do mundo que satisfaz as necessidades, os interesses e as percepções dos vendedores, dos compradores e do produto numa palavra da sociedade capitalista. E há outros factores a empurrar na mesma direcção.
Há outros media cuja função social básica é distrair. O objectivo desses media é embotar os cérebros das pessoas. Claro que estou a simplificar mas para 80% o que lhes interessa sobretudo é distrair as pessoas. Levá-las a ver a Liga de Futebol, a interessarem-se por assuntos bizarros ou por aquilo que se apanha nas prateleiras dum supermercado, ou pelo horóscopo ou por coisas fundamentalistas. Ou seja o que for, sabem que as desvia do que interessa e fazer isso importa reduzir a sua capacidade para pensar.
A secção desportiva é tratada noutro departamento especial. O jornalista desportivo tem de ser um especialista dos desportos. Ele tem de obter a sua história em cima do acontecimento desportivo.
O desporto é outro bom exemplo do sistema de doutrinação. Por um lado, oferece às pessoas algo a que prestem atenção e que não tem importância. Isso impede-as de se preocuparem com coisas da sua vida, que estejam a pensar no que hão-de fazer. É impressionante observar a inteligência que é usada pelas pessoas comuns no desporto. Ouvimos as estações de rádio e têm a informação mais exótica sobre toda a espécie de assuntos esotéricos. E a imprensa sem dúvida que faz muito isso. Mas tudo isto faz sentido. É uma maneira de formar atitudes irracionais de submissão à autoridade, coesão do grupo, liderança, na verdade, trata-se de treinar no nacionalismo patriótico irracional. Também é uma característica dos desportos competitivos. Se virem bem, acho que estas coisas têm de facto funções e é por isso que se dedica energia a apoiá-las e a criar uma base para elas. E por isso os anunciantes estão dispostos a pagá-las.
Se disser coisas consensuais, não preciso de provas, toda a gente está de acordo. Mas suponhamos que se diz algo de que as piedades convencionais não estão atafulhadas, que é no mínimo inesperado ou controverso como por exemplo, “Os melhores líderes políticos são preguiçosos e corruptos” ou “A Bíblia é talvez o livro mais genocida do nosso cânone” “A educação é um sistema de ignorância imposta” “Não há mais moralidade nos assuntos mundiais do que havia no tempo das invasões bárbaras”.
É natural que as pessoas queiram saber que se quis dizer. “Por que disse isso?” “Nunca ouvi nada parecido”. Se disse isso, tem de ter uma razão, uma prova ou melhor, várias, pois fez um comentário surpreendente. E não podemos apresentar provas se temos de ser concisos. É esse o espírito destes constrangimentos estruturais.
Sérgio Duarte, Jornal “A Batalha” nos anos 90
Mas para muitos espectadores a televisão é o mundo real. Conheço muita gente que diz: “Só é realidade se passar na televisão”. Por isso comparam a sua experiência real com o que observam no ecrã da televisão. Para algo ser real necessita da confirmação da imagem da televisão. Se isso não é metafísica, se isso não é a caverna de Platão, então não sei o que é.
Os meios de comunicação tiveram, alegadamente, como base um princípio extremamente meritório: tornar acessível à maioria das pessoas informações que de outro modo lhe estariam totalmente vedadas ou seriam de difícil acesso. Contudo, esta capacidade, ou poder, de viabilizar o direito à informação tem associado um outro poder, que é tudo menos meritório: o de controlar a informação divulgada. Este risco de manipulação informativa é tanto maior quanto os detentores deste poder não estão de modo algum sujeitos ao controlo dos interessados, do público em geral. Argumenta-se normalmente contra isto que:
Primeiro existe um auto-controlo que é em grande medida garantido pelo código deontológico dos jornalistas e pelas leis respeitantes à comunicação social, em geral. Em segundo a existência de diversos órgãos de comunicação social, dá ao público uma possibilidade de escolha que funciona como controlo da informação. Ou seja, os indivíduos podem sempre optar pelo órgão de comunicação social que consideram fornecer-lhes a melhor informação. A livre concorrência seria assim uma garantia da pluralidade e independência informativas.
Quanto ao primeiro ponto deve-se dizer que, por um lado, o código deontológico dos jornalistas é como a generalidade dos códigos profissionais uma declaração geral de princípios que deixa bastante margem de manobra relativa a decisões particulares. Por outro, considerar esse código como um mecanismo eficaz para prevenir a manipulação informativa seria considerar os jornalistas como únicos, ou principais, responsáveis por essa manipulação.
