Podemos falar do anarquismo pelo menos desde duas perspectivas:- do ponto de vista da doutrina política;- do ponto de vista da história do movimento, como movimento de ideias e práticas revolucionárias na luta das classes subordinadas, para a libertação de qualquer forma de servidão.
Se nos ocuparmos da primeira perspectiva, podemos facilmente entender os fundamentos que dão coerência teórica ao anarquismo, quer filosófica quer politicamente. No entanto esta perspectiva apresenta grandes limitações no discurso e no debate porque se pode deslizar para a abstracção ideológica. Compreender o anarquismo significa entender os elementos que, para além dos aspectos doutrinários, estão enraizados em cada indivíduo em perpétua tensão existencial. Um dos elementos base do anarquismo é o reconhecimento da proeminência dos indivíduos, de cada indivíduo, no âmbito do universo humano. Cada pessoa é um ser único capaz de alegrias e sofrimentos, de acreditar e negar, de concordar e discordar, de ter e não ter vontade própria. As outras entidades empregues na política, na sociologia, na antropologia e na história para definir um grupo de indivíduos são conceptualizações que, quanto mais abstractas, mais se distanciam do ser real.O conceito de “povo”, como é compreendido pelo anarquismo, exprime a agregação de seres humanos, das suas condições materiais e espirituais, e das suas várias inter-relações. Assim, falar de um povo é referir as condições e relações dos indivíduos que o constituem. Só a partir desta perspectiva é possível reconhecer a estratificação social, i.e., a composição das classes no seio de dada população. Podem-se então descortinar condições de vida que pertencem exclusivamente a um grupo, e não ao todo da comunidade. Estas diferenças explicam frequentemente conflitos internos do corpo social.Seguindo este conceito, afirmar que a nação Sarda é explorada e colonizada não significa que todo o habitante da Sardenha seja explorado e colonizado. A “Nação”, não passa de um conceito, útil ao interrogar a universalidade dos indivíduos que partilham alguns elementos da vida social e algumas experiências históricas; mas é claro que na vida quotidiana há diferenças substanciais entre indivíduos, ditadas pelas suas condições de vida. Evitar a abstracção é então necessário para iluminar essas diferenças e para agrupar indivíduos da mesma nação com base na similaridade das experiências de vida. Então será possível discriminar quais estão a ser explorados e colonizados e quais são, de uma maneira ou doutra, opressores ou cúmplices da opressão na nação Sarda.Para o anarquismo, então, reclamar a proeminência dos indivíduos significa que cada um se deve colocar na luta revolucionária dos oprimidos e desfavorecidos tendo em conta esta assunção básica, que se pretende não apenas como fim, mas como método e ética. Lutar pela liberdade absoluta de cada indivíduo implica que nos organizemos e combatamos com base em tal liberdade. Hoje em dia o conceito de liberdade está estafado; significa tudo e nada ao mesmo tempo. É necessário esclarecer a concepção anarquista. Aqui, ela coincide com a autodeterminação dos indivíduos. Conseguimos a liberdade quando encontramos em nós as motivações, as tensões e as razões da nossa acção, a força para agir, preenchendo a nossa existência com conteúdo criado por nós.Só indivíduos autodeterminados podem constituir uma comunidade autodeterminada. Se isso é negado nem que seja a um único indivíduo, não é possível falar de uma comunidade autodeterminada. Somos seres sociais; não escolhemos pertencer a uma sociedade, nascemos nela. Se as condições e as relações que emergem de um corpo social são baseadas na autodeterminação, o recém-nascido é colocado num ambiente que reproduz a autodeterminação, quer nas condições materiais da existência, quer nas espirituais. Tal como foi demonstrado pelas provas crescentes da antropologia — agora que foram postas de parte algumas tendências etnocêntricas e historicistas-finalistas — qualquer corpo social não passa de uma rede de relações inter-individuais que garantem a sua continuidade. Onde haja divisão social, diferenças nas condições de vida entre indivíduos e classes, esta rede tende a reproduzir e preservar a separação e a estratificação. Pelo contrário, se o corpo social for coeso, as relações internas reproduzirão a sua união e coesão. Assim concebida, a liberdade individual é distante e distinta de outras interpretações éticas, sociais, políticas e filosóficas. Nenhum movimento/pensamento anarquista pode procurar atingir o ideal igualitário, porque a sua primeira causa é justamente a negação de todas as formas de padronização. A igualdade é aceite como ideal de paridade nas condições de vida para todos os indivíduos como base para o livre desenvolvimento da unicidade dos mesmos. O combate à padronização tem repercussões no anarquismo. Ele não é um corpo monolítico válido para toda a gente. Pelo contrário, há tantas formas de anarquismo como há pessoas. Daqui se pode concluir que o anarquismo é um conjunto de posições políticas fundadas sobre a autodeterminação individual. Porque o espaço político é o lugar de manifestação do poder na sociedade, o anarquismo, negando validade ao poder centralizado que subordina os indivíduos, é uma posição política que visa destruir todas as formas de poder. Neste texto, vou propor a minha acepção de anarquismo, apontando aquilo que é comum a, e aquilo que é diferente de, outras formas de anarquismo.
2. O MOVIMENTO ANÁRQUICO NA PERSPECTIVA HISTÓRICA
O anarquismo nasceu, cresceu e ganhou os seus traços — como movimento de luta de classes e como doutrina — no fervilhar de ideias, tensões e lutas que foram o Socialismo na segunda metade do séc. XVIII. O socialismo opunha-se ao liberalismo (e ao laissez-faire, laissez-passer, que era a face económica do liberalismo político). O liberalismo era uma expressão dos interesses da burguesia capitalista, numa altura em que se erguiam os estados modernos das cinzas da sociedade feudal. O liberalismo exigia uma absoluta liberdade de capitais, sendo ignorado o sofrimento de milhões arrancados ao campo e privados dos direitos que tinham conquistado durante o feudalismo. Na esfera política, o liberalismo exigia que os governos fossem neutros, o que garantiria a liberdade dos capitais e construiria uma defesa contra os ataques dos proletários.O socialismo punha os interesses de toda a sociedade acima dos de qualquer classe particular; dava ao estado o papel de regular conflitos e de intervir a favor de classes impossibilitadas de desfrutar da riqueza nacional. Quer liberalismo quer socialismo partilhavam (e ainda o fazem, até nas novas formas que adquiriram) algumas noções que são a ideia base da existência capitalista/ocidental:- o historicismo, em todas as suas encarnações- a ideia de progressoInterpretar os acontecimentos humanos como uma série de estados sucessivos, cada um ligado ao anterior e ao seguinte e em que cada um é um melhoramento em relação ao que o precede, conduzindo a melhoramentos inevitáveis, pode fazer-nos concluir que o capitalismo é parte não negligenciável do caminho histórico da humanidade, uma passagem fundamental que não pode ser discutida na sua essência, mesmo que crie grande sofrimento e contradição nas contingências específicas do seu funcionamento histórico. A concepção historico-finalista está presente no pensamento de Hegel e Marx, se bem que modificado. Mesmo tendo o anarquismo sustentado diversas críticas ao historicismo e à ideia de progresso, continua preso neles, como numa armadilha, partilha com o socialismo algumas concepções gerais que derivam do horizonte cultural daquela época.
III. O MOVIMENTO ANÁRQUISTA NA SUA ESPECIFICIDADE
Em meados do século XIX, o anarquismo desenvolveu a sua especificidade, distinguindo-se de outras correntes do socialismo e também do recém-chegado marxismo. Este processo tinha-se realizado em poucas décadas, talvez em “competição” com várias atitudes socialistas, mas também na luta de classes que começava a organizar-se, primeiro local e esporadicamente, e logo internacionalmente (a Associação Internacional dos Trabalhadores, ou Primeira Internacional, foi constituída em 1864). Na década de 1840 emergiu um parêntesis teórico graças a um filósofo da esquerda hegeliana, Max Stirner, perito no socialismo elaborado por Feuerbach, Marx e outros. O seu trabalho abriu as perspectivas práticas a partir de 1900, embora na altura da sua elaboração tivesse influência limitada entre revolucionários (sobretudo Bakunine). O livro de Stirner, O Único e a sua propriedade, (que ele escreveu para além de outras recensões críticas) é uma tomada de posição radical contra certos fundamentos do materialismo presente no socialismo. O que Stirner evidencia é a perda completa do único, ou seja, do indivíduo concreto, da real subjectividade humana, específica e irrepetível, na alienação daquilo que lhe é completamente estranho. Ao falar da humanidade, de povo, de uma classe e dos seus interesses, os socialistas põem o problema da libertação ao contrário; os indivíduos desaparecem para defender causas que lhes são alheias e até prejudiciais. Se não reconhecermos a unicidade individual, uma coligação de indivíduos com passados semelhantes que lutam em comum para afirmar a sua liberdade, cedo se verão a servir causas que não são as deles. De acordo com Stirner, existe a possibilidade de encontrar alguém que se aliste nesse grupo sem que siga um único estandarte. Ele vislumbrou no trabalho de Feuerbach um novo processo de alienação — que afasta o indivíduo de si próprio, e essa é a base da posição socialista e marxista — a tendência para a padronização dos indivíduos (Feuerbach teorizou a “verdadeira humanização” através da vitória sobre a alienação em Deus, e daí a deificação da humanidade).A posição Stirneriana deve ter tido algumas influências no crescimento do pensamento de Bakunine, que pôs de lado elementos hegelianos externos e a integrou numa síntese anarquista completa, tendo o cuidado de não esquecer o princípio da proeminência dos indivíduos. Mas será só no final do século dezanove, princípios do século vinte, que o trabalho de Stirner teve crescente importância na racionalidade anarquista, privado até aí pela confusão dos seus detractores. A especial atenção que o anarquismo dedica ao indivíduo, resultando daí o seu posicionamento sobre o poder, marca o caminho que leva a uma distinção explícita entre este e outros ramos do socialismo e do marxismo. O choque crucial ocorreu durante a Primeira Internacional. A Associação Internacional dos Trabalhadores fora constituída em Londres nos círculos operários europeus. Obviamente as escolhas organizacionais e as lutas de âmbito europeu reflectiam as muitas variantes do socialismo, à mercê de serem tão vagas. Cada grupo e cada tradução da carta da organização interpretava o vago à sua maneira, mesmo que, para dizer a verdade, as próprias cartas reconheciam diferenças.Não importa como, o conflito instalou-se porque:
- Enquanto na opinião dos anarquistas a organização não podia senão reflectir as necessidades e tensões dos grupos aderentes e assim os órgãos institucionais não deviam ter nem funções administrativas nem substituir a assembleia geral de delegados, os marxistas, reunidos em particular à volta da componente social-democrata germânica, advogavam o contrário. - Enquanto para os anarquistas a Associação encontrava pleno significado na luta económica da classe operária, os seus opositores acreditavam que ela se devia envolver nas lutas eleitorais.
Assim que emergiram, as diferenças mostraram-se irreconciliáveis. Marx num golpe-de-mão transferiu para Nova Iorque o Conselho Geral da Associação, para a afastar da influência dos Bakuninistas. Os anarquistas participaram numa primeira Conferência em Rimini em 1871 e depois noutros lugares, respeitando os objectivos originais estabelecidos na carta da Associação. Mantiveram-na viva com o nome de Internacional Anti-Autoritária, para a distinguir da outra que desapareceria nos Estados Unidos dentro de pouco tempo.
4. O ANARQUISMO E A QUESTÃO DO PODER
Se a liberdade de cada um e de todos coincide com a autodeterminação dos indivíduos, está claro que cada poder, cada ordem que se situa fora dos indivíduos, é para o anarquismo, algo que é necessário destruir. O poder assim entendido pode manifestar-se nos vários âmbitos da vida social: na economia, na ideologia, na religião, etc.., mas em qualquer caso acabará por se concentrar numa única realidade. A manutenção do poder concentrado deve-se em parte à imposição brutal e à persuasão daqueles que o gerem; e em parte por delegação voluntária dos dominados, ou melhor, dos que recusam a autodeterminação. A escravidão é voluntária, a força bruta e a persuasão são fundamentos necessários do poder concentrado em cada sociedade. Lutar pela sua destruição deve constituir um ataque a estes elementos. A ligação entre eles aparece normalmente como uma unidade demonstrada por várias instituições, quer físicas, quer psicológicas.O processo de libertação tem duas faces: manifesta-se simultaneamente no choque frontal com as instituições e na luta interior dos indivíduos contra os elementos hetero-determinantes. É desde esta perspectiva que o anarquismo encara a luta contra o poder para a sua destruição. Em qualquer forma que tenha assumido historicamente, o Estado é a mais alta expressão do poder sobre os indivíduos. De acordo com a sua forma específica, o seu funcionamento é assente ou na brutalidade ou no uso do consenso, sem renunciar definitivamente a nenhum dos dois. É dentro do Estado que os vários campos de domínio (económico, religioso, ideológico, social, educacional, militar, etc.) se sustentam uns aos outros numa simbiose única. A participação dos subordinados nos seus mecanismos, institutos e instituições, em vez de denunciar a essência do poder, reforça-o, já que a oposição interna racionaliza e ajusta o poder tornado-o mais facilmente aceitável pelos dominados. Daqui deriva a oposição anarquista às eleições, a negação da delegação e do instituto de representação e a recusa completa da concorrência política como meio do indivíduo reclamar mais liberdade. Uma coligação de trabalhadores e de todos os subordinados (mais à frente falaremos da forma de coligação) torna-se necessária para se opor à organização e à arrogância do poder económico-político — e daí conquistar melhoramentos parciais nas condições de vida das massas proletárias para as elevar a uma existência digna — e para enfrentar a grande tarefa de destruir todos os poderes que se sobreponham aos indivíduos. Uma tal coligação serviria para afinar a consciência, para preparar material e psicologicamente os explorados na luta contra os exploradores. É assim que a luta por verdadeiros incrementos nas condições de vida é o ponto forte do anarquismo, e não o conflito político e eleitoral que reproduz os limites da dominação. Neste ponto os anarquistas entraram em colisão com os autoritários na primeira Internacional.
5. A CONSTITUIÇÃO DOS SINDICATOS
Aclarado o porquê da recusa anárquica na participação política, entendem-se também as razões que levaram os anarquistas a criar os sindicato de classe. Mas para compreender melhor aquelas que identificarei como carências e contradições que o sindicalismo possui, é necessário ter em conta que o mesmo movimento anárquico não fica alheio às condições gerais da sociedade na Segunda metade do século XIX, estreitamente ligadas à chamada segunda revolução industrial (devida substancialmente à exploração da força motriz não humana – vapor, petróleo, energia eléctrica – e à sua aplicação no ciclo produtivo industrial).A ideologia do progresso indefinido, reforçada pelos descobrimentos, aplicações e exploração da vasta escala de fundamentais conquistas científicas e técnicas; a contemporânea afirmação da teoria evolucionista; o nascimento e o desenvolvimento das novas disciplinas como a sociologia e a psicologia na sua fase experimental; acabam por monopolizar a concepção da existência humana. O enxerto do marxismo em tal concepção – na análise específica de Marx e da sua metodologia, que mesmo revogando em termos materialistas o idealismo de Hegel se põe de toda a maneira na continuidade da tal concepção da luta de classes – remarcam a ideia de progresso na história humana.O sindicato representa para o anarquismo, por um lado, a organização autónoma das classes trabalhadoras para melhoria parcial das suas condições de vida – não só no interior da fábrica -, e por outro lado, o caminho propício até à revolução social. A organização sindical de natureza especificamente económica, contrapõe-se à organização de outras correntes do “socialismo”, que ao contrário dão origem aos actuais partidos políticos. Se para os anarquistas a luta económica une os trabalhadores, a luta política divide-os. Daqui o conceito de sindicato como auto-organização proletária sobre a base dos interesses materiais comuns a todos os explorados.O sindicato representa também, nesta óptica, uma estrutura organizadora de massa, não uma organização específica anárquica (ficando esta entendida como uma componente política do proletariado). Como tal, une os interesses imediatos da classe trabalhadora na perspectiva da libertação revolucionária das amarras do capitalismo e do estado.Pondo o progresso como indiscutível, o capitalismo industrial é concebido como a etapa histórica do percurso temporal da humanidade, que libertando ao máximo as forças e as capacidades produtivas da espécie, abre a perspectiva para os homens da sociedade ideal, do paraíso na terra, desejado pelos humildes. Para alguns trata-se simplesmente de apressar os tempos da sua chegada (e são as componentes revolucionárias), para outros de chegar a isso de forma gradual, utilizando os mesmos instrumentos que a sociedade capitalista e o Estado oferecem (e são os reformistas).Em nenhuma das componentes ideológicas da classes proletária é substancialmente discutida a ideologia do progresso, o historicismo, o finalismo que as caracterizam. As mesmas doutrinas económicas reforçam-se frente à segunda revolução industrial, que aparece como resolução das problemáticas sublevadas por Malthus, acerca da disparidade crescente entre o aumento geométrico da população e aquele restringido pela produção de bens. O livre desenvolvimento das forças produtivas num regime capitalista, como ordena a ideologia do progresso, encontra na aplicação das novas forças motrizes da indústria, o adequado aumento geométrico da produção de bens necessários para o crescente aumento da população!O anarquismo, que faz fundadas críticas às concepções científicas, finalistas e mecanicistas (pegando nas degenerações do marxismo em relação à originalidade do pensamento de Marx), não chega a sistematizar de modo coerente o pensamento anárquico (a-progressivista e a-historicista) e a sua actuação prática no plano da organização e da luta. O sindicalismo será sempre, para o movimento anárquico maioritário, a estrutura organizativa das massas que – ainda não suficiente para garantir o bom funcionamento da sociedade livre do futuro e por isso necessitado das particulares atenções por parte da organização específica anárquica, que o acompanha passo-a-passo – representa uma espécie de substrato, de apoio sobre o qual se articulará cada âmbito da organização social à escala planetária. O economicismo de fundo, assim como a continuidade entre o presente e o futuro liberto, continuaram sendo aquela que para Marx é a única estrutura da sociedade sobre a qual se articula, dialecticamente, cada âmbito da existência humana, referindo-se a esta em última instância.Substancialmente, o capitalismo e o industrialismo não são discutidos em si, como um dos eventos historicamente limitados e circunscritos ao itinerário temporal de uma dada parte da humanidade; mas são vistos como etapas necessárias e superáveis da história no seu conjunto, que se encaminha até ao sol do paraíso que chegará. Trata-se de socializar os frutos do progresso, de socializar – porque todos participam na sua formação – o proveito, que no regime capitalista é expropriado aos produtores. Na actual etapa de progresso humano, de facto, à socialização da produção não lhe corresponde a socialização do fruto dessa mesma produção: a contradição de fundo encontra-se na privatização dos meios de produção, açambarcados pela burguesia capitalista, e na socialização do trabalho. Socializando os meios de produção, etapa não eliminável do próprio progresso, a contradição de fundo encara-se e resolve-se na síntese socialista, ou melhor, comunista, então em anarquia. (estranho modo de entender dialéticamente o social, esta tríade perene que acaba por desaparecer do todo o paraíso terrestre ansiado como o fim da história – dialéctica – e o começo da verdadeira “humanidade”, é dizer do homem humanizado que neste ponto se coloca fora da mesma dialética triádica e não se sabe bem como acaba).Desse modo, para os trabalhadores sindicalizados, é a mesma fábrica de hoje que representa a base material da – e de continuidade com a - sociedade futura. As greves, as ocupações das fábricas que se farão produzir em condições de autogestão operária, são a demonstração prática da continuidade do modo de produção capitalista na sociedade livre de amanhã, quando tal modo de produção encontrará superada a contradição da privatização de uma parte do fruto colectivo do trabalho. A crítica anarquista à presumível auto-suficiência do sindicalismo emergiu com extrema clareza no congresso de Amesterdão, no inicio do século XX. Contudo não chega a incidir sobre a concepção de fundo da própria da civilização ocidental, a qual não discutida de forma radical, acabará por impor-se em cada canto do planeta com as consequências que todos conhecemos.
