O nacionalismo desempenha funções semelhantes às da religião, e a sua «magia consiste em transformar o acaso em destino» [1]. A ligação entre nacionalismo e religião nos Estados Unidos sempre se manifestou no carácter teleológico do discurso político americano, nomeadamente na ideia de um destino revelado providencial. Actualmente, há uma explícita fusão entre o discurso nacionalista e religioso.
Num artigo que quase passou despercebido quando surgiu, em 1999, Samuel Huntington, conhecido pela tese do “choque de civilizações”, fazia apelo a um «nacionalismo robusto que uniria a maioria dos conservadores, que demarcaria claramente a política externa conservadora da liberal, e que falaria ao coração da grande massa do povo americano» [2].
Este programa, destinado a lutar contra a ameaça de desintegração interna, articula-se a partir de uma misteriosa união entre Deus, a nação e o exército, trindade sobre a qual assenta o “credo conservador”, dando‑lhe todo o seu sentido. Esta união é a antítese do liberalismo e do cosmopolitismo, representados, inclusivamente, pelas elites transnacionalizadas dos negócios, que rejeitam alguns dos elementos que a constituem, se não os três.
DEUS: «O conservadorismo tem as suas raízes na religião, contrariamente ao liberalismo. É verdade que alguns liberais são religiosos, mas é mais frequente serem laicos, ateus ou agnósticos. É possível que alguns conservadores (...) partilhem estas perspectivas. No entanto, se é verdade que os conservadores podem ser praticantes ou não, pertencer a uma Igreja ou não, já é difícil que se seja conservador sem se ser religioso. Geralmente, os conservadores acreditam em Deus. Sendo sabido que os americanos são, na sua esmagadora maioria, um povo cristão que inclui uma minoria judia de pequena dimensão mas importante, o Deus do conservadorismo americano é o Deus do Antigo e do Novo Testamento. Na América actual, a militância religiosa e o conservadorismo vão a par e passo na batalha contra a laicidade, o relativismo e o liberalismo.»
A NAÇÃO: «Devido à natureza do mundo, os conservadores colocam a devoção ao seu país ao mesmo nível que a devoção a Deus. O patriotismo é uma virtude conservadora essencial, talvez a mais importante. Os conservadores votam a maior lealdade ao seu país, aos seus valores, à sua cultura e às suas instituições. Contrariamente à maioria dos liberais, só consideram as instituições internacionais como boas na medida em que elas contribuam para reforçar o bem-estar da nação americana, e não por si mesmas. Os não conservadores tendem a aviltar a identidade nacional substituindo-a por identidades infranacionais étnicas, raciais, sexuais e outras, ou por uma identidade ligada às instituições e aos ideais supranacionais (...). Os liberais têm tendência para pôr em causa a legitimidade do Estado‑nação (... ); tal como disse Strobe Talbott, eles esperam a chegada do tempo em que “a nação, tal como a conhecemos, seja ultrapassada, [e em que] todos os países reconheçam uma autoridade mundial única”. No mesmo sentido, Richard Sennett denuncia “o flagelo de uma identidade nacional partilhada”.»
«Os sentimentos antinacionais», afirma Samuel Huntington, «não são apanágio dos intelectuais liberais: existem igualmente entre as elites dos negócios». E deplora que apenas uma grande companhia tenha reagido favoravelmente à carta enviada por Ralph Nader aos dirigentes empresariais instando‑os a manifestarem apoio «ao país que os educou, construiu, subsidiou e defendeu» recitando o juramento de obediência às assembleias anuais de accionistas.
