sexta-feira, junho 30, 2006

O encarceramento maciço nos EUA

Permitam-me que comece por citar a minha personalidade histórica favorita, de Indiana -- o grande democrata socialista Eugene Debs, de Terre Haute. "Enquanto houver uma classe inferior, faço parte dela. Enquanto houver um elemento criminoso estarei com ele. Enquanto houver uma alma na prisão, não serei livre". NAÇÃO PRISÃO Debs sentir-se-ia muito menos livre nos EUA nos dias de hoje onde 2 milhões de adultos passam os seus dias atrás de barras, na nação que possui a taxa de encarceramento mais alta do mundo. No segundo ano do novo milénio, estavam presas 40 em cada 100.000 pessoas na Itália. A taxa de encarceramento na Suécia era 60 por 100.000. Na França: 90 por 100.000. Em Inglaterra: 125. Na África do Sul: 400 por 100.000. A Rússia tinha a segunda taxa mais alta no mundo: 675. Os Estados Unidos lideraram mundialmente com 690 por 100.000. Incrivelmente, a nação que se proclama a pátria e a sede da liberdade mundial, com 5 por cento da população do planeta, tem mais de mais de 25 por cento dos prisioneiros existentes em todo o mundo. "Nenhum outro país democrático ocidental reteve alguma vez na prisão tamanha proporção de sua população", diz Norval Morris, um professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago. Indiana e Illinois estão a desempenhar os principais papéis neste drama negro, contribuindo com 43.000 (Illinois) e 22.000 (Indiana) prisioneiros estaduais para o conjunto dos condenados da Nação Prisão. Se se considerarem os prisioneiros federais, locais e os municipais, estes números seriam bastante mais elevados. Os números do encarceramento nos EUA ultrapassam muito os valores (em termos relativos) do resto do mundo, mas além disso estão também muito para lá dos valores relativos da nossa própria história. Nas últimas duas décadas e meia, a população prisional dos EUA sofreu uma expansão "literalmente incrível", passando de um número inferior a 300.000 em 1970, até ao actual número absolutamente chocante. Haviam menos de 7500 prisioneiros em todo o estado de Illinois em 1970. Trinta um anos depois, cheguei à conclusão de que 7500 prisioneiros de Illinois provêm de apenas seis das sessenta e seis regiões administrativas de Chicago, sendo que cinco pertencem à zona oeste da cidade e uma à zona sul. Após estes 31 anos o número de instalações prisionais passou de 7 para 27. Ao rever estes números fico chocado com a profundidade deste desenvolvimento que se verificou silenciosamente, nos bastidores. Tudo decorreu numa quietude surpreendente, sem que se desse por isso, e durante a minha vida, o que aliás foi bastante bem retratado por Angela Davis: "Quando estive primeiramente envolvida com movimentos anti-prisionais durante os anos sessenta", escreve Davis, "fui surpreendida por perceber que havia na altura perto de 200 mil pessoas na prisão. Se alguém me tivesse dito então que passadas três décadas haveriam dez vezes mais pessoas encarceradas, eu não teria acreditado de todo. Imagino que teria respondido alguma coisa como: Quão racista e antidemocrático pode ser este país [lembremo-nos que durante aqueles anos, as questões relacionadas com o Movimento dos Direitos Civis não estavam ainda consolidadas], não acredito que o governo norte-americano possa trancar tantas pessoas sem que isso origine uma poderosa resistência. Não, isto nunca acontecerá, a menos que este país mergulhe no fascismo" (Angela Y. Davis, Are Prisons Obsolete?, Seven Stories Press, 2003, p.11). A taxa de encarceramento dos EUA começou a acelerar dramaticamente em meados dos anos setenta, depois de durante quase 50 anos ter estado estabilizada em redor de 100 por 100.000. O encarceramento é actualmente tão elevado que vários dos maiores estados despendem muito mais com o encarceramento de adultos do que despendem com os seus cidadãos nas faculdades e nas escolas secundárias. Os estados gastam actualmente 60 centavos em prisões por cada dólar gasto no ensino superior, muito acima dos 28 centavos em 1980. NAÇÃO DE EX-CONDENADOS: O ESTIGMA DE UM REGISTO CRIMINAL Embora pouco notado, o aprisionamento em massa nos EUA também gerou o surgimento de um exército maciço de "ex-infractores", cuja liberdade "do lado de fora" está estritamente condicionada ao longo de toda vida por um antecedente criminal. Todos os anos mais de 600 mil indivíduos são libertados dos presídios estatais e federais, alimentando e aumentando a multidão de ex-condenados, marcados com aquilo a que The Economist designou "O estigma que nunca desaparece". De acordo com as melhores e mais recentes estimativas, cerca de 13 milhões de americanos – o que corresponde a 7 por cento da população adulta e a 12 por cento da