6. O FEDERALISMO COMO PRINCIPIO DA ORGANIZAÇÃO MAIORITÁRIA DO MOVIMENTO
Dada a centralidade histórica da plena liberdade de cada indivíduo e a necessidade de organização, seja no plano social, seja na luta contra a autoridade, a própria organização não pode asfixiar a liberdade. É necessário encontrar um principio que , na sua aplicação prática, reconheça plenamente uma e outra, e que seja aplicável seja à organização específica anárquica, seja à organização sindical de massas. Considerado o privilégio que toma o momento material da existência humana, é dizer o económico-produtivo, a grande maioria dos anarquistas encontraram no principio federalista o que procuravam, e aplicaram-no a partir do modelo económico, estendendo-o logo a todos os campos da vida social. Substancialmente tal principio funda-se na estipulação de um pacto entre acordantes que o contraem e aceitam. Pois, aparentemente, na estipulação de pactos voluntários há salvaguarda da integridade do indivíduo no, no que diz respeito à sua autodeterminação; e a mesma organização que se cria – fundada sobre o principio federalista – fica em plena possessão dos contratantes, mas estendendo a força dos mesmos.A maioria dos anarquistas aplicam o principio federalista, seja nas próprias organizações específicas ou nos sindicatos. O indivíduo estipula pactos com outros indivíduos e assim se constitui uma primeira federação, um grupo federado; diversos grupos estipulam por sua vez um pacto federal e criam um segundo nível federativo e assim seguindo, até às federações de federações que acabarão – do indivíduo ao município, do município à região, da região à nação, e desta às federações internacionais – por representar uma verdadeira e própria teia de pactos que de forma unânime cobrirão cada canto do planeta (antes Proudhon, depois Bakunin).O principio federalista responde a duas específicas exigências advertidas pelos anarquistas maioritários: - estabelecer no plano organizativo a continuidade, ainda em transição revolucionária, da actual sociedade até à futura sociedade livre, assumindo o seu funcionamento pelo menos nos momentos essenciais (materiais) da existência individual e colectiva (no sindicato afina-se a capacidade autogestionária dos produtores directos, os quais em período insurreccional e pós-insurreccional garantiram a produção);
- Criar estruturas formais que estejam em directa competição com as organizações das outras correntes e tendências do proletariado; a lógica é aquela, por um lado, de fazer prosélitos para engrossar as fileiras do anarquismo e, por outro, de chegar a radicar-se de qualquer maneira nas massas proletárias, para que em período insurreccional a influência anárquica seja determinante e participe assim de modo consistente na construção da nova sociedade.
Ainda não acreditando na possibilidade duma revolução totalmente anárquica, ou preponderantemente anárquica, prevalece de certo modo o temor quantitativo. Exacerbado provavelmente pela firme repressão que reduzia os anarquistas em todos os Estados, pela competência dos adversários que na metodologia reformista, insinuada também nos sindicatos, e aparentemente científica (em harmonia com as concepções difundidas) ou pela demagogia populista, esterilizavam os movimentos de classe, ou então canalizavam-nos até posições de pacífica convivência social e institucional. Em todos os casos, as organizações federais, específica e sindical, na sua influência recíproca (intercâmbio de homens e ideias de uma parte para a outra) adaptam-se perfeitamente às condições gerais e concepções da época, nos séculos XIX e XX. O fim imediato das organizações que se criam é a preparação das condições para a revolução proletária. Isso significa propagandear o anarquismo no seio das massas proletárias, participar nas lutas proletárias que surgem espontâneas, e promover outras sobre a base das exigências imediatas, para que em tais lutas se afinem as consciências e apareça uma nova sensibilidade e força que encontre finalmente saída e plena realização do amanhã libertado. Daqui uma espécie de programação na intervenção social, que é concebida como conquista gradual e penetração no seio das massas analfabetas, brutalizadas pela miséria e pela exploração, muitas vezes produto – pela ignorância em que eram mantidas – dos demagogos e dos padres, assim como do explorador directo. De tal programação está excluído, calado, denegrido, envilecido cada acto de revolta individual e colectiva que segundo o anarquismo federado só gera repressão, afasta as massas do anarquismo, prejudica a operacionalidade e a imagem das organizações específicas. Desaparecem assim da história do anarquismo épocas inteiras profundamente marcadas, no âmbito da luta de classes, pelo radicalismo de posições e acções que se confrontam directamente com o esperancismo de salão dos programadores, com as metodologias paralizantes das organizações específicas, com as pretensões de alguns que querem impor as suas planificações sociais e leituras “objectivas” e deixam para trás dia-após-dia o ataque concreto às estruturas e aos homens do poder. O olho deixado perenemente aberto até à gestão da sociedade de amanhã e as pressupostas condições objectivas óptimas para a transição, fazem perder de vista ou cair, por serem secundárias, as razões de luta, de confronto, que são perenes e imediatas, porque perenes e imediatas são as condições determinadas pelo poder concentrado se não se opõe a isto uma metodologia adequada que represente desde já, pelo menos, um válido dique às sua prepotência.Mas é o mesmo principio federalista que, segundo a minha opinião, apresenta grossos limites e determinado formalismos e metodologias de espera que acabam por paralisar, não só e não tanto o movimento específico anárquico, senão as mesmas lutas proletárias nas quais ostenta certa ascendência.
7. O LIMITE DO FEDERALISMO
O pacto federal mantêm a sua positividade somente quando o acordo diz respeito a um conteúdo e a um fim específicos a alcançar. No momento em que contempla na generalidade conteúdos e fins, é inevitável a degeneração numa instituição formalizada nos seus mecanismos, e então o decair da máquina que absorve energias e tempo, paralisando a actividade dos afiliados em tentativas de compromissos para manter viva a própria estrutura federal.A existência humana não é um conjunto de relações, tensões, desejos, momentos materiais e espirituais dados para sempre. E nem todos os âmbitos da existência se podem reduzir a conteúdos e fins que são objecto de estipulação de contractos e pactos. Com base nalgumas exigências específicas, interesses específicos, os indivíduos podem livremente unir-se para reforçar a sua própria energia, conseguir o fim comum economizando tempo e forças, e em tal caso o pacto federal garante contudo a autodeterminação dos sujeitos. Mas no momento em que se vai mais adiante, a mesma organização federal deixa de ser instrumento útil para todos os associados, para ser um fim em si mesma, sobrepondo-se aos federados. É o caso, seja dos sindicatos – mesmo que sejam anarco-sindicalistas ou revolucionários – seja da organização especifica anárquica.Vimos como, dada a centralidade do momento económico-productivo na concepção historicista-progressivista própria do século XIX e chegada até nós, o sindicato representa a continuidade entre o presente e o futuro. Está claro que se entre os trabalhadores, no caso de uma dada indústria ou de um dado sector, nos federamos em perspectiva, por exemplo, de cada renovação contratual, e só por este facto, os momentos que caracterizam o operar de uma federação se desenvolveram todos no interior do interesse comum: as discussões dar-se-ão na base das petições que é necessário formular ao patronato em termos de salário, de tempos de trabalho, de salubridade na fábrica, de medidas preventivas e assim seguindo, como também das lutas por desenvolver e dos métodos a utilizar para impor ao patronato a aceitação das petições. Os momento de discussão são definitivamente, estreitamente conexos com o conteúdo do pacto e o alcance específico comum.Se, ao contrário, a organização federal está constituída sobre a base genérica de interesses gerais (a salvaguarda da classe trabalhadora; preparar as condições para a revolução social; etc.), os momentos que a caracterizam tornam-se mais complexos e, sobretudo, as discussões serão inevitavelmente dirigidas às concepções gerais de cada indivíduo e dos grupos, pelo que se tornaram indispensáveis atenuações e sínteses, até alcançar um acordo que satisfaça a todos mas insatisfazendo cada qual pelo facto de que cada um, em vista do mantimento da organização e da própria unidade, renuncia a algo próprio que representa exactamente a especificidade do próprio ser. A organização toma assim posse da especificidade de cada sujeito e pretende um itinerário próprio.Isso acontece porque quem se organiza vê o presente como se fosse uma etapa necessária para o futuro, e procede às lutas e métodos de luta que medeiam as necessidades de hoje com um futuro já pré-determinado (ou pelo menos concebido como tal). Daqui o progressivo degenerar das estruturas sindicais em instituições de poder, submetidas aos interesses e concepções dum partido, ou melhor, do capital-Estado no seu conjunto. As organizações federais actuam em perspectiva, isto é, em função de uma continuidade entre o hoje e o futuro, hipotecando assim o amanhã às mesmas exigências de hoje: o mantimento do poder social.O anarco-sindicalismo espanhol é aquele que, tendo conseguido o ápice das possibilidades inerentes à organização federal operante a partir dos interesses gerais, evidenciou, na tragédia de 1936-’39, os limites maiores e todas as contradições de tal perspectiva. A C.N.T. (Confederação Nacional do Trabalho, a estrutura anarco-sindicalista espanhola maioritariamente representativa do proletário sindicado) ainda nas condições revolucionárias emergidas da sublevação proletária contra o golpe do Estado militar que logo será guiado por Francisco Franco – condições que a mesma C.N.T. contribuiu em determinar, tendo também entre outros objectivos o de construir o futuro ou momentos da sociedade livre - , teve que dar a sua própria contribuição à reconstituição do poder estatal que se dissolveu no momento insurreccional generalizado. Valorizações do tipo político, juntamente com a consideração da estrutura sindical como momento determinante na construção do futuro, logicamente impuseram negociações com as centrais sindicais e de partido, e então a participação de diversos anarquistas na posição de ministros no governo autónomo da Catalunha primeiro e depois no governo central de Madrid. O resultado foi indubitavelmente válido no que concerne às colectivizações das indústrias e dos campos, em curso durante um breve período, mas absolutamente negativo no médio e longo prazo aquando da reconstituição do poder centralizado com a indispensável contribuição dos anarquistas. Aquelas realizações positivas logo tiveram que fazer contas, fosse na frente na luta anti-franquista, fosse na abertura da retaguarda pelas forças estadistas que se tinham restabelecido.O dito pelo sindicato vale, e com a maior razão, para a organização específica anárquica baseada no principio federalista.Antes de tudo, pela particularidade do anarquismo que não sendo um bloco monolítico se adequa às peculiaridades individuais, torna-se necessário para a organização federal um primeiro esforço com a intenção de atenuar todas as diferenças bem existentes e substanciais entre os diferentes anarquismos dos associados. De tal maneira o próprio anarquismo acaba reduzido numa síntese que todos partilham só por ser bastante genérica.Em segundo lugar, o momento central da federação, isto é, da assembleia geral dos federados, chega a ser necessariamente espaço deliberativo-decisivo onde se estabelecem estatutos e considerações; uma concepção do anarquismo adaptada à própria existência da federação, fins que têm que ser alcançados no curto, no médio e no longo prazo, baseados nas suas leituras, já sintetizadas, a partir da mesma visão do social e da sociedade em geral donde se deduz a operacionalidade e as intervenções que se vão pôr em marcha.Uma máquina deste tipo (aparte das considerações que se seguem), se tinha muito pouca capacidade de incidência social na época industrial, quando os ritmos impostos pela tecnologia tinham ainda alguma dimensão humana, não tem nenhuma capacidade no presente histórico, dominado por ritmos ditados exclusivamente pelas necessidades tecnológicas. O operar da federação anárquica é feito em função das concepções gerais do anarquismo, sintetizado em momentos comuns a todos, e da leitura dos factos sociais que em particular ou no geral são a sua área de intervenção. Confrontando-se com uma mudança social, torna-se necessário retomar novamente por meio de comissões de estudo, congressos específicos e gerais, assembleias deliberativas, etc.., novas linhas de objectividade e subjectividade. E é nisto que se evidencia como a formalização de uma estrutura organizativa revolucionária requer, se está baseada no princípio federalista, um gasto de energias considerável que, obviamente, é subtraído da real luta de classe. Na sociedade informatizada chega-se facilmente ao absurdo, visto que o ritmo das inovações e aplicações tecnológicas já levou ao paradoxo, as mutações introduzidas num sector específico reflectem de imediato todos os outros, provocando adaptações em todos os âmbitos do social.O outro momento de debilidade da organização federal de síntese é o seu momento central: a assembleia. Esse é o lugar, por antonomásia, no qual o anarquismo prova a si mesmo a própria validez, não tanto sobre o plano dos conteúdos ideais, mas sobre aqueles organizativos e metodológicos.
