Pela primeira vez, envio um comentário a um post (até porque sou uma frequentadora muito irregular da blogosfera). Deve ser porque tudo isto me toca muito profundamente...
Comecei a leccionar numa idade algo tardia (33 anos) e, portanto, o "fabuloso" vencimento correspondente ao 10.º escalão sempre esteve mais ou menos fora do meu alcance, assim como a reforma em idade de aproveitá-la.
Sou professora de História, aquela disciplina do saber que, objectivamente, na opinião do vulgo (leia-se, da maior parte dos alunos e respectivos pais), não serve para nada (provavelmente, ainda menos do que a Filosofia, a que alguns, pelo menos, ainda atribuem a capacidade de ensinar a pensar - e, de qualquer maneira, os alunos só têm de "aturar" a Filosofia durante dois anos; ao passo que a História "massacra-os" desde o 1.º ciclo... ). Eu própria, se me perguntarem, ou melhor, quando me perguntam, tenho dificuldade em responder, a não ser com uma série de abstracções que, para essas mesmas pessoas, não significam nada, penso eu que por não se traduzirem em benefícios materiais - dinheiro, vantagem competitiva sobre outros indivíduos, contributo para o progresso tecnológico... Não quero fazer aqui o papel da desgraçadinha, mas parece-me que, embora o "Saber" esteja por igual desvalorizado em todos os seus ramos, as ciências exactas, mesmo na sua componente teórica, ainda obtêm o reconhecimento (mais uma vez, por parte apenas de alguns) de que contribuem para fazer avançar o tal "progresso"; e às outras ciências sociais (Economia, Sociologia, Psicologia, Direito - o Direito é uma ciência social?) também é reconhecido algum contributo para o regular funcionamento das sociedades - quanto mais não seja, pelo estatuto de que gozam nos EUA, modelo mais ou menos subliminar de toda a sociedade ocidental.
Sempre tentei avaliar os meus alunos segundo critérios de exigência que, aliás, eles conheciam (nunca ocultei o meu processo de avaliação, nunca guardei "cartas na manga", nunca pensei que 20 é só para o professor...) - mas constatei, com desgosto, que, ao longo dos anos, tinha vindo a afrouxar essa exigência. E, mesmo assim, fui muitas vezes considerada, inclusive por grande parte dos colegas de conselho de turma, em reuniões de avaliação, como "màzinha". Também sempre considerei, tanto quanto me foi possível, as especificidades dos alunos e das turmas: fiz testes mais difíceis para turmas melhores (e disse-lhes, e tive a satisfação de ver que se orgulhavam disso), dei notas superiores à simples média a alunos que se destacavam em turmas menos estimulantes e também àqueles que se esforçavam por melhorar (por oposição àqueles que, já sendo medianos ou bons à partida, nada faziam para se superar). Há seis anos, descontente porque, precisamente, não estava a ensinar ninguém - leccionava o ensino recorrente, e havia dias (noites) em que só tinha um aluno -, concorri (não foi cunha) a um serviço central do ME. Este ano, mais uma vez descontente, tanto com as orientações políticas para o subsector da Educação coordenado por esse serviço, como com a política interna do organismo, decidi não renovar a minha requisição (decisão minha, e não do organismo).
E assim, em 2006-2007 estarei outra vez na minha escola. E, pela primeira vez, tenho medo. Talvez um pouco dos alunos, embora, por nunca me ter defrontado com problemas disciplinares que não conseguisse resolver, me custe a crer que tal me possa vir a acontecer - mas, enfim, em seis anos as coisas mudam muito, e os meus colegas devem ter razão ao dizer que, nesse aspecto, está tudo muito pior. Mas de quem eu tenho medo é da Senhora Ministra e desta sua política, e dos reflexos que isso vai ter na minha prática docente e no meu relacionamento com os alunos. Eu costumava dizer-lhes que não queria ser amiga deles, nem que eles fossem meus amigos: a amizade - justificava eu - é algo que se escolhe e se constrói, e não uma obrigação (e tive a satisfação de fazer alguns amigos - não muitos, é certo, mas é como no resto - entre os meus alunos); o que tínhamos era uma relação de trabalho e, portanto, de respeito. Mas nunca considerei - e não queria que eles o fizessem em relação a mim - os meus alunos como "o Inimigo". E agora? Será que é com isso que me vou deparar?