população adulta masculina – possui registo criminal. Graças a numerosas barreiras para a "reintegração" de ex-condenados (uma frase que nos leva a aceitar facilmente que tenha havido um esforço significativo para integrar os antigos prisioneiros em "estruturas de oportunidade" americanas anteriores à detenção e encarceramento), muitos prisioneiros libertados afirmam que a sua "condenação real" inicia-se após a sua libertação. Não temos dúvidas de que esta afirmação é frequentemente exagerada, pois as prisões "modernas" dos EUA são estruturas violentas e totalitárias, verdadeiros monumentos de miséria em massa intencionalmente planeados, mantendo-se presentes essas indesejáveis características, apesar do significativo investimento em reabilitação e tratamento. Devemos ter presente ainda as enormes dificuldades que os antigos prisioneiros têm de enfrentar. Uma das maiores reside no domínio do emprego. De acordo com estimativas recentes e críveis, o encarceramento origina uma significativa "penalização salarial", de 10 a 20%. "O tempo de prisão", segundo o sociólogo Devah Pager, "serve para desviar os indivíduos das ocupações qualificadas e dirigi-los para actividades profissionais mal remuneradas, precárias, e com menos oportunidades de progressão profissional". Num estudo baseado em 3000 entrevistas a empregadores realizadas pela Multi-City Study of Urban Inequality, os investigadores concluíram que mais de 60 por cento dos empregadores não contrataria conscientemente nenhum ex-condenado. A posse de um registro criminal é o único constrangimento que os empregadores identificam para não admitirem ex-condenados. Este não é um problema social sem importância para a maioria dos 13 milhões de pessoas que possuem tal registo, pois numa sociedade capitalista os adultos têm de fazer face às suas necessidades diárias através de um sistema de trocas que funciona basicamente no aluguer das suas capacidades de trabalho numa base sustentada. O patronato e outros viéses sociais, contra "ex-condenados" explicam porque cerca de dois terços dos prisioneiros libertados voltam às prisões ao fim de um período de três anos. Um considerável segmento da população, em crescimento nítido, passou a fazer parte do estrato da sociedade permanentemente estigmatizada, a "subclasse", onde é reciclado quem entra e sai das prisões. Isto cria um "elemento criminoso" perpétuo que os empurra mais ainda para as classes baixas e funciona como a matéria-prima de base para uma justiça criminal inchada, super-despendiosa e hiper-carcerária. "MORTE CIVIL" Juntamente com a privação dos direitos socio-económicos vem a privação dos direitos políticos. "Actualmente", observam autoridades académicas nessa matéria (Jeff Manza e Christopher Uggen), "48 estados privam de direitos os criminosos encarcerados, 37 estados privam de direitos os réus acusados de crime ou os que se encontram em liberdade condicional (ou ambos), e 14 estados privam adicionalmente de direitos alguns ou todos os ex- infractores que completaram as suas penas". Não existe outra nação democrática que negue o voto a tão significativa parte da sua população de condenados ou ex-condenados. Dos 14 estados um dos piores é, claro está, a Flórida, onde a privação de direitos por motivo de crime, complementada pela negação escandalosa e ilegal do direito de voto a muitas pessoas simplesmente por serem suspeitas de possuir registo de infracções, e ainda outros, cujos registos de infracções fora do estado (ver o primeiro capítulo com o título "Jim Crow in Cyberspace", do bestseller de Greg Palast: "The Best Democracy Money Can Buy"), deram a George W. Bush, o grande transgressor do sistema mundial, a margem "vencedora" que foi elemento chave na lamentável eleição presidencial de 2000. Dos cerca de 4,4 milhões de americanos que estão privados de direitos devido a uma situação criminal passada ou actual, "espera-se", notam os peritos, "que respeitem a lei (e claro está, são frequentemente sujeitos a penalidades significativamente mais severas, enfrentando um nível mais alto de exigência, do que os não-criminosos). Espera-se também que eles paguem impostos ao governo, e que sejam governados por funcionários eleitos. Ainda assim, eles não têm qualquer direito formal de participarem na escolha dos seus governantes nem nas políticas públicas que estabelecem o destino das despesas governamentais", inclusive as dezenas de milhares de milhões de dólares que o governo americano destina ao encarceramento maciço. Com os mecanismos tremendamente diluídos e qualificados da democracia, conhecidos como o processo de votação americano, muitos dos "elementos criminosos" estão proibidos de apontar seja o que for que diga respeito àquelas