sexta-feira, junho 23, 2006

A dependência do petróleo e o risco económico

Agora que está aposentado, o ex-presidente do banco central dos EUA ousa dizer, à sua maneira, algumas verdades acerca da dependência petrolífera e da vulnerabilidade aos riscos que ameaçam o mundo. O texto abaixo é parte de um testemunho — de três horas — prestado em 7 de Junho perante a Comissão de Relações Externas do Senado americano. Os sublinhados a negro são de resistir.info.
Declaração de Alan Greenspan Presidente da Greenspan Associates LLC Perante o Committee on Foreign Relations United States Senate 7 de Junho de 2006Sr. Presidente, Senador Biden e membros do Comité: Esta manhã tentarei pormenorizar como o equilíbrio da oferta e procura mundial tornou-se tão precário que mesmo pequenos actos de sabotagem ou insurreições locais têm um impacto significativo sobre os preços do petróleo. Os negócios americanos, até à data, conseguiram em grande medida alcançar melhorias de produtividade que contiveram os custos da energia. As famílias americanas, no entanto, estão a lutar com os preços crescentes da gasolina.Mesmo antes dos devastadores furacões do último verão, os mercados mundiais de petróleo estiveram sujeitos a um grau de tensão não experimentado durante uma geração. Os preços do petróleo têm estado persistentemente a subir desde 2002 quando aumentos no consumo global de petróleo absorveram progressivamente o amortecedor (buffer) de vários milhões de barris por dia de excesso de capacidade que mediavam a produção e a procura. Hoje a produção mundial de petróleo sustem-se em cerca de 85 milhões de barris por dia, e subsiste pouco excesso de capacidade. Quanto de excesso de capacidade, e que qualidade de petróleo, é um assunto de debate. Mas não importa qual a resposta precisa, o amortecedor entre a oferta e a procura é demasiado pequeno para absorver encerramentos temporários ou mesmo uma pequena parte da produção mundial. Além disso, ameaças crescentes de violência em campos petrolíferos, oleodutos, instalações de armazenagem e refinarias, especialmente no Médio Oriente, aumentaram a procura privada para manter stocks de petróleo à escala mundial. Os utilizadores de petróleo consideram que precisam estar preparados para a possibilidade de que em algum ponto um assalto repentino possa ter êxito, com um impacto devastador na oferta.
Durante a maior parte da história do petróleo, os seus produtores e consumidores determinaram o seu preço. Somente aqueles que podiam armazenar fisicamente grandes quantidades de petróleo tinham a capacidade para comerciar. Mas avanços importantes nas finanças abriram o mercado para um número de participantes muito maior. Houve uma grande irrupção do comércio de venda livre (over-the-counter), de petróleo a termo (futures) e outras mercadorias derivadas (commodity derivatives). Assim, quando no último par de ano ficou aparente que a indústria mundial de petróleo não estava a investir o suficiente para expandir a capacidade de produção de petróleo bruto de forma suficientemente rápida para atender à procura em ascensão, um número crescente de fundos hedge e outros investidores institucionais começaram a licitar (bidding) petróleo. Eles acumularam substanciais posições longas líquidas (net long positions) nos futuros de petróleo bruto, em grande parte no mercado de venda livre. Estes contratos de futuros net long, com efeito, constituíram uma aposta em que os preços do petróleo ascenderiam. Os vendedores daqueles contratos a investidores, quando todas as acções compensatórias são consideradas, têm a necessidade de apresentar possuidores de milhares de milhões de barris de stocks privados de petróleo mantidos por todo o mundo — nomeadamente, os