8. CRÍTICA DA ASSEMBLEIA DELIBERATIVA
Contrariamente ao que acreditam muitos, a assembleia decisiva-deliberativa é uma instituição autoritária, que está por cima do indivíduo. Um facto, entre os mais curiosos da história, é que uma consistente parte de anarquistas acreditou que isso correspondesse plenamente aos interesses do anarquismo, e coisa ainda mais curiosa é que hoje em dia um boa parte de anarquistas federados, sendo a assembleia deliberativa o lugar central da instituição da democracia directa, acabam por fazer coincidir o anarquismo nesta.A assembleia, o lugar de encontro, discussão, debate, socialização é indubitavelmente importante, já que condensa e reforça conjuntamente a sociabilidade, a riqueza específica de cada indivíduo que, confrontando-se com os outros avalia melhor as suas próprias concepções. Não será a própria vida uma tensão e confronto contínuos? Não reconhecerá o indivíduo a sua especificidade no contraste com os outros? Pois o momento assembleário é, na sua pequenez, um aspecto da própria vida.Mas no momento em que essa realidade decai, por ser um espaço deliberativo, escapa ao indivíduo e formaliza-se acabando por ser espaço autoritário que o asfixia. O porquê é simples.Deve-se deliberar, é dizer, tomar decisões acerca de algo, então haverá que decidir, de dar a tal coisa conteúdos e contornos precisos. Considerada a peculiaridade do anarquismo não é fácil, as mesmas particularidades aparentemente secundários para uns, têm para outros a máxima importância. Resulta daí que, ou se procede outra vez por síntese, renunciando às particularidades – mas isso nem sempre é possível – ou pelo contrário, haverá que eleger entre propostas diferentes que amiúdo não admitem compromissos. As distintas posições aliam-se por facções, e as distintas facções recorrem a todas as possibilidades da arte política, da demagogia, da capacidade de gestionar e manipular a assembleia: arte oratória, encenação, persuasão subtil, resistência, confusão, faculdades de realização imediata que não se manifestam da mesma maneira em todos os indivíduos nem tampouco nos mesmos tempos. O voto ratifica a autoridade que emerge do contraste com o fim de decidir colectivamente. Os indivíduos, todos os indivíduos, para além da sua própria posição ser aquela adoptada ou não, saem patentemente derrotados, vencidos por um mecanismo formalizado pela astúcia, encenações, praxis consolidada, competição miserável. A assembleia deliberativa impôs o seu próprio poder, alcançando a todos indistintamente.Já me ocorreu presenciar assembleias deliberativas anarquistas, até uma vez, num dos congressos gerais da Internacional das Federações Anarquistas (I.F.A.), e posso-vos assegurar que vi de tudo naquelas sedes, em nada diferente do que ocorre em cada partido político, se não fosse pelo facto de que estes últimos têm interesses de poder para defender, os anarquistas Não! Então qual a razão para os subterfúgios, as tretas dialécticas, os jogos psicológicos, o trabalho atrás dos bastidores contra as posições que contradizem a mesma? Honestamente, tudo me deu a impressão de um manicómio.No entanto, tudo está perfeitamente em regra no que respeita à formalidade dos mecanismos. No espaço formal do funcionamento da assembleia federativa, tudo vem respeitado pela parte de todos: mesa da presidência do congresso, passagem de consigna, nomeação de comissões, atribuição de cargos, inscrições para falar, propostas que têm que ser votadas, votações, contagem de mãos levantadas, aprovações e desenhos, e assim sucessivamente; tudo transcrito pontualmente, registado para futura memória. Um carácter tímido, uma sensibilidade como a minha que necessita de tempo para perceber o que se está a passar, uma personalidade não inclinada para os panegíricos do politiquismo e não propícia à demagogia da arte persuasiva, mesmo expondo respostas objectivamente mais válidas do que as outras, estas ficam esmagadas, asfixiadas, anuladas pelo mecanismo assembleário.Mas há outro aspecto, igualmente importante, que evidencia quanta confusão há no anarquismo organizado de maneira federativa e que tem como momento central do seu funcionamento a assembleia deliberativa: tal aspecto é o instituto democrático, essencialmente baseado na votação da proposta, e é por si mesmo uma enorme contradição para o anarquismo, seja nos termos metodológicos, seja naqueles mais propriamente gnosiológicos. O conteúdo das propostas (seja no que concerne à análise, seja no que concerne a operacionalidade revolucionária) constitui-se sobre a base das sensibilidades específicas, das concepções do anarquismo e da existência em geral, própria dos sujeitos que as elaboram. Tem portanto um valor em si, para além de outros o partilharem ou não. O facto de submeter a uma votação tal conteúdo, é algo que menospreza de todas as maneiras aquele valor próprio, reduzindo-o a objecto de mera contabilidade numérica, como se alcançando a maioria dos votos, ou também a unanimidade se encontre uma comprovação objectiva da própria validez; e pelo contrário, em caso de minoria de votos a comprovação democrática negaria a validez da mesma. Que razões da luta de classe, da insurgência individual e colectiva contra o poder subjugante fazem parte de uma simples questão numérica ?O facto de que se conteste tal pergunta afirmando que as propostas são submetidas a votação não para avaliar o conteúdo em si mas para avaliar perante tudo, a aderência aos próprios princípios da federação, e em segundo lugar para avaliar se reflectem as concepções de todos os aderentes à organização, não faz mais do que piorar as coisas. De um lado porque quem projecta as propostas impõe limites na análise, na crítica, na própria operacionalidade, já que estas são elaboras em função da aprovação dos outros; do outro lado porque, uma vez mais, estão excluídos dos propósitos todos aqueles que, por muitos motivos, não tem capacidade de análise nem de síntese para propor e expor de forma sistematizada. Enfim, o último obstáculo, ou seja uma das considerações conclusivas que se alegam para sustentar a sua validez. O instituto da democracia directa afirma ter valor não no facto da unanimidade que se procura na assembleia, mas por ser indicativo das distintas tensões que animam o anarquismo federado; até porque aqueles que não compartilham as decisões tomadas pela maioria, nem por isso estão excluídos – como contrariamente ocorre, a miúdo, no seio dos partidos autoritários – da federação. Continuam a fazer parte dela, operando nas suas eleições, desde que estas estejam dentro do marco dos princípios e das condições determinadas por estatuto. Desde a minha opinião, essa é a questão mais séria, tão séria que em si vislumbra a inutilidade e quiçá o prejudicial da organização federal de síntese e do instituto democrático: em pró de quê, a este ponto, gastar tempo e energias enormes para o mantimento de uma máquina formalizada em momentos não indispensáveis?
9. A INDETERMINAÇÃO COMO PERSPECTIVA
A nossa mentalidade ocidental, com as suas devidas excepções, tende a conformar o universo à medida da mente humana ou, o que é o mesmo, a conformar a mente humana à medida do universo e dos acontecimentos. Ao fim e ao cabo, conhecer não significa outra coisa que entender o desenlace causal dos eventos. Organizamos assim a nossa experiência do universo que nos rodeia, segundo uma sequência ininterrupta de causas e efeitos que reduzimos a um perfeito mecanismo mensurável, e correspondente a presumíveis leis fundamentais. O mundo assim concebido garante-nos, pelo menos, uma certa segurança existencial: conhecimento é domínio, enquanto previsão e por conseguinte exclusão de incertezas.Esta mesma mentalidade operou no âmbito daquela parte do movimento anarquista que deu vida à organização federal de síntese. Situada a revolução social como certeza consecutiva do capitalismo, trata-se de determinar os êxitos com base em duas pressuposições:- convencer os explorados da beleza da anarquia, subtraindo o mais possível as forças dos movimentos adversos;- engrossar as filas do anarquismo com o fim de ter uma força determinante no momento insurreccional.A contradição fundamental do capitalismo – socialização do processo produtivo, privatização do fruto do trabalho – deve ser acompanhada pela tomada de consciência proletária que abrange o processo revolucionário. Um mecanismo perfeito que reflecte a lei causa-efeito. O imprevisível, o incerto, desaparecem da história. No fundo, vislumbra-se no anarquismo assim concebido, o carácter determinista, próprio de uma época e típico de uma mentalidade “científica”.Mas se abrimos a interpretação do universo e então da própria existência humana em perspectivas distintas, damo-nos conta que as nossas certezas são só presumíveis. Na realidade nem os acontecimentos físicos, nem o percurso existencial dos indivíduos podem reduzir-se a mecanismos e formalismos deterministicamente concebidos. A indeterminação, a informalidade, a espontaneidade, são momentos certamente não marginais na vida do universo, e eu não tenho nenhuma intenção de dar força a esta perspectiva sustentando-a com algumas correntes científicas contemporâneas. Simplesmente afirmo que tais correntes redescobrem o universo como um leque de possibilidades abertas, até cada acontecimento e até às interligações recíprocas. Desta perspectiva é possível compreender que entre a exploração e a rebelião não há uma relação de causa e efeito. A própria insurgência dos indivíduos muitas vezes é uma tensão existencial que contrasta vínculos e obstáculos existentes, que se podem simplesmente entrever. Não só, a aquisição de consciência da exploração e dos mecanismos de diversa natureza através dos quais esta se manifesta, não determinam necessariamente a rebelião, como também, mesmo que a determinassem, não era provável que esta se manifestasse segundo os nossos tópicos e expectativas. Apesar das nossas presumíveis certezas, fica a indeterminação e a informalidade do vivido. Trata-se simplesmente de tê-lo em conta para, a partir dessas certezas, voltarmos a pensar a organização e os métodos de luta, como também as perspectivas que dessa maneira se abrem.
10. O FIM DE TODO O VANGUARDISMO
Os anarquistas não entenderam o mundo melhor do que os outros (e vice-versa). O anarquismo, para além de ser uma doutrina política, é sobretudo uma concepção do mundo e portanto uma ética, um confronto específico, concreto, do comportamento do indivíduo. Esta ética deveria informar cada anarquista que ao torná-la própria, adequa-a à sua sensibilidade particular, tensão e característica pessoal única. O anarquismo assim entendido não coloca razões ou justificações em lugar algum fora de si mesmo, seja mesmo a anarquia, na sua acepção de sociedade anárquica a alcançar-construir. A insurgência do indivíduo contra tudo o que o oprime justifica-se por si.Contudo, excluído cada historicismo, determinismo, finalismo, mecanicismo, cientismo e assim seguindo, está claro que a própria rebelião, mesmo que encontre em si cada justificação, não é suficiente para destruir definitivamente as formas históricas de poder centralizado, subjugante dos indivíduos e das classes subalternas. Daqui a necessidade de abrir um leque de possibilidades reais, materiais e espirituais por uma libertação definitiva.Contrariamente a outras posições políticas, a tensão do anarquismo até à destruição total dos poderes constituídos, não se confia exclusivamente na objectividade do sistema e dos mecanismos que a sustêm, mas também na autodeterminação individual. Na realidade, o processo revolucionário, na sua acepção de mutação radical de um estado de coisas a outro, mesmo que não esteja baseado no contemporâneo movimento de reconquista individual do próprio poder autodeterminado, conduz de modo rectilíneo até novas formas de opressão e de poder centralizado. Ninguém pode negar isso, mesmo que cada um responsabilize – segundo a própria ideologia – os tradicionalismos ou os revisionismos, ou também aquelas presumíveis “objectividades” que acabam por ser ao mesmo tempo promotoras da revolução social e suas enterradoras.Abrir um leque de possibilidades concretas até à destruição do poder, significa vincular a tensão da insurgência individual a todos aqueles momentos que no próprio social, para além do operar anárquico, tomam expressões de autodeterminação ou de ruptura com a ordem imposta. Tal vínculo exclui cada instrumentalização, cada vanguardismo. Os anarquistas não têm nada que ensinar no plano da revolta contra a ordem estabelecida. Por isso esse vínculo que se dá entre a tensão anárquica e as forças sociais rebeldes, materializa-se como estímulo ao radicalismo da luta e da rebelião, acentuando cada elemento da autodeterminação e projectando outros.Se desaparece a certeza da revolução social, a sua possibilidade não permanece excluída. No entanto, uma vez desaparecida a certeza, dissolvem-se, porque estão estreitamente ligadas a ela, todas a serie de considerações organizativas e metodológicas da bagagem das federações anarquistas. Carece de sentido a competição com os adversários e portanto a propaganda com o fim de ganhar para o anarquismo mais proletários do que fazem outras forças. Já não faz sentido organizar-se hoje em função da construção do futuro livre; seria hipotecar o amanhã às exigências de hoje. Já não faz sentido que os anarquistas se proponham tarefas históricas, assumam funções, em pró da revolução social libertadora. Os anarquistas, igual a outro movimento, são só um dos infinitos centros que fazem parte do universo.
11.INSURREICIONALISMO
Mesmo como possibilidade única, o processo revolucionário têm que se catalisar numa ruptura com o existente. Tal ruptura é a insurreição generalizada que destrói o poder constituído nos seus elementos substanciais: instituições várias, socialização do grandes meios de produção, etc..Na nossa perspectiva, o momento insurreccional chega a ser central, e isso devido a diversos motivos:- pela sua essência destrutora, e não construtora;- pela ausência total, no seu ápice, de motivos mediadores ou de tendências moderadoras;- pela emancipação do indivíduo das alienações materiais, morais, psicológicas impostas pelo sistema de servidão;- pela impossibilidade da sua instrumentalização, no imediato, por parte das forças do poder.
É portanto no imediato do evento insurreccional, que é possível para os anarquistas, destruir e estimular a destruição de todos os âmbitos do poder centralizado. Qualquer avaliação acerca da continuidade, entre o social velho e aquele por construir, demonstrou-se catastrófica pela própria revolução social. No entanto o momento regozijado da destruição é muito breve e em tal espaço de tempo é indispensável golpear. Uma vez acabado o momento, as forças de poder que escaparam da destruição, terão milhares de ocasiões e motivos para se proporem como indispensáveis na construção do novo, fazendo persistir o cansaço e as necessidades materiais dos insurgentes. Não será contudo na competição directa com tais forças que o anarquismo terá possibilidade de radicar-se nos indivíduos, mas sim no facto de haver conseguido destruir as condições materiais, institucionalizadas e formalizadas do poder antecedente – exército, tribunais, municípios, parlamentos, arquivos, armamento e homens – e no prosseguimento por força da luta radical contra tudo o que enquanto velho ou novo quer subjugar os indivíduos.Segundo um raciocínio lógico, o anarquismo enquanto negação do poder centralizado, é um momento essencialmente destrutivo, não também construtivo.No evento insurreccional generalizado o anarquismo concretiza-se a grande escala na indivisibilidade da sua ética e doutrina. Tal evento é o que acaba por ser assinalado em relação aos outros. Ora, a insurreição generalizada é uma possibilidade não directamente ligada à pura actividade propagandistica, no entanto, não há que excluir um eventual benefício que a propaganda anarquista traz ao social subalternizado. A possibilidade mais concreta reside nas exigências dos explorados, nas necessidades que o sistema de exploração e de opressão deixa insatisfeitas nas amplas massas de proletários. Há sempre a possibilidade que de um protesto, mesmo iniciado por motivos aparentemente fúteis ou de ordem reformista, expluda o momento insurreccional; mais ainda se é utilizada uma metodologia de luta que seja prelúdio da autodeterminação: autogestão da própria luta, ataque sem exclusão de golpes à parte contrária, recusa de mediações e de mediadores, determinação no conseguir da tentativa.O insurreccionalismo anárquico é, mais precisamente, a intervenção nas lutas emergentes do social, segundo a metodologia que defende a insurreição generalizada e que se materializa no imediato como praxis da acção directa, da autogestão das próprias lutas, sem pôr vínculos às tensões específicas e sensibilidades dos indivíduos e grupos, estimulando assim a multiplicidade de formas de intervenção. O que caracteriza o insurreccionalismo anárquico é o método posto em marcha, não o conteúdo de cada luta.O método justifica-se por si, pelo qual exclui cada valorização de tipo quantitativo: não se actua em função do aumento do numero de anarquistas, mas sim dos estímulos que o método chega a difundir no social ou nas lutas específicas. Que importância pode ter, definir-se anarquistas ou não, no momento em que a prática da acção directa, do confronto com o poder constituído, da negação da subjugação avança?
12. PROJECTUALIDADE INSURREICIONALISTA
Na minha opinião, os anarquistas distinguem-se dos outros revolucionários e dos restantes proletários, não pelo radicalismo da sua intervenção, não porque são mais “humanistas” e sensíveis do que os outros, não porque defendem uma sociedade idílica ou outros centralismos e amenidades parecidas. Distinguem-se mais simplesmente pelo método com o qual se relacionam com as coisas, as pessoas, as situações. Mas o método não chega a manifestar todas as possibilidades se não se pretende alcançar, em consequência, pelo menos os mais importantes aspectos do nosso actuar. O método produz o máximo da sua potencialidade se é acompanhado e sustentado por um planeamento, por outras palavras, se se actua em perspectiva. É no actuar planeado que cada acção, cada intervenção, encadeadas umas nas outras sob uma perspectiva de fundo – no nosso caso, a possibilidade da insurreição generalizada – adquirem um sentido e uma razão global, resultando assim mais contundentes no confronto contra o poder constituído.
13. A ORGANIZAÇÃO INSURRECCIONAL INFORMAL
Deveria resultar evidente nesta altura, que a organização, desde a nossa perspectiva, não é um fim senão um simples meio, um instrumento que, sustentado por uma metodologia precisa permita aos indivíduos reforçarem-se sem acabarem súbditos da própria organização, que comece da autodeterminação e reproduza autodeterminação.A organização expressa as relações entre os homens, entre estes e as coisas e os acontecimentos.Tais relações podem fixar-se em momentos estabelecidos, que constituem verdadeiras e próprias instituições formais dentro das quais se estruturam. Esse é o caso da organização formal que se concretiza na estrutura burocrático-vertical, ou melhor – como já vimos no caso das organizações anarquistas de síntese – na estrutura federal que, se bem privada de instintos burocrático-hierárquicos, se move na base de momentos formalizados (comissões, assembleia deliberativa, votos, etc..). Num caso como no outro a vitalidade e a riqueza obtidas pelo contraste, a diversidade, a especificidade dos sujeitos são negadas ou acabam esterilizadas por via das sínteses necessárias e do mesmo formalismo imposto pela organização.Mas a organização também é possível de uma forma totalmente diferente, sem forçar – mas sim dando-lhes a justa funcionalidade - com mecanismos e institutos formais a especificidade dos indivíduos e a articulada variedade de formas de existência. Essa é a maneira de se relacionar com os homens e com as coisas na própria informalidade, por conseguinte no próprio fluir das relações, tensões, particularidades, exigências, afectos, necessidades de luta, de sobrevivência de cada um e dos outros.A própria vida flui graças à informalidade, é dizer, por meio daqueles momentos que o poder constituído não consegue asfixiar, formalizando-os no interior da sua própria ordem. E é nessa informalidade que emergem os desafios de actos de rebelião que discutem a ordem do Estado-capital. Da indeterminação e multiplicidade do universo, do ponto de vista da sua informalidade, não surgem revolucionários que programam o momento construtivo da revolução social, enclausurando-a dentro do limites e percursos da sua própria mente; emergem sim indivíduos insurgentes contra as presentes condições de poder e ao mesmo tempo contra cada hipótese e tentativa de construir outras novas, deixando assim ao futuro indeterminado cada momento construtivo.Esta é a organização anárquica informal, que é prelúdio de uma organização – igualmente informal – das lutas que se iniciam ou daquelas em que participamos.A união dos Anarquistas Sardos (U.A.S.) é um lugar em que a informalidade das relações é cultivada mediante a prática insurreccionalista. Não é um lugar em que se cultivam ideologias ou momentos de assembleia deliberativa. É um lugar onde se socializam análises, projectos de luta, momentos de luta; cada um dá e colhe desse lugar, dá só sobre a base das afinidades e interesses encontrados nos outros – que podem ser todos ou somente uma parte dos que constituem a U.A.S. – o que mais lhe pertence. Quem considere oportuno faz também propaganda simples, mas o que caracteriza a U.A.S. é que não actua para fazer proselitismos, mas sim para estender ao social – particularmente nas lutas específicas – o método insurreccional na informalidade das relações.Com esse espírito estivemos presentes em algumas das lutas e situações mais significativas da última década; por exemplo contra a primeira operação político-colonial denominada “Força Paris”. Com o mesmo espírito nos introduzimos na luta contra os parques tecnológicos ou naturistas que sejam, porque por meio de uns e dos outros, aparentemente sem ligação, o Estado-capital, que já se reestruturou passando do industrialismo ao pós-industrialismo, inicia-se para dominar a nossa terra reduzindo-a a centros de investigação e a uma imagem da realidade virtual que reproduz lucro e sistema.