políticas que os marcaram para toda a vida. Tudo isto, numa versão moderna da pratica medieval de "morte civil", negando a lei e conduzindo um segmento considerável da população a uma "perda completa dos direitos de cidadania". Ao mesmo tempo, é importante ter em conta a percentagem dos prisioneiros relativamente à população, e depois analisar a representação política (de acordo com as regras políticas distritais) e relacioná-las com a distribuição dos fundos estatais e federais, não para as suas comunidades de origem (desproporcionalidade urbana) mas para as regiões e comunidades (desproporcionalidade rural) que são anfitriãs de prisões. Uma investigação de The Chicago Reporter -- uma excelente revista local de negócios públicos -- concluiu que, considerando a intercepção dos aspectos relacionados com o encarceramento maciço, com a geografia das instalações prisionais, com as regras políticas distritais, e com os procedimentos orçamentais federais, serão despendidos por Chicago quase 88 milhões de dólares em subsídios federais, entre 2000 e 2010 (ver Molly Dugan, "Census Dollars Bring bounty to Prison Towns"). A COR DA PRISÃO NUMA NAÇÃO DE EX-CONDENADOS Sejamos claros, porém, sobre quem são precisamente os mais propensos a serem privados de direitos socio-económicos e políticos devido ao encarceramento e aos correspondentes estigmas criminais. Para além da enorme magnitude deste assunto, o aspecto que tem mais impacto na prisão americana e no "boom" da sua supervisão criminal, é a sua pesada natureza racial. Com o aumento da população penal, esta foi ficando significativamente menos caucasiana: os brancos não-hispanicos representavam 42% dos ocupantes das prisões estaduais em 1979, mas no final do século XX já eram menos de um terço. Um grupo é especialmente atingido: os negros são 12,3 por cento de população dos EUA, no entanto representam mais de metade dos cerca de 2 milhões de americanos actualmente atrás das grades. Entre 1980 e 2000, o número de homens negros presos aumentou cinco vezes (500 por cento), ao ponto onde, como o "Justice Policy Institute" recentemente (2002) informou, de haver mais homens negros atrás de barras do que matriculados nas faculdades ou universidades dos EUA. Num dado dia, Chaiken informou que 30 por cento dos homens afro-americanos com idades compreendidas entre os 20 e 29 anos estão sob supervisão de correccional, isto é, em instalações prisionais, em situação de acusação de crime ou ainda em liberdade condicional. A taxa de encarceramento para os afro-americanos é de 1.815 por 100.000, comparados aos 609 por 100.000 para os latino-americanos, 99 por 100.000 para asiático-americanos, e 235 por 100.000 para brancos americanos. Para os homens negros adultos, a taxa de encarceramento representa o incrível valor de 4.484 por 100.000, comparando com o de 1.668 por 100.000 para os homens hispânicos e os 1.318 por 100.000 para os homens brancos. Cerca de um em cada dez prisioneiros de todo o mundo é um homem afro-americano. Em meados de 1999, 11 por cento dos homens negros dos EUA entre os 20 e os 30 encontravam-se na prisão, assim como 33 por cento dos negros que abandonaram a escola secundária. Especialmente deprimente é um modelo estatístico usado pela Agência de Estatísticas de Justiça acerca do século XXI para determinação numa base étnica e racial, da probabilidade de os indivíduos virem a ser encarcerados durante a sua vida. Baseado em taxas actuais, prevê-se que o jovem homem negro com 16 anos de idade em 1996 tenha 29 por cento de possibilidade de passar algum tempo na prisão durante a sua vida. A correspondente estatística para homens brancos na mesma faixa etária, era 4 por cento. De acordo com estas revelações, é fácil prever elevados altos encarceramentos ao nível dos estados, tanto em números tanto absolutos como relativos, a partir de população negra desproporcionalmente grande. Também convém notar que a raça é de facto o único factor significativo que determina quais os estados que negam direitos de voto a infractores e ex-infractores. Assim, quanto maior for a composição negra da população prisional de um estado, mais provável será esse estado privar de direitos o seu oficialmente estigmatizado "elemento criminoso". Um ensaio recente publicado na New Left Review pelo sociólogo de esquerda Loic Wacquant, intitulava-se: "Da escravatura para o encarceramento maciço". A experiência de encarceramento é tão omnipresente e tão comum na experiência afro-americana hoje em dia que Loic Wacquant pode tornar obrigatório denominar como de "prisão em massa" a fase histórica actual, como sendo o desenvolvimento normal na evolução do racismo estrutural nos Estados Unidos. Enquanto isso, os criminólogos