produtores e consumidores.Mesmo pensando que os stocks de petróleo aumentaram significativamente nos últimos anos, persistentes movimentos de preços em subida tornaram aparente que o aumento das reivindicações (claims) sobre os stocks mundiais de petróleo provavelmente excedeu estes stocks. A extensão do surto de participação de instituições financeiras em reivindicações sobre barris reais de petróleo é reflectida na quase triplicação do valor teórico (notional) de commodity derivatives (excluindo metais preciosos) durante os quatro trimestres de 2005 relatados pelos bancos comerciais americanos. A maior parte daqueles contratos são de petróleo. A acumulação de net long positions em petróleo no New York Mercantile Exchange por negociantes não-comerciais, o que equivale dizer por investidores, apresentou um padrão semelhante.Os novos participantes, investidores e especuladores, no mercado mundial de petróleo de dois milhões de milhões (trillion) de dólares por ano estão a apressar o processo de ajustamento que se tornou muito urgente com a virtual eliminação do amortecedor (buffer) da oferta mundial. Com a procura da comunidade de investimentos, os preços do petróleo moveram-se mais cedo do que o teriam feito de outra forma. Além disso, tem havido um grande aumento nos stocks de petróleo. Em resposta a preços mais elevados, os produtores aumentaram a produção dramaticamente e algum consumo foi desescalado. Apesar de a capacidade produtiva de petróleo bruto ser ainda inadequada, ela também aumentou significativamente ao longo dos últimos dois anos em resposta ao preço.Hipoteticamente, se ainda tivéssemos os 10 milhões de barris por dia da capacidade excedentária que existia há duas décadas atrás, nem cortes na procura nem encerramentos temporários de produção por violência, furacões ou manutenções não programadas estariam a ter, se tivessem, impacto sobre o preço. Contudo, retornar a tal nível de capacidade excedentária parece fora do alcance no futuro previsível. Isto não é porque haja qualquer escassez de petróleo no terreno. O problema é que, aparte a Saudi-Aramco, poucas, se é que alguma, das companhias nacionais de petróleo que possuem a maior parte das reservas provadas do mundo estão a investir bastante do seu fluxo de caixa para converter as reservas em capacidade produtiva de petróleo bruto. Apenas a Saudi-Aramco parece suficientemente preocupada, pelo menos publicamente, em que os altos preços venham a reduzir a procura por petróleo a longo prazo, o que diminuiria significativamente o valor das reservas de petróleo da Arábia Saudita — ou, na verdade, das de qualquer país.Embora os gastos em capacidade produtiva estejam a ascender, a proporção significativa dos rendimentos do petróleo mantida como activos financeiros sugere que muitos governos percebem que os benefícios de investir em capacidade adicional para atender a procura mundial ascendente de petróleo bruto são limitados. Além disso, grande parte do rendimento petrolífero foi divergido para atender as necessidades de alta prioridade de populações em crescimento rápido. A menos que tais políticas, instituições políticas e atitudes mudem, é difícil antever uma taxa de reinvestimento da parte destas economias que seja adequada para atender a crescente procura mundial de petróleo. Alguns membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) anunciaram recentemente planos de expansão. Mas é difícil julgar quão firmes são esses planos. Eles e outros países recusaram ofertas de companhias internacionais de petróleo para ajudar a explorar (tap) suas reservas. Oportunidades para expandir alhures a produção de petróleo são limitadas a uma poucas regiões, nomeadamente a antiga União Soviética.