14. A DESORDEM DA REVOLTA
Então informalidade nas relações, informalidade na participação nas lutas, informalidade, na sua acepção de indeterminação, na acção insurreccionalista e no próprio momento insurreccional. Também o actuar planeado não renega à informalidade, é sim produto dela e nela se resolve. A própria organização é totalmente outra coisa que uma estrutura: é sim um lugar de socialização e de sintonia das lutas e das tensões, não de unificação das mesmas. Da mesma maneira, as lutas emergentes do social, os actos de revolta individual ou colectiva, longe de serem instrumentalizados por fins de qualquer revolução que descansa nas mentes dos organizadores sociais, têm relevância própria já que introduzem tensões que favorecem a insurreição generalizada.Como já vimos, a perspectiva anárquica insurreccional e informal coloca no primeiro plano a insurreição generalizada, não pretende, como nega decididamente, ter papeis construtivos. O momento predominante da perspectiva é a autodeterminação pela autodeterminação, então essencialmente destrutivo-negativo.Mas não acredito que exista alguma possibilidade, pelo indivíduo singular, mesmo sendo anarquista insurreccionalista, de destruir o poder que o oprime. Esta possibilidade abre-se só mediante sintonia com quanto emerge do destrutivo e negativo do próprio social, não para ser instrumentalizado, mas para difundir e estender as contradições, a desordem, a revolta. Quanto mais esses actos se manifestem descompostos e desordenados, sem nenhum centro, fazendo referência a milhares de centros, cada um autodeterminado, então mais irrecuperáveis e irredutíveis serão a uma formalização por parte dos opositores da desordem social.O poder na realidade, ainda na aparente desordem que cria, só pode afirmar-se e perpetuar-se numa qualquer forma de ordem. Os revolucionários, também os anarquistas que querem cobrir o papel de construir o futuro, e não só de destruir o presente, recompuseram inevitavelmente a ordem social, afogando assim a desordem da insurreição generalizada, entregando de tal maneira o corpo social inteiro nas mãos dos novos poderes que, naquela ordem recomposta encontraram a ocasião onde lançar novas formas de exploração e de opressão.É por isso que nós reivindicamos e actuamos em função da revolta descomposta, difundida por todos os lados, sem cabeça nem cauda: melhor dito, somos pela desordem social permanente, condição indispensável para criar a impossibilidade de que se manifeste o poder centralizado.
15. A ACTUALIDADE DO ANARQUISMO INSURRECCIONALISTA
Acredito que a organização anarquista de síntese, apesar de tudo, teve grande importância no passado. A sociedade industrial, essencialmente baseada na concentração produtiva, muitas vezes até à verticalização do ciclo inteiro de produção de mercadorias que determinava a presença em espaços limitados de milhares de trabalhadores, tinha ainda como consequência a constituição de uma maneira de entender em comum, e evidenciava os próprios explorados como produtores da riqueza social que, pelo contrário, o capitalismo privatiza em benefício exclusivo da burguesia. Os mesmos bens produzidos eram de utilidade comum e seriam também no hipotético futuro libertado. A revolução social, actuando a expropriação dos grandes meios de produção, teria levado não só à socialização da produção, como também dos bens produzidos, de utilidade social enquanto ligados à satisfação das necessidades reais.O que representou o grosso limite da organização anarquista de síntese foi o ter pretendido a exclusividade, de ter sempre demonizado as tendências anárquicas minoritárias que, no plano da organização e da metodologia, praticam intervenções distintas que esquivam as contradições e os limites do federalismo, da democracia directa e do anarquismo de síntese.Não é de negar que as organizações de síntese são, à sua maneira, insurreccionalistas. Com efeito, o anarquismo, negando qualquer forma de democracia representativa, necessariamente tem de colocar no processo revolucionário e na insurreição generalizada, como a possa entender, o momento de ruptura com o presente histórico. Só que a insurreição generalizada está metida num futuro, as suas condições objectivas e subjectivas é necessário construi-las passo a passo, contanto com a força numérica da organização anarco-sindicalista, as condições materiais do momento e qualquer outro acidente imaginado por mentes e estruturas mentais encerradas no círculo da continuidade histórica e de outras valorizações.No presente, a reestruturação do capitalismo, devido à utilização sistemática de novas tecnologias em cada âmbito do social, da produção de mercadorias ao seu consumo, da comunicação ao controlo difundido no território do civil ao militar, modificou substancialmente o mundo. A realidade está composta por momentos, estímulos, tensões verdadeiras que são afogadas e misturadas nos momentos virtuais. A realidade virtual das necessidades induzidas, da produção de mercadorias virtuais e de consumo virtual já se impôs. A fabrica tradicional desapareceu ou está para desaparecer definitivamente, para dar lugar a uma quantidade de pequenos e pequeníssimos centros produtivos altamente informatizados, com possibilidades de conversões produtivas impensáveis no seu tempo. Os interesses do proletariado, quebrados em milhares de pedaços, perdem-se nas teias da realidade virtual. O consenso generalizado encontra na democracia o mecanismo que o reproduz: chegamos às consultas populares teledirigidas para estabelecer qual mercadoria virtual satisfaz melhor as necessidades virtuais dos consumidores virtualizados! A mesma democracia já é uma das realidades virtuais, como todas as outras. Eu encontro ainda mais carentes de sentido as considerações pontuais sustentadas por algumas publicações anarquistas durante cada eleição política, em que se afirma que a alta percentagem das abstenções, dos votos nulos ou anulados, confirmara a perda de confiança na política e na democracia representativa. Afirmações sem sentido algum!A verdade pelo contrário, é que a sobrevivência do Estado-capital tecnológico, pulverizado no território, só é possível através do consenso generalizado. Enquanto a fábrica tradicional se podia defender de uma qualquer força militar, por estar localizada num lugar bem preciso, a informatização da produção determinou a divisão numa quantidade de pequenos centros produtivos em cada canto do planeta; a informática sozinha permite que seja possível a produção desde as próprias habitações, basta um computador pessoal. Agora é evidente que um sistema deste tipo nunca poderá ser defendido senão na transformação em polícias do sistema das mesmas pessoas que vivem no território: nenhum dispositivo repressivo sería capaz de garantir a segurança de tal sistema pulverizado. Que importância pode ter, pois, o facto das urnas serem abandonadas se, contemporaneamente não se ataca o Estado-capital pós-industrial?No entanto não se pode afirmar que o consenso ao actual estado de coisas seja total. Os excluídos pelo sistema, os marginalizados, os insubordinados são o fruto natural de uma sociedade dividida em privilegiados por um lado e subalternos por outro. A rebelião é um facto também natural, que certamente não foi descoberto pelos anarquistas nem pelos outros revolucionários. Mas essa rebelião não é imediatamente reconduzida aos velhos programas revolucionários que olham a destruição do presente para reconstruir contemporaneamente um futuro libertado. A rebelião actual é caótica, desordenada, justifica-se por si mesma. Para os rebeldes sociais, a insurgência é uma recusa total das ideologias de qualquer tipo, por serem consideradas, em boa parte com razão, os pilares que sustentam o sistema que os oprime. A sua rebelião é aquela que estala de maneira destrutiva, contra tudo e contra todos. Não é compreensível em nenhum esquema preconcebido. A origem da rebelião pode ser uma reivindicação específica, a contestação de um acto considerado ofensivo, em resumo, qualquer momento particular que por inúmeros motivos assume uma situação específica em função detonante. Não se trata portanto de questões gerais ou generalizadas, mas sim de motivações específicas. Esse facto é de máxima importância na consistência do nosso discurso. Com efeito, cada tentativa de indução do facto específico que origina a luta, em condições e considerações de natureza político-social, imediatamente se realiza como instrumentalização de fins alheios à própria luta; a realidade do facto passa a ser essa instrumentalização. Mas são sempre essas lutas que abrem a possibilidade de uma intervenção específica que se encontra no método insurreccionalista, isto é, na acção directa e na autogestão da própria luta, nos momentos essenciais de ruptura com a praxis da mediação e da aceitação passiva dos mecanismos próprios de delegação. Providos desse método, e da metodologia necessária para oferecer à luta perspectivas de ligação com outras lutas e de entendimento mais amplo da especificidade que reflecte, ficam abertas largas possibilidades de um resultado insurreccional. Nesta perspectiva, o anarquismo não é uma doutrina, senão uma maneira concreta de enfrentar o existente, de lutar contra este pela sua definitiva e total destruição.
16. PÓSINDUSTRIALISMO, ESTADO, LUTAS DE LIBERTAÇÃO NACIONAL
O estado moderno surgiu das exigências das burguesias locais, em raivosa luta entre elas, durante o período de acumulação originária do capital, do seu enraizamento e expansão em territórios circunscritos. Protecção e garantia do capital da competição estrangeira, dos ataques das massas proletarizadas e da resistência cultural e material dos povos e etnias históricas, hostis à penetração e ao domínio Estatal-capitalista. Etnocídio e genocídio acompanharam o Estado moderno desde as suas origens até ao surgir do terceiro milénio. Não é por acaso que o Estado se mostrou historicamente não só inimigo das massas proletárias, como também das forças sociais e políticas dos povos oprimidos. A aplicação das novas tecnologias aos processos produtivos de mercadorias (e na sociedade tecnológica qualquer coisa, material ou espiritual, real ou fictícia, é mercadoria), juntamente com a sabia utilização dos media na criação de realidades virtuais e na manipulação das consciências, modificaram radicalmente o quotidiano. A pulverização da indústria no território requer o máximo consenso por parte de quem habita esse mesmo território: um Estado não aceitado, a miúdo directamente confrontado e objecto de ataques contínuos por parte das populações, é um poder político incapaz de garantir a estabilidade e os interesses do capitalismo pós-industrial. Por isso, em muitas situações – velha Europa, América Latina, ex-império bolchevique, Médio Oriente e Extremo Oriente – assistimos não só ao nascimento de novos Estados, mas também à transformação de Estados ditatoriais em regimes democráticos, e noutros tradicionalmente centralistas (como o italiano, o espanhol, o francês, etc.) em regimes democráticos de ampla descentralização administrativa, com reais tendências até novas formas de poder estatal federalista.Ao mesmo tempo a mundialização do mercado permite e induz o desmantelamento da indústria tradicional que se encontra em áreas ainda não pacificadas. O objectivo é converter estas últimas, homologando-as aos mesmos processos produtivos pós-industriais, em gigantescas realidades ecológico-turísticas fictícias e, como tal, objecto das massas aculturadas, que consumando esse virtualismo, levam a cabo o processo de desculturalização que o Estado e o capital industrial não tinham chegado a fazer. O desmantelamento industrial nas Astúrias e em muitos lugares do País Vasco, o encerramento das minas da Cerdenha, etc., até à contemporânea imposição dos parque naturais e áreas protegidas, são melhor compreendidos se forem analisados por esta perspectiva. Ao Estado-capital actual interessa a ganância, não as maluquices ecologistas, que sabiamente sabe utilizar para fazer uma verdadeira e própria indústria capaz de transformar uma realidade fictícia numa ganância real.Aclaram-se assim também aquelas posições interclassistas, próprias da burguesia compradora, e do capital local das áreas geo-humanas oprimidas culturalmente. Com efeito, não se pode jogar mais ao enredo da libertação nacional no imediato e adiar a questão nacional para amanhã. A independência estatal, no pós-industrialismo, significa fazer imediatamente os interesses do Estado-capital e das multinacionais, e não se necessitas muito para entender que a independência real, a autodeterminação dos indivíduos e dos povos não pode existir se está debaixo do jugo material do capital autóctone, varias vezes confundido com o estrangeiro. Hoje, mais do que nunca, a luta pela autodeterminação tem que ser ao mesmo tempo a luta contra o capital e contra o Estado, mesmo e sobretudo contra o local, já que se vislumbra nas administrações periféricas e nas regionais, com todos os aspectos de autoctonia. Luta que tem que manifestar-se com novas formas de organização, adequadas ao ataque real à sociedade tecnológica: não em estruturas político-militares e interclassistas, porque continuariam a produzir o martírio dos indivíduos e a racionalização do Estado-capital. Não mais exércitos de libertação nacional que com o pretexto da autodeterminação futura, na realidade constróem o Estado local mais adequado à sociedade do domínio pós-industrial, e por isso, liderando a nova opressão e homologação à mercadoria. Não mais a luta contra um único Estado, historicamente opressor das situações geo-humanas específicas, mas sim contra todos os Estados que representam um interesse único e um inimigo único que há que golpear. Hoje, mais do que ontem, os exércitos revolucionários não têm nenhuma razão de ser: o inimigo está difundido em todo o território, para golpeá-lo bastam pequenos instrumentos, um pouco de vontade e muita criatividade. Mas é evidente que golpear o inimigo num só ponto, num só território, não lhe constitui uma ameaça de todo. Para colocá-lo seriamente em discussão, há que toma-lo na sua real extensão e ramificação, que vai para além das marcas nacionais e culturais dos povos e dos Estados, dando-lhe o assalto de maneira sintonizada, cada qual segundo os seus próprios instrumentos, métodos e sensibilidades.
17. PROPOSTA DE UMA INTERNACIONAL ANTI-AUTORITÁRIA INSURRECCIONALISTA: A SOLIDARIEDADE REVOLUCIONÁRIA COMO CUMPLICIDADE NA LUTA.
A perspectiva internacional permite-nos localizar a presença das multinacionais na nossa região, e ao mesmo tempo, identificar o capital local noutras regiões em coligações de interesses que são as multinacionais.De tal modo descobrimos que o pecorino Sardo (queijo de leite de ovelha), por exemplo, pode desembarcar no Canadá e nos E.U., porque se traduz numa mercadoria da multinacional Barilla. Por sua vez esta multinacional é constituída por capitais de outras multinacionais que operam noutros lugares do planeta. E descobrimos ainda, que também os aforros dos mais míseros proletários Sardos, entregues nas caixas do Banco da Sardenha, misturado com capitais de outros bancos e multinacionais, acabam por ser uma das realidades opressoras de povos, etnias e proletários em cada canto do planeta. Com estas constatações estamos em posição de entender quanto inócuas e miseráveis são as formas de “protesto e solidariedade” que muitas vezes se expressam em desfiles igualmente inócuos nas ruas de algumas cidades; “em solidariedade” com as forças revolucionárias e os povos combatentes. Gritar contra as multinacionais e o Estado que no México, por exemplo, continuam tranquilamente a exterminar os povos de Chiapas, chega a ser uma forma folclórica que alimenta o regime democrático da sociedade pós-industrial, porque este se fortalece pela estéril forma de divergência apresentada apresentada em praças e nos territórios que realmente domina por outros meios. Para se sair dos folclóricos e inúteis protestos em desfiles ordeiros, é necessário encontrar na nossa terra a materialização do inimigo real – em termos de instituições, sedes e homens – que opera em Chiapas, mas mais tranquilamente em nossa casa. O Estado-capital assim localizado pode e tem que ser atacado em Chiapas e noutros lugares de forma sintonizada. Paralisar o lucro do Estado-capital, é a verdadeira solidariedade revolucionária que, dessa maneira, não é mais dávida de sentimentalismos e paternalismos, mas sim cumplicidade na luta pela autodeterminação dos indivíduos e dos povos.É nessa óptica que, juntamente com companheiros doutros lugares, lançamos a proposta de uma Internacional Antiautoritária Insurreccionalista (I.A.I.) desde 1992. Proposta que não passou inobservada pelos guardiões e diligentes do Estado-capital – certamente não dotados para entender as novas formas radicais da rebelião social e da insurgência fora das condutas das organizações políticas tradicionais (partido armado, organização vertical, etc..).A Internacional Antiautoritária Insurreccionalista não é uma estrutura, não é uma máquina, nem sequer um mecanismo que se reproduz a si mesmo. Nem tampouco é uma entidade formalizada, mas simplesmente um momento, um espaço, uma possibilidade de socialização das tensões e dos projectos de indivíduos e grupos que desde já se estão a confrontar realmente contra a sociedade do Estado-capital informatizado, segundo a metodologia insurreccionalista, a informalidade nas relações e o repúdio de qualquer ideologia, que na abstracção e no purismo religioso desviam energias do confronto contra o inimigo de sempre, mas desta vez dissimulado com a informatização. Também neste caso, a perspectiva de libertação nacional e de solidariedade material, o anarquismo insurreccionalista e a informalidade organizativa, têm algo a dizer.