Dina Rose e Todd Clear identificaram alguns bairros de negros em Tallahassee onde todos os residentes podem nomear pelo menos um amigo ou um parente que foi encarcerado. Em comunidades urbanas predominantemente negras de todo o país, o encarceramento é tão difundido e tão trivial, que se tornou naquilo que Chaiken classifica como "quase uma experiência de vida padronizada". O fenómeno de desproporcionalidade elevada no encarceramento maciço de negros está carregada de uma ironia histórica brutal. Enquanto o discurso corrente americano sobre assuntos raciais tornou-se oficialmente inclusivo -- até David Duke tem agora que afirmar que não é anti-negro -- os EUA estão a inundar por todo lado um crescente número de celas prisionais com uma maré também crescente de cidadãos negros, os quais são vigiados sobretudo por guardas brancos. Existe uma falsa crença difundida entre os brancos -- ironicamente reforçada pelo fim da exposição pública aberta do preconceito racial -- de que os afro-americanos têm iguais e daltónicas oportunidades relativamente aos brancos. "Como a América branca vê as coisas desta forma", escreve Barbara Diggs-Brown e Leonard Steinhorn no seu esclarecido "By the Color of Their Skin: the Illusion of Integration and the Reality of Race" (2000), "desenvolveu-se todo um esforço para atrair os negros ao estilo de vida americano, e agora eles têm o seu próprio… Nós recebemos a mensagem, nós fizemos as correcções [reclamam os americanos brancos, P.S.] -- Vamos em frente com isto". Correcções, sem dúvida: como sugere a demografia racialmente enviesada do sistema "correccional" americano; os EUA, na presente idade do encarceramento maciço, estão na transição da penumbra colorida para a nobre noção cristã de que nós somos "os protectores do nosso irmão" [hoje "nossos irmãos"]. UMA REALIDADE ORIENTADA POLITICAMENTE Numa primeira abordagem, qualquer observador externo de outro país ou planeta que analise os números do sistema prisional dos EUA, concluirá que este país teve durante as últimas décadas um recrudescimento significativo dos crimes violentos, cometidos de um modo desproporcionado por afro-americanos. Esta seria também a conclusão razoável a retirar da medida extrema (considerando os padrões globais americanos tanto em termos históricos como contemporâneos) que tem vindo a ser utilizada durante os últimos 25 a 30 anos: o encarceramento maciço e racialmente díspar. Contrariamente à retórica "lei e ordem" cultivada por muitos políticos, não se verificou porém o incremento de nenhum padrão claro e consistente de criminalidade, inclusive de criminalidade violenta, que pudesse explicar a tendência crescente dos números do sistema prisional dos EUA. "Desde 1980", observa o jornalista Vince Beiser, "a taxa criminal em termos nacionais manteve-se em níveis baixos, ao que se seguiu uma subida, tornando depois a baixar, mas apesar disso a taxa de encarceramento foi subindo implacavelmente todos os anos". Durante os anos noventa, na realidade, a taxa de encarceramento dos EUA subiu dramaticamente apesar da taxa criminal ter caído graças em larga medida ao forte crescimento económico verificado durante o "boom Clinton". "O crime está a diminuir", observa o bem considerado diário de negócios Illinois Issues, "mas a população prisional não está". A taxa criminal dos negros tem sido constantemente mais elevada do que a taxa criminal branca, o que está de acordo com a mais baixa condição socio-económica dos negros que por sua vez está relacionada com níveis de stress mais elevados, défice social e estruturas familiares débeis, mas ao analisar o aumento da criminalidade negra, não existe nenhuma evidência da algo que possa explicar, mesmo que remotamente, o rápido aumento da taxa de encarceramento dos negros. O factor central é que o sistema prisional dos EUA "mudou", nas palavras de Pager, "de uma pena reservada aos piores criminosos, passou-se a aplica-la de um modo extensível a uma maior gama de crimes e a uma mais alargada faixa da população. As tendências recentes em política criminal conduziram à imposição de sentenças mais severas e mais longas para uma gama mais extensa de ofensas, implicando nisso uma rede de intervenção penal cada vez mais alargada". É em grande medida devido a esta situação que a maioria dos americanos que entram no espaço inerentemente violento da "nação prisão" dos EUA (onde 7 por cento dos ocupantes sofrem estupro), estão lá por crimes não violentos. Entre 1980 e 1997, os relatórios do Instituto de Política da Justiça (JPI) informam que "o número de transgressores violentos enviados para uma prisão estatal quase duplicou (para cima de 82 por cento)", mas "o número de transgressores não violentos