Desculpem, este é o meu defeito (um dos): não sou nada sintética, penso "em árvore", como alguém me disse ("e é por isso que gostas tanto do Proust", disse-me a mesma pessoa). Também é por isso que o único medo que sempre tive da avaliação foi na questão do cumprimento dos programas - preferia que os meus alunos começassem a gostar e a compreender a História do que dar "a matéria" toda até ao fim... Ainda bem que nunca dei aulas ao 12.º ano! De resto, sempre fiz os meus relatórios com toda a verdade (ah! não sabiam que era preciso fazê-lo, e ser avaliado por ele? Julgavam que a progressão era "automática"? Só para que fiquem a saber, perdi - para sempre - dois anos da minha carreira porque não apresentei o dito relatório na altura própria) e as acções de formação que frequentei tinham a ver com a minha disciplina e/ou com a prática pedagógica. Progredi com justiça, acho eu.
Mas agora? Com justiça, nunca será, porque este novo método está inquinado à partida. A Senhora Ministra não acha que 20 é só para ela, mas acha que 20 (ou seja, Excelente) é só para 5% dos professores. Quem disse? Numa escola de excelência, daquelas que ficam em primeiro lugar nos rankings, que é o que parece contar para a avaliação do sistema educativo, não haverá mais de 5% de professores excelentes? Custa-me a crer, pois isso quereria dizer que, a muitas turmas, não "calharia" nenhum desses... Sempre fui contra o numerus clausus no acesso ao conhecimento e agora, aos 50 anos, deparo-me com ele no acesso ao re conhecimento? Note-se que eu não me considero uma professora excelente - além do grande defeito que já referi, tenho outros: falto, por vezes (nunca até ao limite, como acontece com muitos alunos, mas algumas vezes durante o ano), não me actualizo cientificamente tanto como deveria (como acho que deveria), há dias em que me falta a paciência, tenho tendência para ser expositiva (tento contrariá-la, mas ela está lá)... não posso aspirar à excelência. Mas detesto que me coarctem a possibilidade de a atingir!
Para terminar, a primeira razão que me levou a escrever este comentário - que se transformou num desabafo, desculpe... Assim que ouvi dizer que os encarregados de educação iriam participar na avaliação dos professores, ironizei de um modo que, depois, verifiquei não ser original, pois muita gente pensou, disse e escreveu o mesmo: "E os médicos, vão ser avaliados pelos doentes? E os juízes, pelos réus? Claro que não!"
E não, por dois motivos: o primeiro é que, se alguém o sugerisse, estas duas classes profissionais paralisariam a saúde e a justiça. Mas, se isso não acontece com os professores, a culpa é maioritariamente sua (e só não digo totalmente porque penso que a greve é mais difícil, do ponto de vista económico, para os professores do que para os médicos e juízes - mas não tenho a certeza, pois não conheço as respectivas tabelas salariais) porque, como classe, não são lá muito unidos.