Obrigado pela Atenção e paciência.Se nos ocuparmos da primeira perspectiva, podemos facilmente entender os fundamentos que dão coerência teórica ao anarquismo, quer filosófica quer politicamente. No entanto esta perspectiva apresenta grandes limitações no discurso e no debate porque se pode deslizar para a abstracção ideológica. Compreender o anarquismo significa entender os elementos que, para além dos aspectos doutrinários, estão enraizados em cada indivíduo em perpétua tensão existencial. Um dos elementos base do anarquismo é o reconhecimento da proeminência dos indivíduos, de cada indivíduo, no âmbito do universo humano. Cada pessoa é um ser único capaz de alegrias e sofrimentos, de acreditar e negar, de concordar e discordar, de ter e não ter vontade própria. As outras entidades empregues na política, na sociologia, na antropologia e na história para definir um grupo de indivíduos são conceptualizações que, quanto mais abstractas, mais se distanciam do ser real.O conceito de “povo”, como é compreendido pelo anarquismo, exprime a agregação de seres humanos, das suas condições materiais e espirituais, e das suas várias inter-relações. Assim, falar de um povo é referir as condições e relações dos indivíduos que o constituem. Só a partir desta perspectiva é possível reconhecer a estratificação social, i.e., a composição das classes no seio de dada população. Podem-se então descortinar condições de vida que pertencem exclusivamente a um grupo, e não ao todo da comunidade. Estas diferenças explicam frequentemente conflitos internos do corpo social.Seguindo este conceito, afirmar que a nação Sarda é explorada e colonizada não significa que todo o habitante da Sardenha seja explorado e colonizado. A “Nação”, não passa de um conceito, útil ao interrogar a universalidade dos indivíduos que partilham alguns elementos da vida social e algumas experiências históricas; mas é claro que na vida quotidiana há diferenças substanciais entre indivíduos, ditadas pelas suas condições de vida. Evitar a abstracção é então necessário para iluminar essas diferenças e para agrupar indivíduos da mesma nação com base na similaridade das experiências de vida. Então será possível discriminar quais estão a ser explorados e colonizados e quais são, de uma maneira ou doutra, opressores ou cúmplices da opressão na nação Sarda.Para o anarquismo, então, reclamar a proeminência dos indivíduos significa que cada um se deve colocar na luta revolucionária dos oprimidos e desfavorecidos tendo em conta esta assunção básica, que se pretende não apenas como fim, mas como método e ética. Lutar pela liberdade absoluta de cada indivíduo implica que nos organizemos e combatamos com base em tal liberdade. Hoje em dia o conceito de liberdade está estafado; significa tudo e nada ao mesmo tempo. É necessário esclarecer a concepção anarquista. Aqui, ela coincide com a autodeterminação dos indivíduos. Conseguimos a liberdade quando encontramos em nós as motivações, as tensões e as razões da nossa acção, a força para agir, preenchendo a nossa existência com conteúdo criado por nós.Só indivíduos autodeterminados podem constituir uma comunidade autodeterminada. Se isso é negado nem que seja a um único indivíduo, não é possível falar de uma comunidade autodeterminada. Somos seres sociais; não escolhemos pertencer a uma sociedade, nascemos nela. Se as condições e as relações que emergem de um corpo social são baseadas na autodeterminação, o recém-nascido é colocado num ambiente que reproduz a autodeterminação, quer nas condições materiais da existência, quer nas espirituais. Tal como foi demonstrado pelas provas crescentes da antropologia — agora que foram postas de parte algumas tendências etnocêntricas e historicistas-finalistas — qualquer corpo social não passa de uma rede de relações inter-individuais que garantem a sua continuidade. Onde haja divisão social, diferenças nas condições de vida entre indivíduos e classes, esta rede tende a reproduzir e preservar a separação e a estratificação. Pelo contrário, se o corpo social for coeso, as relações internas reproduzirão a sua união e coesão. Assim concebida, a liberdade individual é distante e distinta de outras interpretações éticas, sociais, políticas e filosóficas. Nenhum movimento/pensamento anarquista pode procurar atingir o ideal igualitário, porque a sua primeira causa é justamente a negação de todas as formas de padronização. A igualdade é aceite como ideal de paridade nas condições de vida para todos os indivíduos como base para o livre desenvolvimento da unicidade dos mesmos. O combate à padronização tem repercussões no anarquismo. Ele não é um corpo monolítico válido para toda a gente. Pelo contrário, há tantas formas de anarquismo como há pessoas. Daqui se pode concluir que o anarquismo é um conjunto de posições políticas fundadas sobre a autodeterminação individual. Porque o espaço político é o lugar de manifestação do poder na sociedade, o anarquismo, negando validade ao poder centralizado que subordina os indivíduos, é uma posição política que visa destruir todas as formas de poder. Neste texto, vou propor a minha acepção de anarquismo, apontando aquilo que é comum a, e aquilo que é diferente de, outras formas de anarquismo.
2. O MOVIMENTO ANÁRQUICO NA PERSPECTIVA HISTÓRICA
O anarquismo nasceu, cresceu e ganhou os seus traços — como movimento de luta de classes e como doutrina — no fervilhar de ideias, tensões e lutas que foram o Socialismo na segunda metade do séc. XVIII. O socialismo opunha-se ao liberalismo (e ao laissez-faire, laissez-passer, que era a face económica do liberalismo político). O liberalismo era uma expressão dos interesses da burguesia capitalista, numa altura em que se erguiam os estados modernos das cinzas da sociedade feudal. O liberalismo exigia uma absoluta liberdade de capitais, sendo ignorado o sofrimento de milhões arrancados ao campo e privados dos direitos que tinham conquistado durante o feudalismo. Na esfera política, o liberalismo exigia que os governos fossem neutros, o que garantiria a liberdade dos capitais e construiria uma defesa contra os ataques dos proletários.O socialismo punha os interesses de toda a sociedade acima dos de qualquer classe particular; dava ao estado o papel de regular conflitos e de intervir a favor de classes impossibilitadas de desfrutar da riqueza nacional. Quer liberalismo quer socialismo partilhavam (e ainda o fazem, até nas novas formas que adquiriram) algumas noções que são a ideia base da existência capitalista/ocidental:- o historicismo, em todas as suas encarnações- a ideia de progressoInterpretar os acontecimentos humanos como uma série de estados sucessivos, cada um ligado ao anterior e ao seguinte e em que cada um é um melhoramento em relação ao que o precede, conduzindo a melhoramentos inevitáveis, pode fazer-nos concluir que o capitalismo é parte não negligenciável do caminho histórico da humanidade, uma passagem fundamental que não pode ser discutida na sua essência, mesmo que crie grande sofrimento e contradição nas contingências específicas do seu funcionamento histórico. A concepção historico-finalista está presente no pensamento de Hegel e Marx, se bem que modificado. Mesmo tendo o anarquismo sustentado diversas críticas ao historicismo e à ideia de progresso, continua preso neles, como numa armadilha, partilha com o socialismo algumas concepções gerais que derivam do horizonte cultural daquela época.
III. O MOVIMENTO ANÁRQUISTA NA SUA ESPECIFICIDADE
Em meados do século XIX, o anarquismo desenvolveu a sua especificidade, distinguindo-se de outras correntes do socialismo e também do recém-chegado marxismo. Este processo tinha-se realizado em poucas décadas, talvez em “competição” com várias atitudes socialistas, mas também na luta de classes que começava a organizar-se, primeiro local e esporadicamente, e logo internacionalmente (a Associação Internacional dos Trabalhadores, ou Primeira Internacional, foi constituída em 1864). Na década de 1840 emergiu um parêntesis teórico graças a um filósofo da esquerda hegeliana, Max Stirner, perito no socialismo elaborado por Feuerbach, Marx e outros. O seu trabalho abriu as perspectivas práticas a partir de 1900, embora na altura da sua elaboração tivesse influência limitada entre revolucionários (sobretudo Bakunine). O livro de Stirner, O Único e a sua propriedade, (que ele escreveu para além de outras recensões críticas) é uma tomada de posição radical contra certos fundamentos do materialismo presente no socialismo. O que Stirner evidencia é a perda completa do único, ou seja, do indivíduo concreto, da real subjectividade humana, específica e irrepetível, na alienação daquilo que lhe é completamente estranho. Ao falar da humanidade, de povo, de uma classe e dos seus interesses, os socialistas põem o problema da libertação ao contrário; os indivíduos desaparecem para defender causas que lhes são alheias e até prejudiciais. Se não reconhecermos a unicidade individual, uma coligação de indivíduos com passados semelhantes que lutam em comum para afirmar a sua liberdade, cedo se verão a servir causas que não são as deles. De acordo com Stirner, existe a possibilidade de encontrar alguém que se aliste nesse grupo sem que siga um único estandarte. Ele vislumbrou no trabalho de Feuerbach um novo processo de alienação — que afasta o indivíduo de si próprio, e essa é a base da posição socialista e marxista — a tendência para a padronização dos indivíduos (Feuerbach teorizou a “verdadeira humanização” através da vitória sobre a alienação em Deus, e daí a deificação da humanidade).A posição Stirneriana deve ter tido algumas influências no crescimento do pensamento de Bakunine, que pôs de lado elementos hegelianos externos e a integrou numa síntese anarquista completa, tendo o cuidado de não esquecer o princípio da proeminência dos indivíduos. Mas será só no final do século dezanove, princípios do século vinte, que o trabalho de Stirner teve crescente importância na racionalidade anarquista, privado até aí pela confusão dos seus detractores. A especial atenção que o anarquismo dedica ao indivíduo, resultando daí o seu posicionamento sobre o poder, marca o caminho que leva a uma distinção explícita entre este e outros ramos do socialismo e do marxismo. O choque crucial ocorreu durante a Primeira Internacional. A Associação Internacional dos Trabalhadores fora constituída em Londres nos círculos operários europeus. Obviamente as escolhas organizacionais e as lutas de âmbito europeu reflectiam as muitas variantes do socialismo, à mercê de serem tão vagas. Cada grupo e cada tradução da carta da organização interpretava o vago à sua maneira, mesmo que, para dizer a verdade, as próprias cartas reconheciam diferenças.Não importa como, o conflito instalou-se porque:
- Enquanto na opinião dos anarquistas a organização não podia senão reflectir as necessidades e tensões dos grupos aderentes e assim os órgãos institucionais não deviam ter nem funções administrativas nem substituir a assembleia geral de delegados, os marxistas, reunidos em particular à volta da componente social-democrata germânica, advogavam o contrário. - Enquanto para os anarquistas a Associação encontrava pleno significado na luta económica da classe operária, os seus opositores acreditavam que ela se devia envolver nas lutas eleitorais.
Assim que emergiram, as diferenças mostraram-se irreconciliáveis. Marx num golpe-de-mão transferiu para Nova Iorque o Conselho Geral da Associação, para a afastar da influência dos Bakuninistas. Os anarquistas participaram numa primeira Conferência em Rimini em 1871 e depois noutros lugares, respeitando os objectivos originais estabelecidos na carta da Associação. Mantiveram-na viva com o nome de Internacional Anti-Autoritária, para a distinguir da outra que desapareceria nos Estados Unidos dentro de pouco tempo.
4. O ANARQUISMO E A QUESTÃO DO PODER
Se a liberdade de cada um e de todos coincide com a autodeterminação dos indivíduos, está claro que cada poder, cada ordem que se situa fora dos indivíduos, é para o anarquismo, algo que é necessário destruir. O poder assim entendido pode manifestar-se nos vários âmbitos da vida social: na economia, na ideologia, na religião, etc.., mas em qualquer caso acabará por se concentrar numa única realidade. A manutenção do poder concentrado deve-se em parte à imposição brutal e à persuasão daqueles que o gerem; e em parte por delegação voluntária dos dominados, ou melhor, dos que recusam a autodeterminação. A escravidão é voluntária, a força bruta e a persuasão são fundamentos necessários do poder concentrado em cada sociedade. Lutar pela sua destruição deve constituir um ataque a estes elementos. A ligação entre eles aparece normalmente como uma unidade demonstrada por várias instituições, quer físicas, quer psicológicas.O processo de libertação tem duas faces: manifesta-se simultaneamente no choque frontal com as instituições e na luta interior dos indivíduos contra os elementos hetero-determinantes. É desde esta perspectiva que o anarquismo encara a luta contra o poder para a sua destruição. Em qualquer forma que tenha assumido historicamente, o Estado é a mais alta expressão do poder sobre os indivíduos. De acordo com a sua forma específica, o seu funcionamento é assente ou na brutalidade ou no uso do consenso, sem renunciar definitivamente a nenhum dos dois. É dentro do Estado que os vários campos de domínio (económico, religioso, ideológico, social, educacional, militar, etc.) se sustentam uns aos outros numa simbiose única. A participação dos subordinados nos seus mecanismos, institutos e instituições, em vez de denunciar a essência do poder, reforça-o, já que a oposição interna racionaliza e ajusta o poder tornado-o mais facilmente aceitável pelos dominados. Daqui deriva a oposição anarquista às eleições, a negação da delegação e do instituto de representação e a recusa completa da concorrência política como meio do indivíduo reclamar mais liberdade. Uma coligação de trabalhadores e de todos os subordinados (mais à frente falaremos da forma de coligação) torna-se necessária para se opor à organização e à arrogância do poder económico-político — e daí conquistar melhoramentos parciais nas condições de vida das massas proletárias para as elevar a uma existência digna — e para enfrentar a grande tarefa de destruir todos os poderes que se sobreponham aos indivíduos. Uma tal coligação serviria para afinar a consciência, para preparar material e psicologicamente os explorados na luta contra os exploradores. É assim que a luta por verdadeiros incrementos nas condições de vida é o ponto forte do anarquismo, e não o conflito político e eleitoral que reproduz os limites da dominação. Neste ponto os anarquistas entraram em colisão com os autoritários na primeira Internacional.
5. A CONSTITUIÇÃO DOS SINDICATOS
Aclarado o porquê da recusa anárquica na participação política, entendem-se também as razões que levaram os anarquistas a criar os sindicato de classe. Mas para compreender melhor aquelas que identificarei como carências e contradições que o sindicalismo possui, é necessário ter em conta que o mesmo movimento anárquico não fica alheio às condições gerais da sociedade na Segunda metade do século XIX, estreitamente ligadas à chamada segunda revolução industrial (devida substancialmente à exploração da força motriz não humana – vapor, petróleo, energia eléctrica – e à sua aplicação no ciclo produtivo industrial).A ideologia do progresso indefinido, reforçada pelos descobrimentos, aplicações e exploração da vasta escala de fundamentais conquistas científicas e técnicas; a contemporânea afirmação da teoria evolucionista; o nascimento e o desenvolvimento das novas disciplinas como a sociologia e a psicologia na sua fase experimental; acabam por monopolizar a concepção da existência humana. O enxerto do marxismo em tal concepção – na análise específica de Marx e da sua metodologia, que mesmo revogando em termos materialistas o idealismo de Hegel se põe de toda a maneira na continuidade da tal concepção da luta de classes – remarcam a ideia de progresso na história humana.O sindicato representa para o anarquismo, por um lado, a organização autónoma das classes trabalhadoras para melhoria parcial das suas condições de vida – não só no interior da fábrica -, e por outro lado, o caminho propício até à revolução social. A organização sindical de natureza especificamente económica, contrapõe-se à organização de outras correntes do “socialismo”, que ao contrário dão origem aos actuais partidos políticos. Se para os anarquistas a luta económica une os trabalhadores, a luta política divide-os. Daqui o conceito de sindicato como auto-organização proletária sobre a base dos interesses materiais comuns a todos os explorados.O sindicato representa também, nesta óptica, uma estrutura organizadora de massa, não uma organização específica anárquica (ficando esta entendida como uma componente política do proletariado). Como tal, une os interesses imediatos da classe trabalhadora na perspectiva da libertação revolucionária das amarras do capitalismo e do estado.Pondo o progresso como indiscutível, o capitalismo industrial é concebido como a etapa histórica do percurso temporal da humanidade, que libertando ao máximo as forças e as capacidades produtivas da espécie, abre a perspectiva para os homens da sociedade ideal, do paraíso na terra, desejado pelos humildes. Para alguns trata-se simplesmente de apressar os tempos da sua chegada (e são as componentes revolucionárias), para outros de chegar a isso de forma gradual, utilizando os mesmos instrumentos que a sociedade capitalista e o Estado oferecem (e são os reformistas).Em nenhuma das componentes ideológicas da classes proletária é substancialmente discutida a ideologia do progresso, o historicismo, o finalismo que as caracterizam. As mesmas doutrinas económicas reforçam-se frente à segunda revolução industrial, que aparece como resolução das problemáticas sublevadas por Malthus, acerca da disparidade crescente entre o aumento geométrico da população e aquele restringido pela produção de bens. O livre desenvolvimento das forças produtivas num regime capitalista, como ordena a ideologia do progresso, encontra na aplicação das novas forças motrizes da indústria, o adequado aumento geométrico da produção de bens necessários para o crescente aumento da população!O anarquismo, que faz fundadas críticas às concepções científicas, finalistas e mecanicistas (pegando nas degenerações do marxismo em relação à originalidade do pensamento de Marx), não chega a sistematizar de modo coerente o pensamento anárquico (a-progressivista e a-historicista) e a sua actuação prática no plano da organização e da luta. O sindicalismo será sempre, para o movimento anárquico maioritário, a estrutura organizativa das massas que – ainda não suficiente para garantir o bom funcionamento da sociedade livre do futuro e por isso necessitado das particulares atenções por parte da organização específica anárquica, que o acompanha passo-a-passo – representa uma espécie de substrato, de apoio sobre o qual se articulará cada âmbito da organização social à escala planetária. O economicismo de fundo, assim como a continuidade entre o presente e o futuro liberto, continuaram sendo aquela que para Marx é a única estrutura da sociedade sobre a qual se articula, dialecticamente, cada âmbito da existência humana, referindo-se a esta em última instância.Substancialmente, o capitalismo e o industrialismo não são discutidos em si, como um dos eventos historicamente limitados e circunscritos ao itinerário temporal de uma dada parte da humanidade; mas são vistos como etapas necessárias e superáveis da história no seu conjunto, que se encaminha até ao sol do paraíso que chegará. Trata-se de socializar os frutos do progresso, de socializar – porque todos participam na sua formação – o proveito, que no regime capitalista é expropriado aos produtores. Na actual etapa de progresso humano, de facto, à socialização da produção não lhe corresponde a socialização do fruto dessa mesma produção: a contradição de fundo encontra-se na privatização dos meios de produção, açambarcados pela burguesia capitalista, e na socialização do trabalho. Socializando os meios de produção, etapa não eliminável do próprio progresso, a contradição de fundo encara-se e resolve-se na síntese socialista, ou melhor, comunista, então em anarquia. (estranho modo de entender dialéticamente o social, esta tríade perene que acaba por desaparecer do todo o paraíso terrestre ansiado como o fim da história – dialéctica – e o começo da verdadeira “humanidade”, é dizer do homem humanizado que neste ponto se coloca fora da mesma dialética triádica e não se sabe bem como acaba).Desse modo, para os trabalhadores sindicalizados, é a mesma fábrica de hoje que representa a base material da – e de continuidade com a - sociedade futura. As greves, as ocupações das fábricas que se farão produzir em condições de autogestão operária, são a demonstração prática da continuidade do modo de produção capitalista na sociedade livre de amanhã, quando tal modo de produção encontrará superada a contradição da privatização de uma parte do fruto colectivo do trabalho. A crítica anarquista à presumível auto-suficiência do sindicalismo emergiu com extrema clareza no congresso de Amesterdão, no inicio do século XX. Contudo não chega a incidir sobre a concepção de fundo da própria da civilização ocidental, a qual não discutida de forma radical, acabará por impor-se em cada canto do planeta com as consequências que todos conhecemos.
