terça-feira, junho 20, 2006

A guerra do futebol

Uns 40.000 milhões de telespectadores (de audiência acumulada) dispõem-se a presenciar a fase final do Campeonato do Mundo de futebol que hoje começa na Alemanha. Nenhum outro acontecimento suscita tanta paixão entre os habitantes do nosso planeta. Para muitos seguidores, o futebol continua a ser o melhor expoente das “virtudes da nação”. O campeonato vive-se como uma autêntica “guerra mundial ritualizada”, e os jogadores encarnam os atributos da colectividade nacional: coragem, audácia, virilidade, lealdade, fidelidade, sentido do dever, do território, pertença a uma comunidade, espírito de sacrifício...
«O título de campeão» – constata um informe da EU – «não é só conquistado por uma equipa, mas pela sociedade da qual procede. Por conseguinte, a colectividade projecta-se na equipa e deposita nesta as suas esperanças de conquista, a sua energia vencedora, mas também as suas frustrações pessoais e a sua agressividade», pois o futebol também favorece as implantações míticas, as projecções imaginárias e os fanatismos patrióticos. «Ajuda a manter um nacionalismo residual» – escreve o historiador Pierre Milza – «que, nas grandes confrontações internacionais, dá lugar a bruscos e efémeros acessos de paixão chauvinista».
Assim, o Mundial adopta toda a aparência de uma guerra ritual que apela aos emblemas nacionais (hinos, bandeiras, presença de chefes de Estado) e os comentaristas recorrem a metáforas guerreiras. O primeiro regime que instrumentalizou o futebol foi o fascismo de Mussolini. Ele pensava que permitia reunir, «num espaço propício para a encenação, multidões consideráveis; exercer uma forte pressão sobre as mesmas e manter as pulsões nacionalistas das massas». Mussolini foi o primeiro a considerar os jogadores de Itália “soldados ao serviço da causa nacional”.
Consequentemente, o futebol pode levar as crises entre nacionalidades ao paroxismo; daí a ideia de que um dos atributos da independência de um estado-nação é a equipa­‑nação, depositaria de um enorme investimento simbólico das “grandes virtudes patrióticas”. Por outro lado, em razão desta igualdade mítica (uma nação, uma equipa), as antigas RFA e RDA decidiram, em 1991, fundir os seus numa só equipa da Alemanha. Em contrapartida, Catalunha, Euskadi ou Galiza reivindicam o direito, como a Escócia e o País de Gales, a constituir a sua própria equipa nacional. É interessante observar que embora o Montenegro acabe de conseguir a independência nacional, os seus jogadores participarão no Mundial no seio da equipa de Sérvia­‑Montenegro. O futebol irá assim atrás da política.
Nas zonas de guerra, o futebol reflecte a violência dos antagonismos. Em Israel, por exemplo, os grandes clubes estão filiados aos partidos políticos: o Betar depende do Herut (direita nacionalista), o Maccabi do Partido Liberal, o Hapoel do movimento trabalhista e o Elitzur é apadrinhado pelos religiosos; só os clubes do norte do país (Galileia) são maioritariamente árabes. A Autoridade Palestiniana mantém desde 1964 uma equipa nacional que joga no estrangeiro. Tanto mais quanto o futebol palestiniano tem a sua antiguidade e a selecção participou no Mundial de 1934, antes da fundação do Estado de Israel.
Outro lugar de crise: Irlanda do Norte. Como na vida política, a divisão confessional entre católicos e protestantes vive­‑se também nos estádios. O clube de Belfast, o Lindfield, cujos dirigentes, jogadores e seguidores são só protestantes, não esteve autorizado, durante muito tempo e por razões de segurança, a enfrentar­‑se com o único clube católico da cidade, o Cliftonville, no campo deste, em território católico. Os partidos, ida e volta, disputavam-se sob alta vigilância em terreno neutro. Esta oposição entre católicos e protestantes é uma das características do futebol no Reino Unido. Também a encontramos na Escócia e na Inglaterra, onde dá lugar a rivalidades que originaram, em parte, o hooliganismo. Assim, em Glasgow, os jogos entre o clube católico do Celtic e o clube protestante dos Rangers geralmente acabam transformando-se em choques extremamente violentos (66 mortos e uma centena de feridos a 2 de Janeiro de 1971). Em Liverpool, os encontros entre a equipa protestante Liverpool FC (onde jogam vários espanhóis) e o clube local católico Everton costumam dar lugar a desenfreamentos parecidos.
Estas violências confessionais só são comparáveis às que acompanham os jogos entre equipas nacionais britânicas. Pois o Reino Unido é o único país que fez admitir à FIFA o reconhecimento de quatro equipas (Irlanda do Norte, Escócia, País de Gales e Inglaterra) para um só Estado. Os encontros amistosos entre Inglaterra e Escócia, especialmente, costumam acabar em confrontos violentos (um morto e 90 feridos a 21 de Maio de 1988). Os seguidores ingleses adoptaram toda a panóplia do nacionalismo extremo – desde o buldogue, animal mascote dos ultras, até à bandeira britânica (que não é a de Inglaterra) e os cantos de guerra – e entre eles costuma haver activistas da Frente Nacional infiltrados. No seu seio nasceu o fenómeno skinhead, que pouco a pouco se foi generalizando em toda a Europa, onde se podem encontrar, em torno de alguns clubes e equipas nacionais, os mesmos fascínios pela violência, pelos temas patrioteiros e inclusive racistas...
Na Alemanha, por ocasião do Mundial, a identificação das equipas com as nações ou as etnias provocará, sem dúvida, transbordamentos, exacerbados pelo delírio popular e a paixão mediática que aquece a fundo as opiniões públicas. Até ao absurdo. Todos querem ganhar, quando todos (salvo um) vão perder. E esta fatalidade da derrota pode tornar louco.

Ignacio Ramonet
http://www.infoalternativa.org/autores/ramonet/ramonet092.htm

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