O argumento de que a existência de múltiplos órgãos de comunicação social é por si só uma garantia de liberdade e pluralidade de informação é falacioso. Por um lado, quantidade não é nem nunca foi necessariamente sinónimo de qualidade nem de verdade. Por outro é necessário analisar de que diversidade se está a falar. É necessário recordar que a maioria dos órgãos de comunicação social são propriedade de grandes grupos económicos e financeiros.
Convém analisar a tendência geral para a liberalização neste sector. O Estado, embora defendendo o princípio da livre concorrência, criou uma legislação que limitou essa possibilidade a grandes grupos económicos. Um exemplo disso é o que se passou, há uns anos, com a legalização das rádios. Anteriormente, existia um grande número de rádios locais, muitas funcionando num sistema de amadorismo, que sendo, na sua maioria, independentes de grandes interesses económicos, garantiam uma considerável pluralidade e democraticidade informativa. Toda a legislação apontou, em parte por pressão de algumas das grandes rádios legalizadas, para a inviabilização, ou minimização, desta independência.
Por seu turno, no campo televisivo, a liberalização limitou-se à entrega a grupos económicos de canais. Note-se que mesmo esta “abertura” e a consequente perda do monopólio dos meios de comunicação audiovisuais por parte do Estado foi uma cedência difícil, que, em grande parte, ocorreu porque se antevia que a manutenção do monopólio estatal contribuiria, a curto ou médio prazo, para desencadear um fenómeno semelhante ao das rádios livres. Para o evitar, optou-se por entregar dois canais a grupos “seguros”.
A crescente tendência para o monopólio é confirmada pelo facto de existirem já grupos económicos que detêm, simultaneamente, canais de televisão, estações de rádio e órgãos de imprensa. Os diversos órgãos de comunicação social devem ser hoje encarados como o que realmente são: empresas concorrentes na venda de um mesmo produto, funcionando numa lógica semelhante à de quaisquer outras empresas no mercado.
A televisão deve ser considerada como um órgão de comunicação social muito particular e merece uma análise separada.
Em primeiro lugar, porque, por um variado número de motivos, tem um impacto e um alcance que, por exemplo, a imprensa não tem nem nunca teve. Em segundo lugar, e é esta a principal razão, porque sendo o meio de comunicação que tem possibilidade de levar mais longe o princípio do direito à informação é exactamente aquele que mais o desvirtua.
De facto, se a imprensa manteve uma forte ligação ao princípio da informação, independentemente desta poder ser limitada ou distorcida, a televisão remeteu esta para um lugar relativamente secundário – a informação não ocupa hoje mais de 8% -16% do tempo diário de emissão televisiva. Refira-se que o período de emissão diária de telenovelas oscila entre os 21% e os 32% do tempo total de emissão. Parece bastante evidente que , por exemplo, num noticiário com a duração de meia hora é impossível tratar qualquer assunto com um mínimo de profundidade. Ou seja, a informação televisiva para além de limitada é superficial.
Tudo isto não impediu, contudo, que tivesse sido o meio de comunicação que ganhou de longe a preferência da maioria das pessoas. Este facto, levou a que os seus defensores passassem a considerá-la praticamente intocável e acima de qualquer crítica. Emídio Rangel, director de informação e programas da SIC, a propósito da polémica sobre a violência na televisão, denunciou a existência de “fundamentalistas retrógrados que aparecem sempre em todas as ocasiões para combater o progresso e a inovação, são os eternos “velhos do Restelo” e os seus mecanismos de difamação da civilização. É assim desde tempos imemoriais. Sócrates também foi acusado pelos seus compatriotas de desviar a juventude com os seus postulados filosóficos” (Público, 2/12/94).
Estas afirmações são pouco explícitas, nomeadamente no que respeita à identificação da televisão com progresso, inovação e civilização. Não basta afirmar que a televisão constitui um progresso, é necessário explicar porquê. Caso contrário, corre-se o risco de se identificar indiscriminadamente progresso com qualquer novidade tecnológica. Um argumento que é sem dúvida perigoso porque tanto serve para justificar a televisão, a máquina de lavar louça, o último modelo de avião de combate ou a bomba atómica. O progresso e avanço civilizacional que determinada tecnologia constitui, deve medir-se pelas suas consequências e pela sua real utilidade, não pelo simples facto de existir. É necessário perguntar: Para que serve? Qual a sua utilidade? Tem alguma razão de existir? Se estas perguntas forem feitas relativamente à maioria dos electrodomésticos que temos em casa, a resposta é bastante óbvia. O mesmo não parece ocorrer relativamente à televisão. Uma vez que a função informativa da televisão se encontra muito diminuída a sua utilidade não parece muito evidente.