triplicou (mais de 207 por cento)". As pessoas que cometeram crimes não violentos correspondem a mais de três quartos do enorme aumento de prisioneiros registados no país entre 1978 e 1996. As estimativas do JPI indicam que existe mais de 1,2 milhão de criminosos não violentos actualmente atrás de barras das instalações prisionais dos EUA. Estas tendências marcaram as comunidades negras de uma forma muito profunda. Enquanto os negros constituem apenas 15 por cento de consumidores ilícitos de droga, eles correspondem no entanto a 37 por cento dos presos acusados de crimes relacionados com a droga. Eles representam 42 por cento dos presos em instalações prisionais federais acusados de crimes de droga e 62 por cento dos presos em prisões estatais. Não surpreendentemente, os transgressores brancos relacionados com a droga têm muito menos probabilidade de passar algum tempo na prisão do que a sua correspondente contraparte étnica. De acordo com o relatório emitido em 2000 pela prestigiosa organização de direitos humanos Human Rights Watch, os negros constituem mais que 75 por cento do total dos prisioneiros relacionados com crimes de droga nos EUA, em apenas um terço dos estados. No meu estado, Illinois, a Human Rights Watch informou que "os negros constituíam uns surpreendentes 90 por cento de todos os transgressores de droga que deram entrada nas prisões de Illinois" em 1996. Em 2000, a percentagem tinha caído apenas para 89 por cento, fazendo de Illinois o segundo estado dos EUA em termos deste parâmetro chave que é a disparidade racial. A HISTÓRIA DE CHICAGO Procurando mais sobre estas obscuras realidades, verifica-se que existe hoje em dia um crescimento de uma respeitável literatura académica e política acerca do "desequilíbrio racial no encarceramento maciço" -- literatura académica liberal e de fundações sobre terminologia da prisão estatal racista -- e acerca dos assuntos relacionados com a criminalização maciça dos negros e da "reinserção do prisioneiro". Esta literatura suporta títulos tão dramáticos como "A Raça para Encarceramento", "Nação Encarceramento", "Encerramento da América", "Nação Prisão", "A Cela excede a Sala de Aula", "Viagem na Nação Prisão", "Ligar à Cor", e outros que tais. O meu estudo editado no ano passado faz parte desta literatura. Intitulado "O Círculo vicioso: Raça, Prisão, Empregos e Comunidade em Chicago, Illinois e na Nação", está cheio de pormenores chocantes acerca de, como e porquê o sistema penal se tornou uma parte central da estrutura institucional que produz as desigualdades raciais e socio-económicas nos EUA. Entre as piores revelações temos:
 Em Junho de 2001 verifiquei que havia mais quase 20.000 homens negros nas prisões estatais de Illinois do que homens negros matriculados nas universidades deste estado. Havia mais homens negros nas instalações prisionais do estado acusados apenas de faltas relativas a droga, do que o total de homens negros matriculados em programas de graduação nas universidades do estado.
 Em 2000, verifiquei e informei que a população prisional de Illinois havia atingido perto de 46.000 presos e o número de instalações correccionais tinha crescido rapidamente para 27. O aumento da população prisional nas prisões estatais de Illinois (IDOC), onde 94 por cento são homens, tem uma sugestiva e forte proximidade com a diminuição do número de famílias (predominantemente geridas por mulheres) que recebem assistência familiar pública monetária deste estado -- 46.801. Nove anos antes, o número de prisioneiros em Illinois constituíam menos de 15 por cento das famílias com assistência social do estado. A secção do relatório na qual incluí estes dados intitula-se "Do estado Providência ao estado prisão".
 Descobri que os ex-prisioneiros negros masculinos equivalem em número a cerca de um quarto (24 por cento) da mão-de-obra negra masculina da região Chicago. Os ex-infractores negros masculinos equivalem em número aos 42 por cento da mão-de-obra negra masculina da região de Chicago.
 Descobri que dez dos códigos postais de Chicago habitados predominantemente por negros (incluindo cinco da zona oeste da cidade e quatro da zona sul) receberam 25 por cento dos prisioneiros libertados do Illinois nos anos 2000, 2001, e 2002. Cheguei à conclusão de que os prisioneiros libertados voltam às mesmas comunidades carenciadas de onde vieram antes do seu encarceramento. Dos 15 primeiros códigos postais que recebem prisioneiros libertados, 10 estão entre os mais pobres da cidade, 11 entre os 15 regiões com mais desemprego, 10 entre as 15 regiões com os mais baixos salários, e 10 entre os códigos postais da cidade de Chicago onde o número de alunos que terminam o ensino secundário é mais baixo.