Mas no segundo é que bate o ponto: a profissão docente não é respeitada. No fundo, no fundo, continua a persistir a velha convicção de que "vai para professor quem não sabe fazer mais nada". Senão, vejamos: o primeiro argumento dos médicos e dos juízes seria, penso eu, que não pode julgar actos médicos ou procedimentos jurídicos quem não tenha conhecimento do assunto. E teriam toda a razão. Um doente não sabe se o medicamento x o curaria, em vez do y, que o deixou na mesma (ou pior); ou se o facto de não ter melhorado após uma cirurgia se deveu a esta ter sido mal conduzida, ou, pura e simplesmente, ao seu próprio organismo, que não reagiu como era suposto. Também o réu, que foi considerado culpado, regra geral, não conhece a lei, ou o conjunto de leis, a cuja luz o juiz o condenou (para já não falar das vítimas, e seus familiares, que têm sempre tendência a exigir punições mais rigorosas, mesmo quando a lei as não permite). E então, com os juízes, a avaliação feita pelos julgados havia de ser bonita: aqueles que fossem, muito provavelmente, piores juízes, os que, por deficiente conhecimento da lei ou da função, deixassem "escapar" mais culpados, é que seriam mais bem avaliados... E porque é que ninguém pensa o mesmo a respeito da profissão docente? Porque toda a gente acha que ser professor não requer nenhum conhecimento específico. Tal como somos todos treinadores de bancada, também somos todos professores de bancada... E é por isso que os encarregados de educação (ou alguém por eles) pensam que têm competência para avaliar os professores: é porque acham, ou alguém por eles, que também podiam sê-lo, pois ser professor não requer competências, nem conhecimentos por aí além... E mesmo que os pais só avaliem as competências relacionais dos professores (ainda não li a proposta de alteração ao ECD), o que também os pacientes poderiam fazer com os médicos (mostrar interesse pelo paciente, disponibilidade para o atender e entender, conhecer a fundo a sua história clínica e, até, pessoal - e quantas injustiças não se cometeriam, mesmo assim, como o sabem todos os que conhecem o absurdo número de doentes que cada médico de família tem a seu cargo...), mais uma vez, teriam interesses a defender, e avaliariam baseados em testemunhos de terceiros: os seus educandos, que podem incompatibilizar-se com o professor por muitas razões - entre as quais, obviamente, a de ele ser um mau professor (também os há, como há maus médicos e maus juízes).
Nesta comparação, até a Senhora Ministra me veio dar razão, quando disse que os bons médicos procuram os casos mais difíceis, e os bons professores rejeitam as turmas difíceis, que ficam para os professores mais inexperientes. Acontece frequentemente - embora nem sempre e, como não sou adepta das estatísticas por ouvir dizer (a propósito, a Senhora Ministra não vem do ISCTE? não é lá que se ensina Estatística, e que esta deve ser baseada em dados fiáveis e o mais rigorosos possível?), não faço ideia se maioritariamente. Convém dizer que a Senhora Ministra está a chamar aqui "bons" aos que estão no topo da carreira, ou lá perto, o que eu não vou aqui contestar; mas como a progressão não se faz só por mérito (e vai continuar na mesma), mas também por tempo de serviço, os professores que estão no topo também já têm muito desgaste - e ser professor é desgastante, como qualquer progenitor admitiria se pensasse, honestamente (eu já pensei, porque também sou mãe), no cansaço que dá criar um filho, com o qual, para mais, tem uma ligação afectiva, de uma profundidade que não se pode exigir a quem contacta com milhares de crianças ou jovens, na sua vida profissional.
Mas, voltando às palavras da Senhora Ministra, porque é que os médicos mais experientes procuram os casos mais difíceis (para além, obviamente, do amor ao conhecimento e da preocupação com os seus doentes - mas, neste caso, todos os doentes são merecedores da sua dedicação, e não apenas os "casos difíceis")?