Naturalmente, a utilidade de que falo é a que se refere aos espectadores não a utilidade para os que dirigem o negócio; do mesmo modo que a utilidade de uma máquina de lavar louça deve ser medida pelas vantagens que dela tiram os seus utilizadores e não pelos lucros dos donos da empresa que a produz. Ora, é exactamente a vantagem dos espectadores de televisão que não é muito clara.
Contribui a televisão para a melhoria do nível intelectual, cultural e educativo e artístico dos espectadores? Para um aprofundamento da democracia através do alargamento do debate e da pluralidade de ideias e opiniões? Não só a resposta para todas estas questões é negativa, como a televisão contribui geralmente para agravar uma educação e cultura deficientes.
É normalmente alegado, pelos defensores da actual televisão, que ela não tem que cumprir funções que competem à escola, à família e a outro tipo de instituições. A televisão não é certamente responsável por todos os males da sociedade; a educação e cultura deficientes, bem como a falta de consciência ética e política dos indivíduos é um problema de base. Aquilo pelo que é responsável é por perpetuar sistemática e deliberadamente este estado de coisas. Os responsáveis televisivos têm perfeita consciência que a melhoria geral do nível intelectual da população contribuiria para alterações pouco agradáveis nos espectadores de televisão: interesse por assuntos extremamente “inconvenientes” e desejo de os debater profundamente; exigências cada vez maiores de participação nas decisões de programação e de orientação televisivas, etc. No fundo, conduziria a um desejo de democratização dos meios de comunicação.
É suposto a televisão ser uma instituição independente dos governos e que tem em conta a opinião dos seus espectadores. É também isto que Emídio Rangel parece afirmar quando discorda da intervenção governamental nos conteúdos televisivos: “...os governos não se devem envolver na “regularização” dos conteúdos comunicacionais. Qualquer “intervenção eficaz” nesse domínio significa a instauração de regimes censórios. A sociedade civil, a mesma que serve para escolher os deputados e os governos, tem capacidade e mecanismos para sancionar ou não a programação das televisões. Os seus gestos são de uma crueza terrível e os seus juízos inapeláveis. Ai daqueles que desprezem a existência desse Grande Júri.” Convém dizer que a actuação do governo no respeitante ao problema da violência na televisão, tem toda a aparência de ser apenas uma manobra política visando melhorar a sua imagem nacional e internacional, uma vez que tem à sua disposição os meios legais para impedir a transmissão de tais programas. A lei de televisão nº 58/90 proíbe que sejam transmitidos “...programas susceptíveis de influir negativamente na formação da personalidade das crianças ou adolescentes...” e estão previstas multas para punir qualquer infracção.
Parece, pois, que também se privilegia aqui a participação da sociedade civil, mas talvez seja melhor lermos o que é afirmado mais adiante na entrevista, para clarificar que tipo de participação é essa e quais os seus mecanismos.
“Se uma pessoa vale como eleitor de quatro em quatro anos, porque é que a sua escolha não é igualmente legítima e reconhecida no minuto a minuto da televisão? Não acham que é insultar a inteligência de milhões de pessoas a imposição de um gosto privado? Não acham que é um direito intocável dos cidadãos, em geral, ver o “Perdoa-me”, se lhes apetece esse entretenimento, ou rejeitarem a leitura de Foucault se não compreendem as suas teses?”
Embora tudo isto seja extremamente confuso parece já ser possível perceber quais são os tais mecanismos de controlo que tem a sociedade civil. Porém é conveniente fazer aqui um parêntesis para referir que a pergunta certa não é se as pessoas preferem ou não ver determinado programa, mas porque razão preferem ver esse programa. É que a questão do gosto, ou da preferência, só pode ser colocada quando se trata de uma escolha consciente, informada e com igualdade de oportunidades entre múltiplas opções. Tudo isto nos remeteria para a já anteriormente discutida, questão da qualidade dos programas e da educação e cultura dos espectadores.