Além dos temidos défices (shortfalls) na capacidade de petróleo bruto, a adequação da capacidade mundial de refinação tornou-se também inquietante. Ao longo da última década, a produção de petróleo bruto ascendeu mais rapidamente do que a capacidade de refinação. Uma continuação desta tendência em breve tornaria a falta de capacidade refinadora o constrangimento forçado para o crescimento da utilização de petróleo. Isto pode estar já a acontecer em certos graus de petróleo, dada o crescente descompasso entre o conteúdo mais pesado e mais ácido da produção mundial de petróleo bruto e a procura mundial ascendente por produtos mais leves e mais suaves.Há portanto uma necessidade especial de acrescentar capacidade de craqueamento e dessulfurização para converter o peso específico e o conteúdo de enxofre médios de grande parte do petróleo mundial nos petróleos mais leves e mais suaves necessários aos mercados de produtos, os quais estão cada vez mais dominados por combustíveis de transportes que devem cumprir exigências ambientais cada vez mais estritas. Mas a expansão e modernização das refinarias mundiais está atrasada. Exemplo: nenhuma nova refinaria foi construída nos Estados Unidos desde 1976. A consequência do atraso na modernização reflecte-se num significativo aprofundamento do diferencial (spread) de preço entre os brutos light de preços mais elevados como o Brent, que são mais fáceis de refinar, e os brutos mais pesados, como o Maya, que não o são.Sem dúvida a capacidade de refinação continua a expandir-se, ainda que demasiado gradualmente, e a exploração e desenvolvimento do petróleo está a continuar, mesmo em países industriais. A conversão das vastas reservas de areias petrolíferas de Athabasca, em Alberta, em capacidade produtiva, ainda que lenta, tornou esta fonte não convencional de petróleo altamente competitiva com os preços actuais do mercado. Contudo, apesar da tecnologia melhorada e dos preços elevados, os acréscimos nas reservas provadas no mundo desenvolvido não avançaram com a produção, de modo que aquelas reservas estão a ser esgotadas.
A história do petróleo mundial é a de uma indústria em crescimento rápido em que os produtores procuraram proporcionar preços estáveis aos consumidores para encorajar o crescimento da procura. Na primeira década do século XX, o poder de determinar o preço estava firmemente nas mãos de americanos. Mesmo após o rompimento do monopólio da Standard Oil em 1911, o poder de terminar preços permaneceu com os Estados Unidos — primeiro com companhias de petróleo americanas e depois com a Texas Railroad Commission, a qual levantou limites à produção a fim de suprimir aumentos súbitos e cortou produção para impedir declínios agudos nos preços.Na verdade, ainda na década de 1950, a produção de petróleo bruto nos Estados Unidos (mais de 40% da mesma era no Texas) ainda representava mais da metade do total mundial. Em 1951, o excesso de bruto do Texas foi despejado no mercado para conter o impacto da nacionalização do petróleo iraniano sobre os preços. O excesso americano de petróleo foi mais uma vez libertado para o mercado para conter as pressões de preço induzidas pela crise de Suez de 1956 e pela Guerra Árabe-Israelense de 1967.O papel histórico americano no petróleo terminou em 1971, quando a procura mundial em ascensão finalmente excedeu a capacidade excedentária de petróleo bruto dos Estados Unidos. Naquele ponto, o apreçamento marginal do petróleo transferiu-se abruptamente — primeiro para uns poucos grandes produtores do Médio Oriente e depois para forças de mercado mais vastas do que eles, ou alguém, possam conter.Para capitalizar sobre o seu recém adquirido poder de determinar preços, no princípio da década de 1970, muitos países produtores, especialmente no Médio Oriente, nacionalizaram suas companhias de petróleo. A plena magnitude do poder de determinar preços das companhias nacionalizadas tornou-se evidente nos resultados do embargo petrolífero de 1973. Durante aquele período, os preços anunciados do bruto em Ras Tanura, Arábia Saudita, elevaram-se para mais de US$ 11,00 por barril, muito acima dos US$ 1,80 por barril que vigorara desde 1961 a 1970. A nova alta nos preços do petróleo que acompanhou a Revolução Iraniana em 1979 finalmente conduziu os preços para US$ 39 por barril em Fevereiro de 1981. Isto traduz-se por US$ 76 por barril aos