6. O FEDERALISMO COMO PRINCIPIO DA ORGANIZAÇÃO MAIORITÁRIA DO MOVIMENTO
Dada a centralidade histórica da plena liberdade de cada indivíduo e a necessidade de organização, seja no plano social, seja na luta contra a autoridade, a própria organização não pode asfixiar a liberdade. É necessário encontrar um principio que , na sua aplicação prática, reconheça plenamente uma e outra, e que seja aplicável seja à organização específica anárquica, seja à organização sindical de massas. Considerado o privilégio que toma o momento material da existência humana, é dizer o económico-produtivo, a grande maioria dos anarquistas encontraram no principio federalista o que procuravam, e aplicaram-no a partir do modelo económico, estendendo-o logo a todos os campos da vida social. Substancialmente tal principio funda-se na estipulação de um pacto entre acordantes que o contraem e aceitam. Pois, aparentemente, na estipulação de pactos voluntários há salvaguarda da integridade do indivíduo no, no que diz respeito à sua autodeterminação; e a mesma organização que se cria – fundada sobre o principio federalista – fica em plena possessão dos contratantes, mas estendendo a força dos mesmos.A maioria dos anarquistas aplicam o principio federalista, seja nas próprias organizações específicas ou nos sindicatos. O indivíduo estipula pactos com outros indivíduos e assim se constitui uma primeira federação, um grupo federado; diversos grupos estipulam por sua vez um pacto federal e criam um segundo nível federativo e assim seguindo, até às federações de federações que acabarão – do indivíduo ao município, do município à região, da região à nação, e desta às federações internacionais – por representar uma verdadeira e própria teia de pactos que de forma unânime cobrirão cada canto do planeta (antes Proudhon, depois Bakunin).O principio federalista responde a duas específicas exigências advertidas pelos anarquistas maioritários: - estabelecer no plano organizativo a continuidade, ainda em transição revolucionária, da actual sociedade até à futura sociedade livre, assumindo o seu funcionamento pelo menos nos momentos essenciais (materiais) da existência individual e colectiva (no sindicato afina-se a capacidade autogestionária dos produtores directos, os quais em período insurreccional e pós-insurreccional garantiram a produção);
- Criar estruturas formais que estejam em directa competição com as organizações das outras correntes e tendências do proletariado; a lógica é aquela, por um lado, de fazer prosélitos para engrossar as fileiras do anarquismo e, por outro, de chegar a radicar-se de qualquer maneira nas massas proletárias, para que em período insurreccional a influência anárquica seja determinante e participe assim de modo consistente na construção da nova sociedade.
Ainda não acreditando na possibilidade duma revolução totalmente anárquica, ou preponderantemente anárquica, prevalece de certo modo o temor quantitativo. Exacerbado provavelmente pela firme repressão que reduzia os anarquistas em todos os Estados, pela competência dos adversários que na metodologia reformista, insinuada também nos sindicatos, e aparentemente científica (em harmonia com as concepções difundidas) ou pela demagogia populista, esterilizavam os movimentos de classe, ou então canalizavam-nos até posições de pacífica convivência social e institucional. Em todos os casos, as organizações federais, específica e sindical, na sua influência recíproca (intercâmbio de homens e ideias de uma parte para a outra) adaptam-se perfeitamente às condições gerais e concepções da época, nos séculos XIX e XX. O fim imediato das organizações que se criam é a preparação das condições para a revolução proletária. Isso significa propagandear o anarquismo no seio das massas proletárias, participar nas lutas proletárias que surgem espontâneas, e promover outras sobre a base das exigências imediatas, para que em tais lutas se afinem as consciências e apareça uma nova sensibilidade e força que encontre finalmente saída e plena realização do amanhã libertado. Daqui uma espécie de programação na intervenção social, que é concebida como conquista gradual e penetração no seio das massas analfabetas, brutalizadas pela miséria e pela exploração, muitas vezes produto – pela ignorância em que eram mantidas – dos demagogos e dos padres, assim como do explorador directo. De tal programação está excluído, calado, denegrido, envilecido cada acto de revolta individual e colectiva que segundo o anarquismo federado só gera repressão, afasta as massas do anarquismo, prejudica a operacionalidade e a imagem das organizações específicas. Desaparecem assim da história do anarquismo épocas inteiras profundamente marcadas, no âmbito da luta de classes, pelo radicalismo de posições e acções que se confrontam directamente com o esperancismo de salão dos programadores, com as metodologias paralizantes das organizações específicas, com as pretensões de alguns que querem impor as suas planificações sociais e leituras “objectivas” e deixam para trás dia-após-dia o ataque concreto às estruturas e aos homens do poder. O olho deixado perenemente aberto até à gestão da sociedade de amanhã e as pressupostas condições objectivas óptimas para a transição, fazem perder de vista ou cair, por serem secundárias, as razões de luta, de confronto, que são perenes e imediatas, porque perenes e imediatas são as condições determinadas pelo poder concentrado se não se opõe a isto uma metodologia adequada que represente desde já, pelo menos, um válido dique às sua prepotência.Mas é o mesmo principio federalista que, segundo a minha opinião, apresenta grossos limites e determinado formalismos e metodologias de espera que acabam por paralisar, não só e não tanto o movimento específico anárquico, senão as mesmas lutas proletárias nas quais ostenta certa ascendência.
7. O LIMITE DO FEDERALISMO
O pacto federal mantêm a sua positividade somente quando o acordo diz respeito a um conteúdo e a um fim específicos a alcançar. No momento em que contempla na generalidade conteúdos e fins, é inevitável a degeneração numa instituição formalizada nos seus mecanismos, e então o decair da máquina que absorve energias e tempo, paralisando a actividade dos afiliados em tentativas de compromissos para manter viva a própria estrutura federal.A existência humana não é um conjunto de relações, tensões, desejos, momentos materiais e espirituais dados para sempre. E nem todos os âmbitos da existência se podem reduzir a conteúdos e fins que são objecto de estipulação de contractos e pactos. Com base nalgumas exigências específicas, interesses específicos, os indivíduos podem livremente unir-se para reforçar a sua própria energia, conseguir o fim comum economizando tempo e forças, e em tal caso o pacto federal garante contudo a autodeterminação dos sujeitos. Mas no momento em que se vai mais adiante, a mesma organização federal deixa de ser instrumento útil para todos os associados, para ser um fim em si mesma, sobrepondo-se aos federados. É o caso, seja dos sindicatos – mesmo que sejam anarco-sindicalistas ou revolucionários – seja da organização especifica anárquica.Vimos como, dada a centralidade do momento económico-productivo na concepção historicista-progressivista própria do século XIX e chegada até nós, o sindicato representa a continuidade entre o presente e o futuro. Está claro que se entre os trabalhadores, no caso de uma dada indústria ou de um dado sector, nos federamos em perspectiva, por exemplo, de cada renovação contratual, e só por este facto, os momentos que caracterizam o operar de uma federação se desenvolveram todos no interior do interesse comum: as discussões dar-se-ão na base das petições que é necessário formular ao patronato em termos de salário, de tempos de trabalho, de salubridade na fábrica, de medidas preventivas e assim seguindo, como também das lutas por desenvolver e dos métodos a utilizar para impor ao patronato a aceitação das petições. Os momento de discussão são definitivamente, estreitamente conexos com o conteúdo do pacto e o alcance específico comum.Se, ao contrário, a organização federal está constituída sobre a base genérica de interesses gerais (a salvaguarda da classe trabalhadora; preparar as condições para a revolução social; etc.), os momentos que a caracterizam tornam-se mais complexos e, sobretudo, as discussões serão inevitavelmente dirigidas às concepções gerais de cada indivíduo e dos grupos, pelo que se tornaram indispensáveis atenuações e sínteses, até alcançar um acordo que satisfaça a todos mas insatisfazendo cada qual pelo facto de que cada um, em vista do mantimento da organização e da própria unidade, renuncia a algo próprio que representa exactamente a especificidade do próprio ser. A organização toma assim posse da especificidade de cada sujeito e pretende um itinerário próprio.Isso acontece porque quem se organiza vê o presente como se fosse uma etapa necessária para o futuro, e procede às lutas e métodos de luta que medeiam as necessidades de hoje com um futuro já pré-determinado (ou pelo menos concebido como tal). Daqui o progressivo degenerar das estruturas sindicais em instituições de poder, submetidas aos interesses e concepções dum partido, ou melhor, do capital-Estado no seu conjunto. As organizações federais actuam em perspectiva, isto é, em função de uma continuidade entre o hoje e o futuro, hipotecando assim o amanhã às mesmas exigências de hoje: o mantimento do poder social.O anarco-sindicalismo espanhol é aquele que, tendo conseguido o ápice das possibilidades inerentes à organização federal operante a partir dos interesses gerais, evidenciou, na tragédia de 1936-’39, os limites maiores e todas as contradições de tal perspectiva. A C.N.T. (Confederação Nacional do Trabalho, a estrutura anarco-sindicalista espanhola maioritariamente representativa do proletário sindicado) ainda nas condições revolucionárias emergidas da sublevação proletária contra o golpe do Estado militar que logo será guiado por Francisco Franco – condições que a mesma C.N.T. contribuiu em determinar, tendo também entre outros objectivos o de construir o futuro ou momentos da sociedade livre - , teve que dar a sua própria contribuição à reconstituição do poder estatal que se dissolveu no momento insurreccional generalizado. Valorizações do tipo político, juntamente com a consideração da estrutura sindical como momento determinante na construção do futuro, logicamente impuseram negociações com as centrais sindicais e de partido, e então a participação de diversos anarquistas na posição de ministros no governo autónomo da Catalunha primeiro e depois no governo central de Madrid. O resultado foi indubitavelmente válido no que concerne às colectivizações das indústrias e dos campos, em curso durante um breve período, mas absolutamente negativo no médio e longo prazo aquando da reconstituição do poder centralizado com a indispensável contribuição dos anarquistas. Aquelas realizações positivas logo tiveram que fazer contas, fosse na frente na luta anti-franquista, fosse na abertura da retaguarda pelas forças estadistas que se tinham restabelecido.O dito pelo sindicato vale, e com a maior razão, para a organização específica anárquica baseada no principio federalista.Antes de tudo, pela particularidade do anarquismo que não sendo um bloco monolítico se adequa às peculiaridades individuais, torna-se necessário para a organização federal um primeiro esforço com a intenção de atenuar todas as diferenças bem existentes e substanciais entre os diferentes anarquismos dos associados. De tal maneira o próprio anarquismo acaba reduzido numa síntese que todos partilham só por ser bastante genérica.Em segundo lugar, o momento central da federação, isto é, da assembleia geral dos federados, chega a ser necessariamente espaço deliberativo-decisivo onde se estabelecem estatutos e considerações; uma concepção do anarquismo adaptada à própria existência da federação, fins que têm que ser alcançados no curto, no médio e no longo prazo, baseados nas suas leituras, já sintetizadas, a partir da mesma visão do social e da sociedade em geral donde se deduz a operacionalidade e as intervenções que se vão pôr em marcha.Uma máquina deste tipo (aparte das considerações que se seguem), se tinha muito pouca capacidade de incidência social na época industrial, quando os ritmos impostos pela tecnologia tinham ainda alguma dimensão humana, não tem nenhuma capacidade no presente histórico, dominado por ritmos ditados exclusivamente pelas necessidades tecnológicas. O operar da federação anárquica é feito em função das concepções gerais do anarquismo, sintetizado em momentos comuns a todos, e da leitura dos factos sociais que em particular ou no geral são a sua área de intervenção. Confrontando-se com uma mudança social, torna-se necessário retomar novamente por meio de comissões de estudo, congressos específicos e gerais, assembleias deliberativas, etc.., novas linhas de objectividade e subjectividade. E é nisto que se evidencia como a formalização de uma estrutura organizativa revolucionária requer, se está baseada no princípio federalista, um gasto de energias considerável que, obviamente, é subtraído da real luta de classe. Na sociedade informatizada chega-se facilmente ao absurdo, visto que o ritmo das inovações e aplicações tecnológicas já levou ao paradoxo, as mutações introduzidas num sector específico reflectem de imediato todos os outros, provocando adaptações em todos os âmbitos do social.O outro momento de debilidade da organização federal de síntese é o seu momento central: a assembleia. Esse é o lugar, por antonomásia, no qual o anarquismo prova a si mesmo a própria validez, não tanto sobre o plano dos conteúdos ideais, mas sobre aqueles organizativos e metodológicos.