Encerrado o parêntesis, voltemos aos mecanismos de participação dos telespectadores. Quanto a este aspecto, há nas declarações de Emídio Rangel uma confusão deliberada entre as sondagens de opinião e a intervenção dos cidadãos, com o intuito de dar uma imagem democrática da televisão. A este respeito, é necessário dizer que os indivíduos não têm hoje maior intervenção na televisão do que têm no mercado em geral. Ou seja, em ambos os casos são apenas consumidores. As sondagens relativas à preferência por determinados programas não são uma prova de democracia, mas antes uma prospecção do mercado que visa essencialmente determinar a cotação dos diversos espaços publicitários. O facto de uma empresa produzir um determinado modelo de sapatos que se sabe ter mais venda, pode ser apresentado como um exemplo de boa gestão comercial, mas nunca como um exemplo de democracia. Não parece haver razões para que se adopte para a televisão um critério diferente.
A televisão tem um discurso unilateral que convida o espectador à passividade. Isto acontece mesmo nos programas de debate político, económico ou social, que convidam o espectador a “participar”. Estes programas devem ser analisados sob três aspectos fundamentais: quem são os convidados, qual é o âmbito do debate e qual a natureza da participação dos espectadores. Os convidados são geralmente de áreas políticas muito pouco diversificadas, na maior parte dos casos membros ou figuras próximas dos dois partidos maioritários, o que é aliás um modo velado de promover o bipartidarismo, ou, na melhor das hipóteses, o debate é alargado aos outros partidos representados na Assembleia da República. Isto é normalmente justificado pelo facto de representarem a maioria do povo português. O voto já é por si próprio um direito tão reduzido e que dá origem a poderes tão amplos, que parece extremamente abusivo ser ainda utilizado pelos que dele beneficiam para se arrogarem o direito de falarem sobre qualquer assunto como se estivessem a expressar a opinião dos seus eleitores.
Estes programas, à partida limitados, servem para criar no espectador a ilusão de que o assunto se esgota no âmbito do debate e que só existem duas ou três alternativas possíveis. Um exemplo claro do que acabo de afirmar, foram os debates que tiveram lugar quando da queda dos regimes de Leste. Tratava-se sem dúvida de um tema de grande importância e interesse que teria merecido melhor tratamento. Em todos os programas que trataram o tema houve um pressuposto subjacente que nunca foi discutido: o do modelo de economia de mercado como única alternativa possível ao modelo “socialista”. Diga-se também, e nós somos totalmente insuspeitos nesse aspecto, que faltou honestidade intelectual às conexões que se pretenderam estabelecer entre a queda destes regimes e a rejeição da obra de Marx como um todo. De um modo geral, o tema foi apresentado como um triunfo e uma consolidação do modelo ocidental, pretendendo criar no espectadores a ilusão de que vivemos no melhor dos mundos possíveis, a que bastará limar umas arestas para ser perfeito. Aliás, quando são feitas críticas ao sistema político, económico ou social português, elas não visam o sistema em si, mas o seu atraso e deficiências quando comparado com modelos capitalistas mais avançados como o americano, o alemão ou o inglês.
Além de “bizarrias”, como alternativas à economia ou a participação dos cidadãos nos meios de comunicação, há assuntos muito mais banais que são tabu, como é por exemplo o caso da publicidade comercial. Um conjunto de debates sérios, no que é considerado o horário nobre, sobre o publicidade, os seus mecanismos de funcionamento e os efeitos que é suposto ter sobre os potenciais consumidores, de preferência através de uma exemplificação com anúncios que passam diariamente nos televisores, teria consequências desastrosas para qualquer canal de televisão. Ou melhor, não teria porque um programa desse género nunca seria aceite.
É neste contexto de debates À partida viciados que o espectador é incentivado a participar, geralmente através do seu voto telefónico em uma de duas opções, que só muito vagamente correspondem às suas opiniões. Estas votações telefónicas não servem absolutamente para nada, como aliás os próprios convidados do debate fazem questão de sublinhar ao afirmarem, sobretudo quando estas lhes são desfavoráveis, que para lhes ser atribuído significado seria necessário um estudo do universo dos espectadores, etc, etc.
Outra hipótese é a de meia dúzia de telespectadores poder expressar publicamente, por telefone, as suas opiniões em alguns segundos, maior parte dos quais gastos a cumprimentar os presentes e a agradecer a oportunidade de participar. É óbvio que a esmagadora maioria das pessoas não têm oportunidade de falar e aquelas a quem é dada essa possibilidade não têm tempo para dizer seja o que for, mas cria-se a ilusão de que os espectadores são ouvidos (é só a questão de ter a sorte de telefonar primeiro!).