preços de hoje.Os preços mais elevados da década de 1970 terminaram abruptamente o extraordinário crescimento do consumo de petróleo nos EUA e no mundo e a acrescida intensidade do seu uso, o qual fora a marca distintiva das décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Desde o aumento de mais de dez vezes nos preços do bruto entre 1972 e 1981, o consumo mundial de petróleo por dólar real equivalente ao produto interno bruto (PIB) global declinou em aproximadamente um terço.Nos Estados Unidos, entre 1945 e 1973, o consumo de produtos de petróleo ascendeu à assustadora taxa média anual de 4,5 por cento, bem acima do crescimento do nosso PIB real. Contudo, entre 1973 e 2006, o consumo petrolífero americano cresceu, em média, a apenas 0,5 por cento ao ano, muito abaixo do aumento no PIB real. Em consequência, nos EUA o rácio entre o consumo de petróleo e o PIB caiu pela metade.Grande parte da redução no rácio do uso do petróleo em relação ao PIB real nos Estados Unidos resultou do crescimento na proporção do PIB composto por serviços, bens de alta tecnologia e outras indústrias menos intensivas. O restante da redução deveu-se à melhoria na conservação da energia: maior isolamento das casas, melhor quilometragem [dos carros] a gasolina, maquinaria mais eficiente e processos de produção agilizados. Estas tendências em curso parecem ter-se intensificado ultimamente com os agudos e recentes aumentos nos preços do petróleo.Até à data, é difícil descobrir uma erosão séria na actividade económica mundial como uma consequência da acentuada elevação dos preços do petróleo. Na verdade, acabámos exactamente de experimentar uma das mais fortes expansões globais desde o fim da II Guerra Mundial. Os Estados Unidos, especialmente, até agora foram capazes de absorver o enorme imposto implícito da ascensão dos preços do petróleo. Contudo, dados recentes indicam que podemos finalmente estar a experimentar algum impacto.Claramente, se o actual quase não existente amortecedor da oferta for aumentado significativamente através de uma intensificação na oferta ou de um abrandamento no consumo, os preços do petróleo cairiam, talvez agudamente. Isto provavelmente ocorreria mesmo se não houvesse diminuição nas ameaças a instalações petrolíferas provenientes de ataques ou furacões. Um amortecedor suficientemente grande poderia absorver tais contingências com impacto modesto sobre os preços.Mas, por boas razões, os possuidores de direitos (claims) sobre os stocks privados existentes de petróleo aparentemente não prevêem uma probabilidade de mudança suficiente para alterar a actual perspectiva. Isto não significa, entretanto, que os preços do petróleo necessariamente movam-se mais para o alto. Todas as preocupações acerca de futuras contingências estão já descontadas nos preços spot de hoje. Será preciso uma mudança na perspectiva, de uma forma ou de outra, para alterar os preços do petróleo bruto. A história conta-nos o que acontecerá — por vezes.
A economia americana foi capaz de absorver o enorme impacto da ascensão dos preços do petróleo com pouca consequência até à data porque tornou-se mais flexível ao longo das últimas três décadas devido à desregulação e à globalização. O crescimento do proteccionismo minaria esta flexibilidade e tornaria o nosso país cada vez mais vulnerável aos caprichos do mercado petrolífero.Os actuais preços do petróleo ao longo do tempo deveriam rebaixar em alguma medida nossa inquietante dependência do mesmo. Apesar de tudo, preços mais elevados do petróleo inevitavelmente moverão os veículos de transporte para os híbridos [1] e, apesar do incómodo, para híbridos de ligar à tomada (plug-in). O etanol do milho, embora valioso, pode desempenhar apenas um papel limitado porque a sua capacidade para deslocar a gasolina é no mínimo modesta. Mas o etanol celulósico, se cumprisse suas promessas, ajudaria a desabituar-nos da nossa dependência do petróleo, assim como poderia ajudar a tecnologia do carvão limpo e a energia nuclear. Com tais desenvolvimentos, o petróleo nos anos pela frente permanecerá um elemento importante do nosso futuro energético, mas não é preciso que continue como o jogador dominante.
[1] Híbridos: Veículos dotados de dois motores, eléctrico e térmico.

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Alan Greenspan

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