Notei que devido ao encarceramento maciço, existe uma significativa disparidade racial no tocante ao mercado de trabalho e questões relacionadas com o desenvolvimento económico, tanto em Illinois como ao longo de todo o país. O boom da construção de instalações prisionais -- alimentado pelo "mercado" crescente de transgressores negros -- representa uma importante fonte geradora de trabalho, e de efeitos multiplicadores na economia local, para as comunidades "pobres" de Illinois anfitriãs das prisões. Devido à dicotomia racial e económica, às relações políticas e aos impactos orçamentais no estado de Illinois, argumentei em "O Círculo Vicioso" na necessidade de encarar o encarceramento maciço com medidas contidas num pacote de "Reparações de Reversão Racial" -- uma forma de intervenção estatal radical para promoção da transferência de riqueza, do recenseamento, dos salários, tudo através de um esforço governamental, promovendo a devolução do direito de votar, e mesmo uma campanha apoiada financeiramente, não para o negro, mas dirigida à comunidade branca. Tal como no tempo da escravidão (inclusive o infame compromisso dos "três-quintos" que permitia o escravo ser considerado como um bem móvel negro na sua representação no Congresso) é duro ceder, mas entretanto os prisioneiros negros vão funcionando mais como matéria-prima alimentando o sistema, do que como mão-de-obra subordinada ao moderno sistema encarceramento maciço. O ESTADO DA PRISÃO RACIAL X MITOLOGIA NACIONAL Meu estudo teve boa aceitação na comunidade negra de Chicago assim com entre os intelectuais e activistas que trabalham para reverter o sistema de encarceramento americano. Porém, não alcançou um reconhecimento semelhante, mesmo que remoto, nos media, nem sequer a nível local. Penso que esta resposta indiferente dos media é bastante típica para aqueles de nós que escrevem acerca e contra a prisão estatal racista. Existe um épico afastamento entre o seu significado (bem entendido pela comunidade negra em especial) e a atenção que correntemente lhe é concedida, especialmente quando é referido que George W. Bush chegou ao poder -- com consequências históricas -- graças à negação dos direitos de voto a dezenas de milhares de ex-infractores negros (reais e supostos) na Flórida. "O FAROL DA LIBERDADE" As razões para este afastamento são complexas, mas parte do problema relaciona-se com o poder de filtragem da ideologia dominante, cujos elementos centrais são compartilhados pela classe política americana que alberga os políticos e os proprietários e gestores das corporações dos media nacionais. Toda a história da condução da política racista sobre o encarceramento maciço, e da sua relação extrema com o paradigma dos negros como criminosos, está profundamente distorcida daquilo que é o cerne da questão, sobrepondo os mitos americanos, que os media dominantes não têm interesse em desafiar, particularmente após o 11 de Setembro, a partir do qual se desenvolveu um intenso nacionalismo e a correspondente mobilização doméstica favorável à guerra imperial permanente. Um tal mito sustenta que os EUA são a pátria natural, epítome e sede da liberdade, "o farol para o mundo do que deveria ser o modo de vida" -- para citar o senador texano Kay Bailey Hutchinson quando no outono de 2002 justificou o seu apoio à invasão planeada pela Casa Branca ao Iraque. A frase de Hutchinson condensa a convicção difundida entre a classe política de que os EUA são a incorporação de existência humana no seu melhor -- um Deus -- e/ou historicamente prevista como sobrejacente a todos, aquele que "se levanta mais alto e vê mais longe" do que o resto do mundo, tal como Madeline Albright referiu à alguns anos. Esta convicção certamente influenciou uma declaração feita por James F. Dobbins, director do "Rand Corporation's Center for International Security and Defense Policy" e enviado especial da anterior administração da Casa Branca durante as intervenções dos EUA na Somália, Haiti, Bósnia, Kosovo, e no Afeganistão. "O debate partidário" nos EUA, "terminou", proclamou Dobbins imediatamente antes dos EUA invadirem o Iraque. "As direcções de ambos os partidos estão perfeitamente preparadas", referiu Dobbins, "para usar as forças armadas americanas na reforma os estados párias e na reparação das sociedades desconcertadas". Para conter este tóxico narcisismo nacional-imperialista e mostrar que os EUA são eles próprios uma "sociedade fracturada", os activistas podem recorrer empiricamente a um conjunto de relações fortes, tais como a desigualdade, a pobreza, as mortes com armas, os suicídios, a insegurança, e por aí adiante. Mas poucos são os trunfos que se podem retirar da estatísticas sociais que se debrucem sobre dados relacionados com o encarceramento, quando isso vai deitar por terra a lenga-lenga habitual da excelência americana de que se