A questão das alternativas ao actual sistema de comunicações é complexa. Embora seja argumentável que a televisão é um órgão tão poderoso que não pode ser democratizada e que se deve pura e simplesmente advogar a sua extinção, essa parece a solução menos interessante. Principalmente porque seria desistir de todas as potencialidades que a tecnologia televisiva pode oferecer.
Restam pois duas alternativas que não se excluem mutuamente: exigir uma maior participação nos actuais canais televisivos e nos outros meios de comunicação; criar canais e meios de comunicação alternativos.
A primeira solução, apenas praticável nos canais estatais passaria largamente por uma exigência do alargamento do tempo de antena das organizações de cidadãos com as mais diversas orientações e finalidades. Isto deve ser tentado apesar dos entraves e limitações que certamente serão colocadas e tendo sempre em conta o risco que comporta este tipo de participação: integração no sistema e reforço da aparência de democraticidade do canal em questão.
A melhor solução, embora a mais difícil, é a de criar meios de comunicação alternativos. Um projecto deste género, que poderia funcionar por exemplo em sistema cooperativo, deveria englobar o maior número possível de associações de índoles diversificadas: sindicais, políticas, culturais, regionais, etc. Deveria ser dedicado cuidado especial a evitar a monopolização por parte das organizações de maiores dimensões ou controle do projecto por parte de grupos económicos, reproduzindo assim o modelo vigente.
Mas o primeiro passo é o de alertar para os aspectos de manipulação, limitação e controlo da comunicação televisiva para desta maneira os cidadãos lançarem as bases para uma democracia mais significativa.
Oficial ou oficiosamente, mass media passou a dizer-se e a escrever-se, “órgãos de comunicação social” ou, de forma abreviada, “a comunicação social”. Um exame simples permite-nos verificar que de mass media a “comunicação social” a distância conceptual é enorme. Ou seja, “comunicação social” para significar mass media é uma péssima tradução. Mais: conceptualmente é uma fraude. De modo objectivo, o sintagma mass media não contém uma sinonímia de comunicação, e muito menos social, que implica uma relação directa. O que ele designa, de forma sintética e até um tanto rude, sem atavios idiomáticos, é um conjunto de meios cuja acção se destina a um consumo de massas; esses meios, como se sabe, são a imprensa, a rádio, os best-sellers, o cinema e sobretudo a televisão – um vasto e harmonioso conjunto a que poderemos chamar Ministério da Propaganda em lembrança do outro e que, comparado com este, até era rudimentar.
Esta curiosa congregação vocabular que dá pelo nome de “órgãos de comunicação social”, sugere insidiosamente a ideia duma grande liberdade e duma comunicação recíproca, aquela que dois ou mais interlocutores podem estabelecer entre si em condições de igualdade e simultaneidade. Mas “comunicação social” sinónimo de imprensa ou de televisão não tem estes atributos ; o que a define é justamente o contrário disso: o seu carácter unilateral, o facto de ser uma “voz do dono” emanando de um centro incontestado. De resto, com a concentração crescente das empresas proprietárias de jornais, revistas, rádios, produtoras de cinema e canais de televisão (concentração resultante da tendência geral do movimento económico e da ramificada implementação de impérios financeiros também nos sectores da indústria cultural), aquilo a que assistimos é à constituição progressiva dum nebuloso regime autocrático no domínio da informação e dos novos dogmas operacionais. Chamar “comunicação social” à imprensa ou à televisão significa assim uma inversão da realidade, constituindo isto, na ordem da linguagem, um processo ideológico de nomeação, típico da nova língua orweliana em que as palavras significam precisamente o seu contrário
(“ignorância é força, guerra é paz, liberdade é escravidão” – e, agora, televisão é comunicação).
Os interesses antagónicos das classes sociais, manifestam-se na própria linguagem, na terminologia, na capacidade ou incapacidade de nomearem os fenómenos. Por isso esta tão idílica tradução de mass media em português está longe de ser um fenómeno inocente; a sua fácil popularização ocorre numa época em que o abastardamento da linguagem e a sua redução aos cânones duma falsificação legitimada, analisado já por Orwell nos anos 40, se tornaram elementos orgânicos do controle difuso exercido por uma nova oligarquia que exprime, no plano da indústria cultural, o ponto de vista, cada vez mais único e absolutista da tirania económica.