8. CRÍTICA DA ASSEMBLEIA DELIBERATIVA
Contrariamente ao que acreditam muitos, a assembleia decisiva-deliberativa é uma instituição autoritária, que está por cima do indivíduo. Um facto, entre os mais curiosos da história, é que uma consistente parte de anarquistas acreditou que isso correspondesse plenamente aos interesses do anarquismo, e coisa ainda mais curiosa é que hoje em dia um boa parte de anarquistas federados, sendo a assembleia deliberativa o lugar central da instituição da democracia directa, acabam por fazer coincidir o anarquismo nesta.A assembleia, o lugar de encontro, discussão, debate, socialização é indubitavelmente importante, já que condensa e reforça conjuntamente a sociabilidade, a riqueza específica de cada indivíduo que, confrontando-se com os outros avalia melhor as suas próprias concepções. Não será a própria vida uma tensão e confronto contínuos? Não reconhecerá o indivíduo a sua especificidade no contraste com os outros? Pois o momento assembleário é, na sua pequenez, um aspecto da própria vida.Mas no momento em que essa realidade decai, por ser um espaço deliberativo, escapa ao indivíduo e formaliza-se acabando por ser espaço autoritário que o asfixia. O porquê é simples.Deve-se deliberar, é dizer, tomar decisões acerca de algo, então haverá que decidir, de dar a tal coisa conteúdos e contornos precisos. Considerada a peculiaridade do anarquismo não é fácil, as mesmas particularidades aparentemente secundários para uns, têm para outros a máxima importância. Resulta daí que, ou se procede outra vez por síntese, renunciando às particularidades – mas isso nem sempre é possível – ou pelo contrário, haverá que eleger entre propostas diferentes que amiúdo não admitem compromissos. As distintas posições aliam-se por facções, e as distintas facções recorrem a todas as possibilidades da arte política, da demagogia, da capacidade de gestionar e manipular a assembleia: arte oratória, encenação, persuasão subtil, resistência, confusão, faculdades de realização imediata que não se manifestam da mesma maneira em todos os indivíduos nem tampouco nos mesmos tempos. O voto ratifica a autoridade que emerge do contraste com o fim de decidir colectivamente. Os indivíduos, todos os indivíduos, para além da sua própria posição ser aquela adoptada ou não, saem patentemente derrotados, vencidos por um mecanismo formalizado pela astúcia, encenações, praxis consolidada, competição miserável. A assembleia deliberativa impôs o seu próprio poder, alcançando a todos indistintamente.Já me ocorreu presenciar assembleias deliberativas anarquistas, até uma vez, num dos congressos gerais da Internacional das Federações Anarquistas (I.F.A.), e posso-vos assegurar que vi de tudo naquelas sedes, em nada diferente do que ocorre em cada partido político, se não fosse pelo facto de que estes últimos têm interesses de poder para defender, os anarquistas Não! Então qual a razão para os subterfúgios, as tretas dialécticas, os jogos psicológicos, o trabalho atrás dos bastidores contra as posições que contradizem a mesma? Honestamente, tudo me deu a impressão de um manicómio.No entanto, tudo está perfeitamente em regra no que respeita à formalidade dos mecanismos. No espaço formal do funcionamento da assembleia federativa, tudo vem respeitado pela parte de todos: mesa da presidência do congresso, passagem de consigna, nomeação de comissões, atribuição de cargos, inscrições para falar, propostas que têm que ser votadas, votações, contagem de mãos levantadas, aprovações e desenhos, e assim sucessivamente; tudo transcrito pontualmente, registado para futura memória. Um carácter tímido, uma sensibilidade como a minha que necessita de tempo para perceber o que se está a passar, uma personalidade não inclinada para os panegíricos do politiquismo e não propícia à demagogia da arte persuasiva, mesmo expondo respostas objectivamente mais válidas do que as outras, estas ficam esmagadas, asfixiadas, anuladas pelo mecanismo assembleário.Mas há outro aspecto, igualmente importante, que evidencia quanta confusão há no anarquismo organizado de maneira federativa e que tem como momento central do seu funcionamento a assembleia deliberativa: tal aspecto é o instituto democrático, essencialmente baseado na votação da proposta, e é por si mesmo uma enorme contradição para o anarquismo, seja nos termos metodológicos, seja naqueles mais propriamente gnosiológicos. O conteúdo das propostas (seja no que concerne à análise, seja no que concerne a operacionalidade revolucionária) constitui-se sobre a base das sensibilidades específicas, das concepções do anarquismo e da existência em geral, própria dos sujeitos que as elaboram. Tem portanto um valor em si, para além de outros o partilharem ou não. O facto de submeter a uma votação tal conteúdo, é algo que menospreza de todas as maneiras aquele valor próprio, reduzindo-o a objecto de mera contabilidade numérica, como se alcançando a maioria dos votos, ou também a unanimidade se encontre uma comprovação objectiva da própria validez; e pelo contrário, em caso de minoria de votos a comprovação democrática negaria a validez da mesma. Que razões da luta de classe, da insurgência individual e colectiva contra o poder subjugante fazem parte de uma simples questão numérica ?O facto de que se conteste tal pergunta afirmando que as propostas são submetidas a votação não para avaliar o conteúdo em si mas para avaliar perante tudo, a aderência aos próprios princípios da federação, e em segundo lugar para avaliar se reflectem as concepções de todos os aderentes à organização, não faz mais do que piorar as coisas. De um lado porque quem projecta as propostas impõe limites na análise, na crítica, na própria operacionalidade, já que estas são elaboras em função da aprovação dos outros; do outro lado porque, uma vez mais, estão excluídos dos propósitos todos aqueles que, por muitos motivos, não tem capacidade de análise nem de síntese para propor e expor de forma sistematizada. Enfim, o último obstáculo, ou seja uma das considerações conclusivas que se alegam para sustentar a sua validez. O instituto da democracia directa afirma ter valor não no facto da unanimidade que se procura na assembleia, mas por ser indicativo das distintas tensões que animam o anarquismo federado; até porque aqueles que não compartilham as decisões tomadas pela maioria, nem por isso estão excluídos – como contrariamente ocorre, a miúdo, no seio dos partidos autoritários – da federação. Continuam a fazer parte dela, operando nas suas eleições, desde que estas estejam dentro do marco dos princípios e das condições determinadas por estatuto. Desde a minha opinião, essa é a questão mais séria, tão séria que em si vislumbra a inutilidade e quiçá o prejudicial da organização federal de síntese e do instituto democrático: em pró de quê, a este ponto, gastar tempo e energias enormes para o mantimento de uma máquina formalizada em momentos não indispensáveis?
9. A INDETERMINAÇÃO COMO PERSPECTIVA
A nossa mentalidade ocidental, com as suas devidas excepções, tende a conformar o universo à medida da mente humana ou, o que é o mesmo, a conformar a mente humana à medida do universo e dos acontecimentos. Ao fim e ao cabo, conhecer não significa outra coisa que entender o desenlace causal dos eventos. Organizamos assim a nossa experiência do universo que nos rodeia, segundo uma sequência ininterrupta de causas e efeitos que reduzimos a um perfeito mecanismo mensurável, e correspondente a presumíveis leis fundamentais. O mundo assim concebido garante-nos, pelo menos, uma certa segurança existencial: conhecimento é domínio, enquanto previsão e por conseguinte exclusão de incertezas.Esta mesma mentalidade operou no âmbito daquela parte do movimento anarquista que deu vida à organização federal de síntese. Situada a revolução social como certeza consecutiva do capitalismo, trata-se de determinar os êxitos com base em duas pressuposições:- convencer os explorados da beleza da anarquia, subtraindo o mais possível as forças dos movimentos adversos;- engrossar as filas do anarquismo com o fim de ter uma força determinante no momento insurreccional.A contradição fundamental do capitalismo – socialização do processo produtivo, privatização do fruto do trabalho – deve ser acompanhada pela tomada de consciência proletária que abrange o processo revolucionário. Um mecanismo perfeito que reflecte a lei causa-efeito. O imprevisível, o incerto, desaparecem da história. No fundo, vislumbra-se no anarquismo assim concebido, o carácter determinista, próprio de uma época e típico de uma mentalidade “científica”.Mas se abrimos a interpretação do universo e então da própria existência humana em perspectivas distintas, damo-nos conta que as nossas certezas são só presumíveis. Na realidade nem os acontecimentos físicos, nem o percurso existencial dos indivíduos podem reduzir-se a mecanismos e formalismos deterministicamente concebidos. A indeterminação, a informalidade, a espontaneidade, são momentos certamente não marginais na vida do universo, e eu não tenho nenhuma intenção de dar força a esta perspectiva sustentando-a com algumas correntes científicas contemporâneas. Simplesmente afirmo que tais correntes redescobrem o universo como um leque de possibilidades abertas, até cada acontecimento e até às interligações recíprocas. Desta perspectiva é possível compreender que entre a exploração e a rebelião não há uma relação de causa e efeito. A própria insurgência dos indivíduos muitas vezes é uma tensão existencial que contrasta vínculos e obstáculos existentes, que se podem simplesmente entrever. Não só, a aquisição de consciência da exploração e dos mecanismos de diversa natureza através dos quais esta se manifesta, não determinam necessariamente a rebelião, como também, mesmo que a determinassem, não era provável que esta se manifestasse segundo os nossos tópicos e expectativas. Apesar das nossas presumíveis certezas, fica a indeterminação e a informalidade do vivido. Trata-se simplesmente de tê-lo em conta para, a partir dessas certezas, voltarmos a pensar a organização e os métodos de luta, como também as perspectivas que dessa maneira se abrem.
10. O FIM DE TODO O VANGUARDISMO
Os anarquistas não entenderam o mundo melhor do que os outros (e vice-versa). O anarquismo, para além de ser uma doutrina política, é sobretudo uma concepção do mundo e portanto uma ética, um confronto específico, concreto, do comportamento do indivíduo. Esta ética deveria informar cada anarquista que ao torná-la própria, adequa-a à sua sensibilidade particular, tensão e característica pessoal única. O anarquismo assim entendido não coloca razões ou justificações em lugar algum fora de si mesmo, seja mesmo a anarquia, na sua acepção de sociedade anárquica a alcançar-construir. A insurgência do indivíduo contra tudo o que o oprime justifica-se por si.Contudo, excluído cada historicismo, determinismo, finalismo, mecanicismo, cientismo e assim seguindo, está claro que a própria rebelião, mesmo que encontre em si cada justificação, não é suficiente para destruir definitivamente as formas históricas de poder centralizado, subjugante dos indivíduos e das classes subalternas. Daqui a necessidade de abrir um leque de possibilidades reais, materiais e espirituais por uma libertação definitiva.Contrariamente a outras posições políticas, a tensão do anarquismo até à destruição total dos poderes constituídos, não se confia exclusivamente na objectividade do sistema e dos mecanismos que a sustêm, mas também na autodeterminação individual. Na realidade, o processo revolucionário, na sua acepção de mutação radical de um estado de coisas a outro, mesmo que não esteja baseado no contemporâneo movimento de reconquista individual do próprio poder autodeterminado, conduz de modo rectilíneo até novas formas de opressão e de poder centralizado. Ninguém pode negar isso, mesmo que cada um responsabilize – segundo a própria ideologia – os tradicionalismos ou os revisionismos, ou também aquelas presumíveis “objectividades” que acabam por ser ao mesmo tempo promotoras da revolução social e suas enterradoras.Abrir um leque de possibilidades concretas até à destruição do poder, significa vincular a tensão da insurgência individual a todos aqueles momentos que no próprio social, para além do operar anárquico, tomam expressões de autodeterminação ou de ruptura com a ordem imposta. Tal vínculo exclui cada instrumentalização, cada vanguardismo. Os anarquistas não têm nada que ensinar no plano da revolta contra a ordem estabelecida. Por isso esse vínculo que se dá entre a tensão anárquica e as forças sociais rebeldes, materializa-se como estímulo ao radicalismo da luta e da rebelião, acentuando cada elemento da autodeterminação e projectando outros.Se desaparece a certeza da revolução social, a sua possibilidade não permanece excluída. No entanto, uma vez desaparecida a certeza, dissolvem-se, porque estão estreitamente ligadas a ela, todas a serie de considerações organizativas e metodológicas da bagagem das federações anarquistas. Carece de sentido a competição com os adversários e portanto a propaganda com o fim de ganhar para o anarquismo mais proletários do que fazem outras forças. Já não faz sentido organizar-se hoje em função da construção do futuro livre; seria hipotecar o amanhã às exigências de hoje. Já não faz sentido que os anarquistas se proponham tarefas históricas, assumam funções, em pró da revolução social libertadora. Os anarquistas, igual a outro movimento, são só um dos infinitos centros que fazem parte do universo.
11.INSURREICIONALISMO
Mesmo como possibilidade única, o processo revolucionário têm que se catalisar numa ruptura com o existente. Tal ruptura é a insurreição generalizada que destrói o poder constituído nos seus elementos substanciais: instituições várias, socialização do grandes meios de produção, etc..Na nossa perspectiva, o momento insurreccional chega a ser central, e isso devido a diversos motivos:- pela sua essência destrutora, e não construtora;- pela ausência total, no seu ápice, de motivos mediadores ou de tendências moderadoras;- pela emancipação do indivíduo das alienações materiais, morais, psicológicas impostas pelo sistema de servidão;- pela impossibilidade da sua instrumentalização, no imediato, por parte das forças do poder.
É portanto no imediato do evento insurreccional, que é possível para os anarquistas, destruir e estimular a destruição de todos os âmbitos do poder centralizado. Qualquer avaliação acerca da continuidade, entre o social velho e aquele por construir, demonstrou-se catastrófica pela própria revolução social. No entanto o momento regozijado da destruição é muito breve e em tal espaço de tempo é indispensável golpear. Uma vez acabado o momento, as forças de poder que escaparam da destruição, terão milhares de ocasiões e motivos para se proporem como indispensáveis na construção do novo, fazendo persistir o cansaço e as necessidades materiais dos insurgentes. Não será contudo na competição directa com tais forças que o anarquismo terá possibilidade de radicar-se nos indivíduos, mas sim no facto de haver conseguido destruir as condições materiais, institucionalizadas e formalizadas do poder antecedente – exército, tribunais, municípios, parlamentos, arquivos, armamento e homens – e no prosseguimento por força da luta radical contra tudo o que enquanto velho ou novo quer subjugar os indivíduos.Segundo um raciocínio lógico, o anarquismo enquanto negação do poder centralizado, é um momento essencialmente destrutivo, não também construtivo.No evento insurreccional generalizado o anarquismo concretiza-se a grande escala na indivisibilidade da sua ética e doutrina. Tal evento é o que acaba por ser assinalado em relação aos outros. Ora, a insurreição generalizada é uma possibilidade não directamente ligada à pura actividade propagandistica, no entanto, não há que excluir um eventual benefício que a propaganda anarquista traz ao social subalternizado. A possibilidade mais concreta reside nas exigências dos explorados, nas necessidades que o sistema de exploração e de opressão deixa insatisfeitas nas amplas massas de proletários. Há sempre a possibilidade que de um protesto, mesmo iniciado por motivos aparentemente fúteis ou de ordem reformista, expluda o momento insurreccional; mais ainda se é utilizada uma metodologia de luta que seja prelúdio da autodeterminação: autogestão da própria luta, ataque sem exclusão de golpes à parte contrária, recusa de mediações e de mediadores, determinação no conseguir da tentativa.O insurreccionalismo anárquico é, mais precisamente, a intervenção nas lutas emergentes do social, segundo a metodologia que defende a insurreição generalizada e que se materializa no imediato como praxis da acção directa, da autogestão das próprias lutas, sem pôr vínculos às tensões específicas e sensibilidades dos indivíduos e grupos, estimulando assim a multiplicidade de formas de intervenção. O que caracteriza o insurreccionalismo anárquico é o método posto em marcha, não o conteúdo de cada luta.O método justifica-se por si, pelo qual exclui cada valorização de tipo quantitativo: não se actua em função do aumento do numero de anarquistas, mas sim dos estímulos que o método chega a difundir no social ou nas lutas específicas. Que importância pode ter, definir-se anarquistas ou não, no momento em que a prática da acção directa, do confronto com o poder constituído, da negação da subjugação avança?
12. PROJECTUALIDADE INSURREICIONALISTA
Na minha opinião, os anarquistas distinguem-se dos outros revolucionários e dos restantes proletários, não pelo radicalismo da sua intervenção, não porque são mais “humanistas” e sensíveis do que os outros, não porque defendem uma sociedade idílica ou outros centralismos e amenidades parecidas. Distinguem-se mais simplesmente pelo método com o qual se relacionam com as coisas, as pessoas, as situações. Mas o método não chega a manifestar todas as possibilidades se não se pretende alcançar, em consequência, pelo menos os mais importantes aspectos do nosso actuar. O método produz o máximo da sua potencialidade se é acompanhado e sustentado por um planeamento, por outras palavras, se se actua em perspectiva. É no actuar planeado que cada acção, cada intervenção, encadeadas umas nas outras sob uma perspectiva de fundo – no nosso caso, a possibilidade da insurreição generalizada – adquirem um sentido e uma razão global, resultando assim mais contundentes no confronto contra o poder constituído.
13. A ORGANIZAÇÃO INSURRECCIONAL INFORMAL
Deveria resultar evidente nesta altura, que a organização, desde a nossa perspectiva, não é um fim senão um simples meio, um instrumento que, sustentado por uma metodologia precisa permita aos indivíduos reforçarem-se sem acabarem súbditos da própria organização, que comece da autodeterminação e reproduza autodeterminação.A organização expressa as relações entre os homens, entre estes e as coisas e os acontecimentos.Tais relações podem fixar-se em momentos estabelecidos, que constituem verdadeiras e próprias instituições formais dentro das quais se estruturam. Esse é o caso da organização formal que se concretiza na estrutura burocrático-vertical, ou melhor – como já vimos no caso das organizações anarquistas de síntese – na estrutura federal que, se bem privada de instintos burocrático-hierárquicos, se move na base de momentos formalizados (comissões, assembleia deliberativa, votos, etc..). Num caso como no outro a vitalidade e a riqueza obtidas pelo contraste, a diversidade, a especificidade dos sujeitos são negadas ou acabam esterilizadas por via das sínteses necessárias e do mesmo formalismo imposto pela organização.Mas a organização também é possível de uma forma totalmente diferente, sem forçar – mas sim dando-lhes a justa funcionalidade - com mecanismos e institutos formais a especificidade dos indivíduos e a articulada variedade de formas de existência. Essa é a maneira de se relacionar com os homens e com as coisas na própria informalidade, por conseguinte no próprio fluir das relações, tensões, particularidades, exigências, afectos, necessidades de luta, de sobrevivência de cada um e dos outros.A própria vida flui graças à informalidade, é dizer, por meio daqueles momentos que o poder constituído não consegue asfixiar, formalizando-os no interior da sua própria ordem. E é nessa informalidade que emergem os desafios de actos de rebelião que discutem a ordem do Estado-capital. Da indeterminação e multiplicidade do universo, do ponto de vista da sua informalidade, não surgem revolucionários que programam o momento construtivo da revolução social, enclausurando-a dentro do limites e percursos da sua própria mente; emergem sim indivíduos insurgentes contra as presentes condições de poder e ao mesmo tempo contra cada hipótese e tentativa de construir outras novas, deixando assim ao futuro indeterminado cada momento construtivo.Esta é a organização anárquica informal, que é prelúdio de uma organização – igualmente informal – das lutas que se iniciam ou daquelas em que participamos.A união dos Anarquistas Sardos (U.A.S.) é um lugar em que a informalidade das relações é cultivada mediante a prática insurreccionalista. Não é um lugar em que se cultivam ideologias ou momentos de assembleia deliberativa. É um lugar onde se socializam análises, projectos de luta, momentos de luta; cada um dá e colhe desse lugar, dá só sobre a base das afinidades e interesses encontrados nos outros – que podem ser todos ou somente uma parte dos que constituem a U.A.S. – o que mais lhe pertence. Quem considere oportuno faz também propaganda simples, mas o que caracteriza a U.A.S. é que não actua para fazer proselitismos, mas sim para estender ao social – particularmente nas lutas específicas – o método insurreccional na informalidade das relações.Com esse espírito estivemos presentes em algumas das lutas e situações mais significativas da última década; por exemplo contra a primeira operação político-colonial denominada “Força Paris”. Com o mesmo espírito nos introduzimos na luta contra os parques tecnológicos ou naturistas que sejam, porque por meio de uns e dos outros, aparentemente sem ligação, o Estado-capital, que já se reestruturou passando do industrialismo ao pós-industrialismo, inicia-se para dominar a nossa terra reduzindo-a a centros de investigação e a uma imagem da realidade virtual que reproduz lucro e sistema.