Porque, como aliás lhes é devido, é por esses que se tornam conhecidos e mais apreciados. Salvar alguém da morte é, por certo, mais compensador do que curar uma constipação - tanto em satisfação pessoal como em reconhecimento social. E aos professores, alguém reconhece (ou vai reconhecer) mais mérito em abrir portas para um futuro decente, ainda que mediano, a jovens que têm condições de vida "indecentes" do que a conduzir jovens das assim chamadas elites (que também merecem toda a atenção, tal como o doente apenas constipado) à educação superior, e de qualidade, a que já estariam "destinados"? E falo em "futuro mediano" porque, por vezes, lá se reconhece algum mérito aos professores que ajudaram (sendo o maior esforço do próprio, claro) um jovem desprivilegiado a alcançar um estatuto cultural, social e económico elevado. Mas, na comparação que tenho vindo a fazer, isso seria o mesmo que só reconhecer mérito ao médico que, salvando um doente da morte, o transformasse no campeão olímpico que ele, antes da sua intervenção, nunca teria pretendido ser! Ao contrário, o que geralmente sucede a uma intervenção médica in extremis é, precisamente, a possibilidade de continuar a viver uma vida regular, digamos "mediana", quando não menos do que isso. Além do mais, desculpa-se esse médico quando falha: ou porque o doente não seguiu os seus conselhos à risca (ora apliquem lá isto à maioria dos alunos, se fazem favor! Ah! Ah! Ah!) ou porque, pura e simplesmente, há um limite para a luta do médico contra a doença e a morte. E aqui vai uma novidade: também há um limite para aquilo que um professor pode fazer pelos seus alunos. Tal como a intervenção do médico pode esbarrar na constituição física e psicológica do doente, e nas suas condições de vida (por exemplo, se não tiver dinheiro para prosseguir o tratamento), também a intervenção do professor pode esbarrar nas aptidões dos alunos, e nas suas condições sócio-económicas. E, finalmente, pode imobilizar-se frente ao maior obstáculo de todos: o aluno, pura e simplesmente, não ter vontade de aprender. Como eu costumava dizer aos meus, de todas as idades, aprender dá trabalho; e, por isso, é preciso querer. Costumava lembrar-lhes algo que, por certo, não recordavam: as quedas que tinham dado, os bate-cus e cabeçadas, os joelhos esfolados e os galos na testa de quando tinham aprendido a andar. E dizia-lhes que nunca tinha tido um aluno que não soubesse andar - porque, apesar de todos esses contratempos, e até dores e mazelas, eles tinham querido aprender a andar. E tinham mesmo aprendido! Só quando tiverem um desejo de saber tão grande como o que tiveram de andar (e, para tanto, também seria necessário que a sociedade o valorizasse, que fosse algo apetecível - mas isso são contos ainda mais largos...) podem as crianças e jovens ultrapassar todos os obstáculos - até os maus professores! E aí, sim, os bons professores vão fazer a diferença: porque alguns alunos não vão limitar-se a ultrapassar obstáculos, vão abrir caminhos novos, e, no fim, talvez possam dizer que os professores os ajudaram a abri-los ou, pelo menos, lhes mostraram que era possível fazê-lo.
Peço desculpa, Francisco Trindade, pelo abuso da sua paciência. Ia também pedir desculpa pelo arroubo de lirismo do período final, mas não peço. De vez em quando, ainda é permitido sonhar, não é?
Obrigada.
Paula Bernardes-Silva
Professora do Quadro de Nomeação Definitiva
6.º escalão (seria 7.º, se este ano não tivessem sido congelados)
Comecei a leccionar numa idade algo tardia (33 anos) e, portanto, o "fabuloso" vencimento correspondente ao 10.º escalão sempre esteve mais ou menos fora do meu alcance, assim como a reforma em idade de aproveitá-la.
Sou professora de História, aquela disciplina do saber que, objectivamente, na opinião do vulgo (leia-se, da maior parte dos alunos e respectivos pais), não serve para nada (provavelmente, ainda menos do que a Filosofia, a que alguns, pelo menos, ainda atribuem a capacidade de ensinar a pensar - e, de qualquer maneira, os alunos só têm de "aturar" a Filosofia durante dois anos; ao passo que a História "massacra-os" desde o 1.º ciclo... ). Eu própria, se me perguntarem, ou melhor, quando me perguntam, tenho dificuldade em responder, a não ser com uma série de abstracções que, para essas mesmas pessoas, não significam nada, penso eu que por não se traduzirem em benefícios materiais - dinheiro, vantagem competitiva sobre outros indivíduos, contributo para o progresso tecnológico... Não quero fazer aqui o papel da desgraçadinha, mas parece-me que, embora o "Saber" esteja por igual desvalorizado em todos os seus ramos, as ciências exactas, mesmo na sua componente teórica, ainda obtêm o reconhecimento (mais uma vez, por parte apenas de alguns) de que contribuem para fazer avançar o tal "progresso"; e às outras ciências sociais (Economia, Sociologia, Psicologia, Direito - o Direito é uma ciência social?) também é reconhecido algum contributo para o regular funcionamento das sociedades - quanto mais não seja, pelo estatuto de que gozam nos EUA, modelo mais ou menos subliminar de toda a sociedade ocidental.