A GUERRA: «O conservadorismo considera os conflitos, mesmo os violentos, inerentes à condição humana. Existem reais conflitos de interesse entre grupos e sociedades, que não resultam de mal‑entendidos, de falta de comunicação ou de miopia, mas que estão enraizados na condição humana, no interesse pessoal, na luta pela riqueza, na segurança e no poder. As vantagens mútuas são possíveis, mas há perdedores e vencedores em qualquer relação – ou pelo menos há os que ganham ou perdem mais e os que ganham ou perdem menos. (...) Os liberais tendem a crer que o fim de um dado grande conflito actual significa o de todos os conflitos, o que explica a euforia a que se entregaram em 1918, 1945 e 1989. Os conservadores sabem que o fim de um conflito cria as bases de um novo conflito. Pensam, como Robin Fox, que “as guerras não são uma doença a tratar, antes fazendo parte da condição humana normal. Decorrem do que somos, e não de tal ou tal circunstância, devido a algo que fazemos de vez em quando”. As guerras, tal como a religião ou a prostituição, são respostas fundamentais aos medos e esperanças fundamentais do homem.»
Por que razão sentiu Samuel Huntington necessidade desta nova comunhão nacional? «A riqueza e a força americanas estão no seu apogeu. O mesmo não acontece com a unidade nacional, a equidade económica e a integridade cultural da América. No sentido mais amplo, a identidade americana encontra-se ameaçada por um multiculturalismo que a subverteu a partir de baixo, e por um cosmopolitismo que a vai erodindo a partir de cima. O patriotismo é um conceito ultrapassado para uma grande parte das elites americanas. É possível que o futuro da América esteja seriamente ameaçado do exterior pela China, a Rússia, o islão ou uma coligação de países hostis. Neste momento, seja como for, as principais ameaças contra a unidade, a cultura e a força americanas estão mais próximas. A reacção apropriada dos conservadores clássicos, bem como dos neoconservadores, deve ser a de fundarem juntos um nacionalismo robusto.»
E foi o que fizeram, com as consequências desastrosas que todos conhecem.
Ler Philip S. Golub, A grande viragem de Washington.
Philip S. Golub
Le Monde diplomatique
[1] Benedict Anderson, L’imaginaire national, La Découverte, Paris, 1996.
[2] Samuel Huntington, Robust nationalism, The National Interest, New York, 1999.
[3] Neste texto, os termos “liberalismo” e “liberal” englobam os progressistas, os pacifistas e uma certa ideia do comércio livre mundial.
Num artigo que quase passou despercebido quando surgiu, em 1999, Samuel Huntington, conhecido pela tese do “choque de civilizações”, fazia apelo a um «nacionalismo robusto que uniria a maioria dos conservadores, que demarcaria claramente a política externa conservadora da liberal, e que falaria ao coração da grande massa do povo americano» [2].
Este programa, destinado a lutar contra a ameaça de desintegração interna, articula-se a partir de uma misteriosa união entre Deus, a nação e o exército, trindade sobre a qual assenta o “credo conservador”, dando‑lhe todo o seu sentido. Esta união é a antítese do liberalismo e do cosmopolitismo, representados, inclusivamente, pelas elites transnacionalizadas dos negócios, que rejeitam alguns dos elementos que a constituem, se não os três.
DEUS: «O conservadorismo tem as suas raízes na religião, contrariamente ao liberalismo. É verdade que alguns liberais são religiosos, mas é mais frequente serem laicos, ateus ou agnósticos. É possível que alguns conservadores (...) partilhem estas perspectivas. No entanto, se é verdade que os conservadores podem ser praticantes ou não, pertencer a uma Igreja ou não, já é difícil que se seja conservador sem se ser religioso. Geralmente, os conservadores acreditam em Deus. Sendo sabido que os americanos são, na sua esmagadora maioria, um povo cristão que inclui uma minoria judia de pequena dimensão mas importante, o Deus do conservadorismo americano é o Deus do Antigo e do Novo Testamento. Na América actual, a militância religiosa e o conservadorismo vão a par e passo na batalha contra a laicidade, o relativismo e o liberalismo.»