vangloriam as suas elites, particularmente a parte dominante que identifica os EUA com a "liberdade". Mesmo que os media quisessem, ser-lhes-ia difícil dizer a verdade num tal contexto de contornos de terror contra-doutrinários, ao mesmo tempo que a elite no poder dos EUA, agressivamente nacionalista -- dominada pela outrora "respeitável" e tendencialmente radical ala direitista -- está a afirmar a si própria e ao mundo que os EUA são o "único modelo sustentável" de uma sociedade de excelência, especialmente escolhida por Deus e pela História para exemplificar e mesmo, exportar as suas superiores virtudes de liberdade. "A AMÉRICA DALTÓNICA" Um segundo grande mito desafiado pela história real do encarceramento em massa e sua ligação com a permanente marca de criminoso para milhões de cidadãos e ex-cidadãos afro-americanos, é evidentemente a noção corrente de que os EUA se tornaram, propositadamente e intencionalmente, numa nação pós-racista daltónica, onde as correcções, que são entendidas como acções afirmativas, já não são necessárias; isto com o propósito de evitar mencionar especificamente as reparações. Mesmo John McWhorter, do Manhattan Institute, que fez uma carreira lucrativa argumentando que a causa principal das dificuldades persistentes dos negros numa América pós-racista é a cultura negra "auto-sabotadora", reconhece agora que a discriminação racial continua a ser um problema no sistema de justiça criminal hiper-encarcerador dos EUA. O ALVO SELECTIVO DO "MONSTRO" GOVERNAMENTAL Outro mito que quero mencionar é a amplamente anunciada e muito lamentada noção de um estado impotente e sem dinheiro -- a ideia de que o governo realmente não pode fazer mais nada; que não tem a força, a legitimidade, o dinheiro, a possibilidade para levar a cabo objectivos fundamentais. Diga isso à massa dos prisioneiros e ex-prisioneiros do país. Para entender o último mito, é preciso perguntar que objectivos o governo americano pode e não pode levar a cabo. Na nação mais rica do mundo, o sector público tem falta de dinheiro para estabelecer uma correcta educação para todas as crianças do país. Faltam os recursos para proporcionar uma cobertura universal de saúde, deixando 42 milhões de americano sem seguro médico básico. Não pode dar subsídios de desemprego às pessoas desempregadas. Falta, ou dizem que falta, o dinheiro para promover uma reabilitação adequada e estruturas de reinserção para os seus muitos milhões de prisioneiros e ex-prisioneiros negros, marcados para toda a vida pelos seus antecedentes penais. A lista de necessidades cívicas e sociais não satisfeitas continua a aumentar. Ouçam, no entanto, o que o sector público pode pagar. Ele pode permitir-se gastar milhões de milhões em cortes de impostos que premeiam os 1% mais ricos sob o nome hipócrita de "estimulo económico". Pode gastar nas forças armadas muitas vezes mais do que o conjunto de todos os possíveis estados inimigos dos EUA, proporcionando um volumoso subsídio ao sector corporativo da alta tecnologia, incluindo milhares de milhões em armas e sistemas de "defesa" que não têm contrapartida significativa em qualquer ameaça real a que o povo americano possa estar sujeito. Pode dispor de centenas de milhares de milhões ou talvez mais de mil milhões de dólares com a invasão e ocupação de um país distante e devastado que apresenta um risco mínimo aos EUA ou mesmo para os seus vizinhos. E claro está, que se pode incapacitar e encarcerar uma boa parte de sua população, maior do que qualquer outra nação na história alguma vez já o fez, e gastar ainda centenas de milhões todos os anos em várias formas de corporações de sistemas de seguros de saúde e outros subsídios públicos rotineiros para a iniciativa "privada". Em resumo, o sector público americano é fraco e com constrangimentos monetários quando se trata de levar a democracia social até ao povo, mas essa situação inverte-se quando é para atender às necessidades dos ricos, da disparidade racial e do império. É importante termos presente esta distinção quando ouvimos pessoas como o republicano, defensor da redução dos impostos e estratego político, Grover Norquist, dizer que o seu objectivo -- e aqui cito Norquist – "é, em vinte e cinco anos, reduzir à metade o governo, reduzi-lo até um tamanho que o possamos afogar na banheira". Quando Norquist e os seus seguidores dizem que querem "matar à fome o mostro" do governo, eles dirigem os seus objectivos para algumas partes mal-nutridas do "governo", de um modo mais enérgico do que para outras. Eles estão muito preocupados em desmantelar as partes do sector publico que satisfazem as necessidades sociais e democráticas da maioria não abastada da populaça americana. Eles pretendem destruir aquilo que o recente sociólogo francês Pierre Bordieu chamou de "a mão esquerda do estado", isto é, os programas e serviços que