Sempre tentei avaliar os meus alunos segundo critérios de exigência que, aliás, eles conheciam (nunca ocultei o meu processo de avaliação, nunca guardei "cartas na manga", nunca pensei que 20 é só para o professor...) - mas constatei, com desgosto, que, ao longo dos anos, tinha vindo a afrouxar essa exigência. E, mesmo assim, fui muitas vezes considerada, inclusive por grande parte dos colegas de conselho de turma, em reuniões de avaliação, como "màzinha". Também sempre considerei, tanto quanto me foi possível, as especificidades dos alunos e das turmas: fiz testes mais difíceis para turmas melhores (e disse-lhes, e tive a satisfação de ver que se orgulhavam disso), dei notas superiores à simples média a alunos que se destacavam em turmas menos estimulantes e também àqueles que se esforçavam por melhorar (por oposição àqueles que, já sendo medianos ou bons à partida, nada faziam para se superar). Há seis anos, descontente porque, precisamente, não estava a ensinar ninguém - leccionava o ensino recorrente, e havia dias (noites) em que só tinha um aluno -, concorri (não foi cunha) a um serviço central do ME. Este ano, mais uma vez descontente, tanto com as orientações políticas para o subsector da Educação coordenado por esse serviço, como com a política interna do organismo, decidi não renovar a minha requisição (decisão minha, e não do organismo).
E assim, em 2006-2007 estarei outra vez na minha escola. E, pela primeira vez, tenho medo. Talvez um pouco dos alunos, embora, por nunca me ter defrontado com problemas disciplinares que não conseguisse resolver, me custe a crer que tal me possa vir a acontecer - mas, enfim, em seis anos as coisas mudam muito, e os meus colegas devem ter razão ao dizer que, nesse aspecto, está tudo muito pior. Mas de quem eu tenho medo é da Senhora Ministra e desta sua política, e dos reflexos que isso vai ter na minha prática docente e no meu relacionamento com os alunos. Eu costumava dizer-lhes que não queria ser amiga deles, nem que eles fossem meus amigos: a amizade - justificava eu - é algo que se escolhe e se constrói, e não uma obrigação (e tive a satisfação de fazer alguns amigos - não muitos, é certo, mas é como no resto - entre os meus alunos); o que tínhamos era uma relação de trabalho e, portanto, de respeito. Mas nunca considerei - e não queria que eles o fizessem em relação a mim - os meus alunos como "o Inimigo". E agora? Será que é com isso que me vou deparar?
Desculpem, este é o meu defeito (um dos): não sou nada sintética, penso "em árvore", como alguém me disse ("e é por isso que gostas tanto do Proust", disse-me a mesma pessoa). Também é por isso que o único medo que sempre tive da avaliação foi na questão do cumprimento dos programas - preferia que os meus alunos começassem a gostar e a compreender a História do que dar "a matéria" toda até ao fim... Ainda bem que nunca dei aulas ao 12.º ano! De resto, sempre fiz os meus relatórios com toda a verdade (ah! não sabiam que era preciso fazê-lo, e ser avaliado por ele? Julgavam que a progressão era "automática"? Só para que fiquem a saber, perdi - para sempre - dois anos da minha carreira porque não apresentei o dito relatório na altura própria) e as acções de formação que frequentei tinham a ver com a minha disciplina e/ou com a prática pedagógica. Progredi com justiça, acho eu.
Mas agora? Com justiça, nunca será, porque este novo método está inquinado à partida. A Senhora Ministra não acha que 20 é só para ela, mas acha que 20 (ou seja, Excelente) é só para 5% dos professores. Quem disse? Numa escola de excelência, daquelas que ficam em primeiro lugar nos rankings, que é o que parece contar para a avaliação do sistema educativo, não haverá mais de 5% de professores excelentes? Custa-me a crer, pois isso quereria dizer que, a muitas turmas, não "calharia" nenhum desses... Sempre fui contra o numerus clausus no acesso ao conhecimento e agora, aos 50 anos, deparo-me com ele no acesso ao re conhecimento? Note-se que eu não me considero uma professora excelente - além do grande defeito que já referi, tenho outros: falto, por vezes (nunca até ao limite, como acontece com muitos alunos, mas algumas vezes durante o ano), não me actualizo cientificamente tanto como deveria (como acho que deveria), há dias em que me falta a paciência, tenho tendência para ser expositiva (tento contrariá-la, mas ela está lá)... não posso aspirar à excelência. Mas detesto que me coarctem a possibilidade de a atingir!