A NAÇÃO: «Devido à natureza do mundo, os conservadores colocam a devoção ao seu país ao mesmo nível que a devoção a Deus. O patriotismo é uma virtude conservadora essencial, talvez a mais importante. Os conservadores votam a maior lealdade ao seu país, aos seus valores, à sua cultura e às suas instituições. Contrariamente à maioria dos liberais, só consideram as instituições internacionais como boas na medida em que elas contribuam para reforçar o bem-estar da nação americana, e não por si mesmas. Os não conservadores tendem a aviltar a identidade nacional substituindo-a por identidades infranacionais étnicas, raciais, sexuais e outras, ou por uma identidade ligada às instituições e aos ideais supranacionais (...). Os liberais têm tendência para pôr em causa a legitimidade do Estado‑nação (... ); tal como disse Strobe Talbott, eles esperam a chegada do tempo em que “a nação, tal como a conhecemos, seja ultrapassada, [e em que] todos os países reconheçam uma autoridade mundial única”. No mesmo sentido, Richard Sennett denuncia “o flagelo de uma identidade nacional partilhada”.»
«Os sentimentos antinacionais», afirma Samuel Huntington, «não são apanágio dos intelectuais liberais: existem igualmente entre as elites dos negócios». E deplora que apenas uma grande companhia tenha reagido favoravelmente à carta enviada por Ralph Nader aos dirigentes empresariais instando‑os a manifestarem apoio «ao país que os educou, construiu, subsidiou e defendeu» recitando o juramento de obediência às assembleias anuais de accionistas.
A GUERRA: «O conservadorismo considera os conflitos, mesmo os violentos, inerentes à condição humana. Existem reais conflitos de interesse entre grupos e sociedades, que não resultam de mal‑entendidos, de falta de comunicação ou de miopia, mas que estão enraizados na condição humana, no interesse pessoal, na luta pela riqueza, na segurança e no poder. As vantagens mútuas são possíveis, mas há perdedores e vencedores em qualquer relação – ou pelo menos há os que ganham ou perdem mais e os que ganham ou perdem menos. (...) Os liberais tendem a crer que o fim de um dado grande conflito actual significa o de todos os conflitos, o que explica a euforia a que se entregaram em 1918, 1945 e 1989. Os conservadores sabem que o fim de um conflito cria as bases de um novo conflito. Pensam, como Robin Fox, que “as guerras não são uma doença a tratar, antes fazendo parte da condição humana normal. Decorrem do que somos, e não de tal ou tal circunstância, devido a algo que fazemos de vez em quando”. As guerras, tal como a religião ou a prostituição, são respostas fundamentais aos medos e esperanças fundamentais do homem.»
Por que razão sentiu Samuel Huntington necessidade desta nova comunhão nacional? «A riqueza e a força americanas estão no seu apogeu. O mesmo não acontece com a unidade nacional, a equidade económica e a integridade cultural da América. No sentido mais amplo, a identidade americana encontra-se ameaçada por um multiculturalismo que a subverteu a partir de baixo, e por um cosmopolitismo que a vai erodindo a partir de cima. O patriotismo é um conceito ultrapassado para uma grande parte das elites americanas. É possível que o futuro da América esteja seriamente ameaçado do exterior pela China, a Rússia, o islão ou uma coligação de países hostis. Neste momento, seja como for, as principais ameaças contra a unidade, a cultura e a força americanas estão mais próximas. A reacção apropriada dos conservadores clássicos, bem como dos neoconservadores, deve ser a de fundarem juntos um nacionalismo robusto.»
E foi o que fizeram, com as consequências desastrosas que todos conhecem.
Ler Philip S. Golub, A grande viragem de Washington.
Philip S. Golub
Le Monde diplomatique
[1] Benedict Anderson, L’imaginaire national, La Découverte, Paris, 1996.
[2] Samuel Huntington, Robust nationalism, The National Interest, New York, 1999.
[3] Neste texto, os termos “liberalismo” e “liberal” englobam os progressistas, os pacifistas e uma certa ideia do comércio livre mundial.
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