sábado, junho 17, 2006

António Aleixo

No Algarve, na primeira metade do século XX, irrompe uma poderosa corrente do cancioneiro popular português, a qual recebe o nome do poeta semi-analfabeto que lhe abre as comportas: António Aleixo. Quem apontou essa corrente foram o artista plástico Tóssan e o professor de liceu Joaquim Magalhães. Aleixo diverte-se com a ocorrência:

Não há nenhum milionário
que seja feliz como eu:
tenho como secretário
um professor do liceu.

Não pára de rir das circunstâncias em que vive e até da sua própria aparência. E quanto mais ri mais certeira vai sendo a pontaria de Aleixo:

Sei que pareço um ladrão...
mas há muitos que eu conheço
que, sem parecer o que são,
são aquilo que eu pareço.

Brinca até com a sua profissão de "cauteleiro":

De vender a sorte grande,
confesso, não tenho pena;
que a roda ande ou desande
eu tenho sempre a pequena.

Ribanceira abaixo, aí vem a corrente de Aleixo, cachão contra as injustiças (lembremo-nos que estamos em plena ditadura salazarista, em que impera a Censura):

És feliz, vives na alta
e eu de ratos como a cobra.
Porquê? Porque tens de sobra
o pão que a tantos faz falta.

Insiste:
Quem nada tem, nada come;
e ao pé de quem tem comer,
se disser que tem fome,
comete um crime, sem querer.

Esta quadra abrange certamente a dor que o poeta sente por não poder atender às necessidades de uma filha sua que está a morrer, tuberculosa. O poeta conclui:

Eu não tenho vistas largas
nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas amargas
Lições de Filosofia.

Tentam aliciá-lo a aceitar mansamente o sofrimento. O poeta comenta:

P'ra a mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem de trazer à mistura
qualquer coisa de verdade.

Mas logo reage:

Que importa perder a vida
em luta contra a traição,
se a razão, mesmo vencida
não deixa de ser Razão.

Reforça:

Embora os meus olhos sejam
os mais pequenos do Mundo,
o que importa é que eles vejam
o que os homens são no fundo.

Ri:

Uma mosca sem valor
poisa c'o a mesma alegria
na careca de um doutor
como em qualquer porcaria.

Aleixo dá uma guinada, faz o balanço da sua vida:

Fui polícia, fui soldado,
estive fora da nação;
vendo jogo, guardo gado,
só me falta ser ladrão.

Volta a apontar o dedo às injustiças:

Co'o mundo pouco te importas
porque julgas ver direito.
Como há-de ver coisas tortas
quem só vê o seu proveito?

À guerra não ligues meia,
porque alguns grandes da terra,
vendo a guerra em terra alheia,
não querem que acabe a guerra.

Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos, que pode o povo
q'rer um mundo novo a sério.

Aleixo compreende até o motivo que lhe permite ver sempre ao longe:

Não é só na grande terra
que os poetas cantam bem:
os rouxinóis são da serra
e cantam como ninguém

Ser artista é ser alguém!
Que bonito é ser artista...
Ver as coisas mais além
do que alcança a nossa vista!

António Aleixo

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