Para terminar, a primeira razão que me levou a escrever este comentário - que se transformou num desabafo, desculpe... Assim que ouvi dizer que os encarregados de educação iriam participar na avaliação dos professores, ironizei de um modo que, depois, verifiquei não ser original, pois muita gente pensou, disse e escreveu o mesmo: "E os médicos, vão ser avaliados pelos doentes? E os juízes, pelos réus? Claro que não!"
E não, por dois motivos: o primeiro é que, se alguém o sugerisse, estas duas classes profissionais paralisariam a saúde e a justiça. Mas, se isso não acontece com os professores, a culpa é maioritariamente sua (e só não digo totalmente porque penso que a greve é mais difícil, do ponto de vista económico, para os professores do que para os médicos e juízes - mas não tenho a certeza, pois não conheço as respectivas tabelas salariais) porque, como classe, não são lá muito unidos.
Mas no segundo é que bate o ponto: a profissão docente não é respeitada. No fundo, no fundo, continua a persistir a velha convicção de que "vai para professor quem não sabe fazer mais nada". Senão, vejamos: o primeiro argumento dos médicos e dos juízes seria, penso eu, que não pode julgar actos médicos ou procedimentos jurídicos quem não tenha conhecimento do assunto. E teriam toda a razão. Um doente não sabe se o medicamento x o curaria, em vez do y, que o deixou na mesma (ou pior); ou se o facto de não ter melhorado após uma cirurgia se deveu a esta ter sido mal conduzida, ou, pura e simplesmente, ao seu próprio organismo, que não reagiu como era suposto. Também o réu, que foi considerado culpado, regra geral, não conhece a lei, ou o conjunto de leis, a cuja luz o juiz o condenou (para já não falar das vítimas, e seus familiares, que têm sempre tendência a exigir punições mais rigorosas, mesmo quando a lei as não permite). E então, com os juízes, a avaliação feita pelos julgados havia de ser bonita: aqueles que fossem, muito provavelmente, piores juízes, os que, por deficiente conhecimento da lei ou da função, deixassem "escapar" mais culpados, é que seriam mais bem avaliados... E porque é que ninguém pensa o mesmo a respeito da profissão docente? Porque toda a gente acha que ser professor não requer nenhum conhecimento específico. Tal como somos todos treinadores de bancada, também somos todos professores de bancada... E é por isso que os encarregados de educação (ou alguém por eles) pensam que têm competência para avaliar os professores: é porque acham, ou alguém por eles, que também podiam sê-lo, pois ser professor não requer competências, nem conhecimentos por aí além... E mesmo que os pais só avaliem as competências relacionais dos professores (ainda não li a proposta de alteração ao ECD), o que também os pacientes poderiam fazer com os médicos (mostrar interesse pelo paciente, disponibilidade para o atender e entender, conhecer a fundo a sua história clínica e, até, pessoal - e quantas injustiças não se cometeriam, mesmo assim, como o sabem todos os que conhecem o absurdo número de doentes que cada médico de família tem a seu cargo...), mais uma vez, teriam interesses a defender, e avaliariam baseados em testemunhos de terceiros: os seus educandos, que podem incompatibilizar-se com o professor por muitas razões - entre as quais, obviamente, a de ele ser um mau professor (também os há, como há maus médicos e maus juízes).
Nesta comparação, até a Senhora Ministra me veio dar razão, quando disse que os bons médicos procuram os casos mais difíceis, e os bons professores rejeitam as turmas difíceis, que ficam para os professores mais inexperientes. Acontece frequentemente - embora nem sempre e, como não sou adepta das estatísticas por ouvir dizer (a propósito, a Senhora Ministra não vem do ISCTE? não é lá que se ensina Estatística, e que esta deve ser baseada em dados fiáveis e o mais rigorosos possível?), não faço ideia se maioritariamente. Convém dizer que a Senhora Ministra está a chamar aqui "bons" aos que estão no topo da carreira, ou lá perto, o que eu não vou aqui contestar; mas como a progressão não se faz só por mérito (e vai continuar na mesma), mas também por tempo de serviço, os professores que estão no topo também já têm muito desgaste - e ser professor é desgastante, como qualquer progenitor admitiria se pensasse, honestamente (eu já pensei, porque também sou mãe), no cansaço que dá criar um filho, com o qual, para mais, tem uma ligação afectiva, de uma profundidade que não se pode exigir a quem contacta com milhares de crianças ou jovens, na sua vida profissional.