14. A DESORDEM DA REVOLTA
Então informalidade nas relações, informalidade na participação nas lutas, informalidade, na sua acepção de indeterminação, na acção insurreccionalista e no próprio momento insurreccional. Também o actuar planeado não renega à informalidade, é sim produto dela e nela se resolve. A própria organização é totalmente outra coisa que uma estrutura: é sim um lugar de socialização e de sintonia das lutas e das tensões, não de unificação das mesmas. Da mesma maneira, as lutas emergentes do social, os actos de revolta individual ou colectiva, longe de serem instrumentalizados por fins de qualquer revolução que descansa nas mentes dos organizadores sociais, têm relevância própria já que introduzem tensões que favorecem a insurreição generalizada.Como já vimos, a perspectiva anárquica insurreccional e informal coloca no primeiro plano a insurreição generalizada, não pretende, como nega decididamente, ter papeis construtivos. O momento predominante da perspectiva é a autodeterminação pela autodeterminação, então essencialmente destrutivo-negativo.Mas não acredito que exista alguma possibilidade, pelo indivíduo singular, mesmo sendo anarquista insurreccionalista, de destruir o poder que o oprime. Esta possibilidade abre-se só mediante sintonia com quanto emerge do destrutivo e negativo do próprio social, não para ser instrumentalizado, mas para difundir e estender as contradições, a desordem, a revolta. Quanto mais esses actos se manifestem descompostos e desordenados, sem nenhum centro, fazendo referência a milhares de centros, cada um autodeterminado, então mais irrecuperáveis e irredutíveis serão a uma formalização por parte dos opositores da desordem social.O poder na realidade, ainda na aparente desordem que cria, só pode afirmar-se e perpetuar-se numa qualquer forma de ordem. Os revolucionários, também os anarquistas que querem cobrir o papel de construir o futuro, e não só de destruir o presente, recompuseram inevitavelmente a ordem social, afogando assim a desordem da insurreição generalizada, entregando de tal maneira o corpo social inteiro nas mãos dos novos poderes que, naquela ordem recomposta encontraram a ocasião onde lançar novas formas de exploração e de opressão.É por isso que nós reivindicamos e actuamos em função da revolta descomposta, difundida por todos os lados, sem cabeça nem cauda: melhor dito, somos pela desordem social permanente, condição indispensável para criar a impossibilidade de que se manifeste o poder centralizado.
15. A ACTUALIDADE DO ANARQUISMO INSURRECCIONALISTA
Acredito que a organização anarquista de síntese, apesar de tudo, teve grande importância no passado. A sociedade industrial, essencialmente baseada na concentração produtiva, muitas vezes até à verticalização do ciclo inteiro de produção de mercadorias que determinava a presença em espaços limitados de milhares de trabalhadores, tinha ainda como consequência a constituição de uma maneira de entender em comum, e evidenciava os próprios explorados como produtores da riqueza social que, pelo contrário, o capitalismo privatiza em benefício exclusivo da burguesia. Os mesmos bens produzidos eram de utilidade comum e seriam também no hipotético futuro libertado. A revolução social, actuando a expropriação dos grandes meios de produção, teria levado não só à socialização da produção, como também dos bens produzidos, de utilidade social enquanto ligados à satisfação das necessidades reais.O que representou o grosso limite da organização anarquista de síntese foi o ter pretendido a exclusividade, de ter sempre demonizado as tendências anárquicas minoritárias que, no plano da organização e da metodologia, praticam intervenções distintas que esquivam as contradições e os limites do federalismo, da democracia directa e do anarquismo de síntese.Não é de negar que as organizações de síntese são, à sua maneira, insurreccionalistas. Com efeito, o anarquismo, negando qualquer forma de democracia representativa, necessariamente tem de colocar no processo revolucionário e na insurreição generalizada, como a possa entender, o momento de ruptura com o presente histórico. Só que a insurreição generalizada está metida num futuro, as suas condições objectivas e subjectivas é necessário construi-las passo a passo, contanto com a força numérica da organização anarco-sindicalista, as condições materiais do momento e qualquer outro acidente imaginado por mentes e estruturas mentais encerradas no círculo da continuidade histórica e de outras valorizações.No presente, a reestruturação do capitalismo, devido à utilização sistemática de novas tecnologias em cada âmbito do social, da produção de mercadorias ao seu consumo, da comunicação ao controlo difundido no território do civil ao militar, modificou substancialmente o mundo. A realidade está composta por momentos, estímulos, tensões verdadeiras que são afogadas e misturadas nos momentos virtuais. A realidade virtual das necessidades induzidas, da produção de mercadorias virtuais e de consumo virtual já se impôs. A fabrica tradicional desapareceu ou está para desaparecer definitivamente, para dar lugar a uma quantidade de pequenos e pequeníssimos centros produtivos altamente informatizados, com possibilidades de conversões produtivas impensáveis no seu tempo. Os interesses do proletariado, quebrados em milhares de pedaços, perdem-se nas teias da realidade virtual. O consenso generalizado encontra na democracia o mecanismo que o reproduz: chegamos às consultas populares teledirigidas para estabelecer qual mercadoria virtual satisfaz melhor as necessidades virtuais dos consumidores virtualizados! A mesma democracia já é uma das realidades virtuais, como todas as outras. Eu encontro ainda mais carentes de sentido as considerações pontuais sustentadas por algumas publicações anarquistas durante cada eleição política, em que se afirma que a alta percentagem das abstenções, dos votos nulos ou anulados, confirmara a perda de confiança na política e na democracia representativa. Afirmações sem sentido algum!A verdade pelo contrário, é que a sobrevivência do Estado-capital tecnológico, pulverizado no território, só é possível através do consenso generalizado. Enquanto a fábrica tradicional se podia defender de uma qualquer força militar, por estar localizada num lugar bem preciso, a informatização da produção determinou a divisão numa quantidade de pequenos centros produtivos em cada canto do planeta; a informática sozinha permite que seja possível a produção desde as próprias habitações, basta um computador pessoal. Agora é evidente que um sistema deste tipo nunca poderá ser defendido senão na transformação em polícias do sistema das mesmas pessoas que vivem no território: nenhum dispositivo repressivo sería capaz de garantir a segurança de tal sistema pulverizado. Que importância pode ter, pois, o facto das urnas serem abandonadas se, contemporaneamente não se ataca o Estado-capital pós-industrial?No entanto não se pode afirmar que o consenso ao actual estado de coisas seja total. Os excluídos pelo sistema, os marginalizados, os insubordinados são o fruto natural de uma sociedade dividida em privilegiados por um lado e subalternos por outro. A rebelião é um facto também natural, que certamente não foi descoberto pelos anarquistas nem pelos outros revolucionários. Mas essa rebelião não é imediatamente reconduzida aos velhos programas revolucionários que olham a destruição do presente para reconstruir contemporaneamente um futuro libertado. A rebelião actual é caótica, desordenada, justifica-se por si mesma. Para os rebeldes sociais, a insurgência é uma recusa total das ideologias de qualquer tipo, por serem consideradas, em boa parte com razão, os pilares que sustentam o sistema que os oprime. A sua rebelião é aquela que estala de maneira destrutiva, contra tudo e contra todos. Não é compreensível em nenhum esquema preconcebido. A origem da rebelião pode ser uma reivindicação específica, a contestação de um acto considerado ofensivo, em resumo, qualquer momento particular que por inúmeros motivos assume uma situação específica em função detonante. Não se trata portanto de questões gerais ou generalizadas, mas sim de motivações específicas. Esse facto é de máxima importância na consistência do nosso discurso. Com efeito, cada tentativa de indução do facto específico que origina a luta, em condições e considerações de natureza político-social, imediatamente se realiza como instrumentalização de fins alheios à própria luta; a realidade do facto passa a ser essa instrumentalização. Mas são sempre essas lutas que abrem a possibilidade de uma intervenção específica que se encontra no método insurreccionalista, isto é, na acção directa e na autogestão da própria luta, nos momentos essenciais de ruptura com a praxis da mediação e da aceitação passiva dos mecanismos próprios de delegação. Providos desse método, e da metodologia necessária para oferecer à luta perspectivas de ligação com outras lutas e de entendimento mais amplo da especificidade que reflecte, ficam abertas largas possibilidades de um resultado insurreccional. Nesta perspectiva, o anarquismo não é uma doutrina, senão uma maneira concreta de enfrentar o existente, de lutar contra este pela sua definitiva e total destruição.
16. PÓSINDUSTRIALISMO, ESTADO, LUTAS DE LIBERTAÇÃO NACIONAL
O estado moderno surgiu das exigências das burguesias locais, em raivosa luta entre elas, durante o período de acumulação originária do capital, do seu enraizamento e expansão em territórios circunscritos. Protecção e garantia do capital da competição estrangeira, dos ataques das massas proletarizadas e da resistência cultural e material dos povos e etnias históricas, hostis à penetração e ao domínio Estatal-capitalista. Etnocídio e genocídio acompanharam o Estado moderno desde as suas origens até ao surgir do terceiro milénio. Não é por acaso que o Estado se mostrou historicamente não só inimigo das massas proletárias, como também das forças sociais e políticas dos povos oprimidos. A aplicação das novas tecnologias aos processos produtivos de mercadorias (e na sociedade tecnológica qualquer coisa, material ou espiritual, real ou fictícia, é mercadoria), juntamente com a sabia utilização dos media na criação de realidades virtuais e na manipulação das consciências, modificaram radicalmente o quotidiano. A pulverização da indústria no território requer o máximo consenso por parte de quem habita esse mesmo território: um Estado não aceitado, a miúdo directamente confrontado e objecto de ataques contínuos por parte das populações, é um poder político incapaz de garantir a estabilidade e os interesses do capitalismo pós-industrial. Por isso, em muitas situações – velha Europa, América Latina, ex-império bolchevique, Médio Oriente e Extremo Oriente – assistimos não só ao nascimento de novos Estados, mas também à transformação de Estados ditatoriais em regimes democráticos, e noutros tradicionalmente centralistas (como o italiano, o espanhol, o francês, etc.) em regimes democráticos de ampla descentralização administrativa, com reais tendências até novas formas de poder estatal federalista.Ao mesmo tempo a mundialização do mercado permite e induz o desmantelamento da indústria tradicional que se encontra em áreas ainda não pacificadas. O objectivo é converter estas últimas, homologando-as aos mesmos processos produtivos pós-industriais, em gigantescas realidades ecológico-turísticas fictícias e, como tal, objecto das massas aculturadas, que consumando esse virtualismo, levam a cabo o processo de desculturalização que o Estado e o capital industrial não tinham chegado a fazer. O desmantelamento industrial nas Astúrias e em muitos lugares do País Vasco, o encerramento das minas da Cerdenha, etc., até à contemporânea imposição dos parque naturais e áreas protegidas, são melhor compreendidos se forem analisados por esta perspectiva. Ao Estado-capital actual interessa a ganância, não as maluquices ecologistas, que sabiamente sabe utilizar para fazer uma verdadeira e própria indústria capaz de transformar uma realidade fictícia numa ganância real.Aclaram-se assim também aquelas posições interclassistas, próprias da burguesia compradora, e do capital local das áreas geo-humanas oprimidas culturalmente. Com efeito, não se pode jogar mais ao enredo da libertação nacional no imediato e adiar a questão nacional para amanhã. A independência estatal, no pós-industrialismo, significa fazer imediatamente os interesses do Estado-capital e das multinacionais, e não se necessitas muito para entender que a independência real, a autodeterminação dos indivíduos e dos povos não pode existir se está debaixo do jugo material do capital autóctone, varias vezes confundido com o estrangeiro. Hoje, mais do que nunca, a luta pela autodeterminação tem que ser ao mesmo tempo a luta contra o capital e contra o Estado, mesmo e sobretudo contra o local, já que se vislumbra nas administrações periféricas e nas regionais, com todos os aspectos de autoctonia. Luta que tem que manifestar-se com novas formas de organização, adequadas ao ataque real à sociedade tecnológica: não em estruturas político-militares e interclassistas, porque continuariam a produzir o martírio dos indivíduos e a racionalização do Estado-capital. Não mais exércitos de libertação nacional que com o pretexto da autodeterminação futura, na realidade constróem o Estado local mais adequado à sociedade do domínio pós-industrial, e por isso, liderando a nova opressão e homologação à mercadoria. Não mais a luta contra um único Estado, historicamente opressor das situações geo-humanas específicas, mas sim contra todos os Estados que representam um interesse único e um inimigo único que há que golpear. Hoje, mais do que ontem, os exércitos revolucionários não têm nenhuma razão de ser: o inimigo está difundido em todo o território, para golpeá-lo bastam pequenos instrumentos, um pouco de vontade e muita criatividade. Mas é evidente que golpear o inimigo num só ponto, num só território, não lhe constitui uma ameaça de todo. Para colocá-lo seriamente em discussão, há que toma-lo na sua real extensão e ramificação, que vai para além das marcas nacionais e culturais dos povos e dos Estados, dando-lhe o assalto de maneira sintonizada, cada qual segundo os seus próprios instrumentos, métodos e sensibilidades.
17. PROPOSTA DE UMA INTERNACIONAL ANTI-AUTORITÁRIA INSURRECCIONALISTA: A SOLIDARIEDADE REVOLUCIONÁRIA COMO CUMPLICIDADE NA LUTA.
A perspectiva internacional permite-nos localizar a presença das multinacionais na nossa região, e ao mesmo tempo, identificar o capital local noutras regiões em coligações de interesses que são as multinacionais.De tal modo descobrimos que o pecorino Sardo (queijo de leite de ovelha), por exemplo, pode desembarcar no Canadá e nos E.U., porque se traduz numa mercadoria da multinacional Barilla. Por sua vez esta multinacional é constituída por capitais de outras multinacionais que operam noutros lugares do planeta. E descobrimos ainda, que também os aforros dos mais míseros proletários Sardos, entregues nas caixas do Banco da Sardenha, misturado com capitais de outros bancos e multinacionais, acabam por ser uma das realidades opressoras de povos, etnias e proletários em cada canto do planeta. Com estas constatações estamos em posição de entender quanto inócuas e miseráveis são as formas de “protesto e solidariedade” que muitas vezes se expressam em desfiles igualmente inócuos nas ruas de algumas cidades; “em solidariedade” com as forças revolucionárias e os povos combatentes. Gritar contra as multinacionais e o Estado que no México, por exemplo, continuam tranquilamente a exterminar os povos de Chiapas, chega a ser uma forma folclórica que alimenta o regime democrático da sociedade pós-industrial, porque este se fortalece pela estéril forma de divergência apresentada apresentada em praças e nos territórios que realmente domina por outros meios. Para se sair dos folclóricos e inúteis protestos em desfiles ordeiros, é necessário encontrar na nossa terra a materialização do inimigo real – em termos de instituições, sedes e homens – que opera em Chiapas, mas mais tranquilamente em nossa casa. O Estado-capital assim localizado pode e tem que ser atacado em Chiapas e noutros lugares de forma sintonizada. Paralisar o lucro do Estado-capital, é a verdadeira solidariedade revolucionária que, dessa maneira, não é mais dávida de sentimentalismos e paternalismos, mas sim cumplicidade na luta pela autodeterminação dos indivíduos e dos povos.É nessa óptica que, juntamente com companheiros doutros lugares, lançamos a proposta de uma Internacional Antiautoritária Insurreccionalista (I.A.I.) desde 1992. Proposta que não passou inobservada pelos guardiões e diligentes do Estado-capital – certamente não dotados para entender as novas formas radicais da rebelião social e da insurgência fora das condutas das organizações políticas tradicionais (partido armado, organização vertical, etc..).A Internacional Antiautoritária Insurreccionalista não é uma estrutura, não é uma máquina, nem sequer um mecanismo que se reproduz a si mesmo. Nem tampouco é uma entidade formalizada, mas simplesmente um momento, um espaço, uma possibilidade de socialização das tensões e dos projectos de indivíduos e grupos que desde já se estão a confrontar realmente contra a sociedade do Estado-capital informatizado, segundo a metodologia insurreccionalista, a informalidade nas relações e o repúdio de qualquer ideologia, que na abstracção e no purismo religioso desviam energias do confronto contra o inimigo de sempre, mas desta vez dissimulado com a informatização. Também neste caso, a perspectiva de libertação nacional e de solidariedade material, o anarquismo insurreccionalista e a informalidade organizativa, têm algo a dizer.
Guasilha, 27 de Julho de 1999
Constantino Cavalleri
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