A comunicação social realmente existente, no seu sentido verídico e não invertido, implica reciprocidade, implica a impossibilidade de alguém, entidade ou indivíduo, exercer um poder incontestável na sua manifestação imediata.
Mas será assim tão difícil traduzir em português mass media? De modo algum. A tradução até é simples: meios de massas, ou, facilitando um pouco, meios de informação de massas. Os hábitos, porém, como os monges, são muitas vezes despóticos – e capazes de proceder a eficientes lavagens ao cérebro. E por isso os cidadãos entretanto devidamente domesticados, para designar os poderes que os formatam gostarão mais facilmente de pronunciar: “órgãos de comunicação social”.
É verdade que o rei vai nu mas não gosta que lho digam.
E quanto a tornar os media mais democráticos? Há limites muito estreitos para isso. É como perguntar como podemos tornar as corporações mais democráticas? A única maneira de o fazer é vermo-nos livres delas. Se tivermos o poder concentrado, não digo que não possamos fazer alguma coisa, mas na verdade não se pode afectar a estrutura do poder porque fazê-lo seria uma revolução social. E se não estivermos prontos para uma revolução social, o poder vai estar noutro sítio, os media vão manter a sua estrutura actual e vão representar os seus interesses actuais. Não digo que não se deva fazer coisas, pois faz sentido tentar forçar os limites de um sistema.
E qual esperam que seja o ponto de vista resultante disto? Sem outros pressupostos prevê-se que resulta daí uma imagem do mundo, uma percepção do mundo que satisfaz as necessidades, os interesses e as percepções dos vendedores, dos compradores e do produto numa palavra da sociedade capitalista. E há outros factores a empurrar na mesma direcção.
Há outros media cuja função social básica é distrair. O objectivo desses media é embotar os cérebros das pessoas. Claro que estou a simplificar mas para 80% o que lhes interessa sobretudo é distrair as pessoas. Levá-las a ver a Liga de Futebol, a interessarem-se por assuntos bizarros ou por aquilo que se apanha nas prateleiras dum supermercado, ou pelo horóscopo ou por coisas fundamentalistas. Ou seja o que for, sabem que as desvia do que interessa e fazer isso importa reduzir a sua capacidade para pensar.
A secção desportiva é tratada noutro departamento especial. O jornalista desportivo tem de ser um especialista dos desportos. Ele tem de obter a sua história em cima do acontecimento desportivo.
O desporto é outro bom exemplo do sistema de doutrinação. Por um lado, oferece às pessoas algo a que prestem atenção e que não tem importância. Isso impede-as de se preocuparem com coisas da sua vida, que estejam a pensar no que hão-de fazer. É impressionante observar a inteligência que é usada pelas pessoas comuns no desporto. Ouvimos as estações de rádio e têm a informação mais exótica sobre toda a espécie de assuntos esotéricos. E a imprensa sem dúvida que faz muito isso. Mas tudo isto faz sentido. É uma maneira de formar atitudes irracionais de submissão à autoridade, coesão do grupo, liderança, na verdade, trata-se de treinar no nacionalismo patriótico irracional. Também é uma característica dos desportos competitivos. Se virem bem, acho que estas coisas têm de facto funções e é por isso que se dedica energia a apoiá-las e a criar uma base para elas. E por isso os anunciantes estão dispostos a pagá-las.
Se disser coisas consensuais, não preciso de provas, toda a gente está de acordo. Mas suponhamos que se diz algo de que as piedades convencionais não estão atafulhadas, que é no mínimo inesperado ou controverso como por exemplo, “Os melhores líderes políticos são preguiçosos e corruptos” ou “A Bíblia é talvez o livro mais genocida do nosso cânone” “A educação é um sistema de ignorância imposta” “Não há mais moralidade nos assuntos mundiais do que havia no tempo das invasões bárbaras”.
É natural que as pessoas queiram saber que se quis dizer. “Por que disse isso?” “Nunca ouvi nada parecido”. Se disse isso, tem de ter uma razão, uma prova ou melhor, várias, pois fez um comentário surpreendente. E não podemos apresentar provas se temos de ser concisos. É esse o espírito destes constrangimentos estruturais.
Sérgio Duarte, Jornal “A Batalha” nos anos 90
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