Mas, voltando às palavras da Senhora Ministra, porque é que os médicos mais experientes procuram os casos mais difíceis (para além, obviamente, do amor ao conhecimento e da preocupação com os seus doentes - mas, neste caso, todos os doentes são merecedores da sua dedicação, e não apenas os "casos difíceis")?
Porque, como aliás lhes é devido, é por esses que se tornam conhecidos e mais apreciados. Salvar alguém da morte é, por certo, mais compensador do que curar uma constipação - tanto em satisfação pessoal como em reconhecimento social. E aos professores, alguém reconhece (ou vai reconhecer) mais mérito em abrir portas para um futuro decente, ainda que mediano, a jovens que têm condições de vida "indecentes" do que a conduzir jovens das assim chamadas elites (que também merecem toda a atenção, tal como o doente apenas constipado) à educação superior, e de qualidade, a que já estariam "destinados"? E falo em "futuro mediano" porque, por vezes, lá se reconhece algum mérito aos professores que ajudaram (sendo o maior esforço do próprio, claro) um jovem desprivilegiado a alcançar um estatuto cultural, social e económico elevado. Mas, na comparação que tenho vindo a fazer, isso seria o mesmo que só reconhecer mérito ao médico que, salvando um doente da morte, o transformasse no campeão olímpico que ele, antes da sua intervenção, nunca teria pretendido ser! Ao contrário, o que geralmente sucede a uma intervenção médica in extremis é, precisamente, a possibilidade de continuar a viver uma vida regular, digamos "mediana", quando não menos do que isso. Além do mais, desculpa-se esse médico quando falha: ou porque o doente não seguiu os seus conselhos à risca (ora apliquem lá isto à maioria dos alunos, se fazem favor! Ah! Ah! Ah!) ou porque, pura e simplesmente, há um limite para a luta do médico contra a doença e a morte. E aqui vai uma novidade: também há um limite para aquilo que um professor pode fazer pelos seus alunos. Tal como a intervenção do médico pode esbarrar na constituição física e psicológica do doente, e nas suas condições de vida (por exemplo, se não tiver dinheiro para prosseguir o tratamento), também a intervenção do professor pode esbarrar nas aptidões dos alunos, e nas suas condições sócio-económicas. E, finalmente, pode imobilizar-se frente ao maior obstáculo de todos: o aluno, pura e simplesmente, não ter vontade de aprender. Como eu costumava dizer aos meus, de todas as idades, aprender dá trabalho; e, por isso, é preciso querer. Costumava lembrar-lhes algo que, por certo, não recordavam: as quedas que tinham dado, os bate-cus e cabeçadas, os joelhos esfolados e os galos na testa de quando tinham aprendido a andar. E dizia-lhes que nunca tinha tido um aluno que não soubesse andar - porque, apesar de todos esses contratempos, e até dores e mazelas, eles tinham querido aprender a andar. E tinham mesmo aprendido! Só quando tiverem um desejo de saber tão grande como o que tiveram de andar (e, para tanto, também seria necessário que a sociedade o valorizasse, que fosse algo apetecível - mas isso são contos ainda mais largos...) podem as crianças e jovens ultrapassar todos os obstáculos - até os maus professores! E aí, sim, os bons professores vão fazer a diferença: porque alguns alunos não vão limitar-se a ultrapassar obstáculos, vão abrir caminhos novos, e, no fim, talvez possam dizer que os professores os ajudaram a abri-los ou, pelo menos, lhes mostraram que era possível fazê-lo.
Peço desculpa, Francisco Trindade, pelo abuso da sua paciência. Ia também pedir desculpa pelo arroubo de lirismo do período final, mas não peço. De vez em quando, ainda é permitido sonhar, não é?
Obrigada.
Paula Bernardes-Silva
Professora do Quadro de Nomeação Definitiva
6.º escalão (seria 7.º, se este ano não tivessem sido congelados)
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