encarnam as vitórias ganhas através de lutas passadas na procura da justiça e da igualdade. Eles querem preservar a mão direita do estado, as partes que fornecem serviços e segurança médica aos poucos privilegiados, e distribuir punições ao pobre utilizando o machado do orçamento. Os seus desejos estão agora a ser identificados. Debaixo da pressão de uma inexorável campanha política e ideologicamente bem-apoiada, conduzida às suas formas mais extremas por republicanos radicalmente regressivos e repressivos como Norquist, Newt Gingrich, e Karl Rove, o sector público está a ser esvaziado das suas positivas funções sociais e democráticas. Ele está cada vez mais a reduzir-se às funções de policiamento e de repressão, expandindo-se por caminhos, que estão para além da simples coincidência, e que são dirigidos para o assalto aos apoios e programas sociais. O objectivo é criminalizar e aprofundar a desigualdade social e os problemas sociais correspondentes, por meio de políticas auto-cumpridas de discrepância racial (racista), de vigilância maciça, de aprisionamento, e de encarceramento -- uma cópia perfeita de pátria dirigida para a militarização da discrepância racial (racista), do império global dos EUA e dos problemas subjacentes de âmbito social, político e económico. A bem organizada campanha conduzida pela direita para "matar à fome" a mão esquerda do governo, produz instrutivas disparidades na cobertura das notícias correntes. A media dominante cobriu o terrível "problema" que representa o suposto inchaço dos encargos com a assistência pública às famílias, concluindo que se tornaram de tal maneira insuportáveis, que será praticamente inevitável a penalização do "primeiro emprego" e das "reformas da assistência social" por volta de meados dos anos 90. No entanto os enormes problemas da sociedade e correspondentes questões orçamentais colocados por um maciço encarceramento, pela dispendiosa expansão dos serviços prisionais, pela gestão da liberdade condicional e do funcionamento dos tribunais e pelas correspondentes necessidades para retirar as pessoas do estigma prisional e criminal das margens da sociedade para as reintroduzir no mercado de trabalho e nas restantes áreas da sociedade civil, não são tidos em conta nas comparações usualmente feitas. Os media apenas evocam preocupações menores, não as relacionando com as comunidades negras, que são precisamente a mais atingidas pelas autoridades de justiça criminal dos EUA. A LIBERTAÇÃO DO MERCADO X ESTADO VILÃO O aumento da "discrepância racial no encarceramento maciço" também põe em causa o quarto grande mito americano, fortemente relacionado com o terceiro atrás referido. Esta lenda reivindica que, em termos políticos e ideológicos, o conflito dos dias de hoje situa-se entre a glória e a lógica do aumento da liberdade capitalista do suposto "mercado livre" por um lado, e por outro, a escuridão, o decrépito e decadente sector público. "O mercado", dizem-nos reiteradamente, é a resposta para os problemas de sociedade. Ela é muito diferente do inerentemente mau, irresponsável, e autoritário Estado que suprime a "liberdade" virtuosa de comércio irrestrito e de investimento -- o mundo magnífico da livre circulação de artigos, capital, e moeda. Este é um dos grandes contos de fadas dos nossos tempos. O conflito na política nacional real que importa hoje, assim como importou no começo da República e desde então para cá, não está entre o estado/política e o mercado/economia. Está entre um tipo (aristocrático e autoritário) de política pública e economia política, e outro tipo (social e democrático) de política pública e economia política. O primeiro tipo de política serve os interesses dos poucos privilegiados e que castiga os pobres como também muitos outros. Exclui aqueles que se encontram no fundo, exacerbando a sua dor e o seu estigma. O segundo tipo, mais à esquerda, serve as necessidades sociais e democráticas da maioria, servindo especialmente aqueles que são os mais prejudicados e os mais necessitados de ânimo e assistência -- em nome da equidade e da justiça. A situação explosiva da população de encarcerados e ex-infractores da América é uma excelente exemplo. Ninguém seriamente interessado em melhorar a condição da hiper-criminalização crescente da população urbana negra pode alguma vez acreditar que este grupo de pessoas irá um dia ser útil ao "mercado livre". Este mercado livre, "mas nem tanto", não está isento de responsabilidades na incapacitação que afectou as comunidades de bairro suburbanas, levando a que muitos dos seus residentes se entregassem ao mundo do "crime" (especialmente ao uso e comércio de droga) e, em primeiro lugar, ao sistema de justiça criminal (com a ajuda de uma atitude policial e condenatória racialmente desigual). Profundamente condicionado e moldado pela política pública do estado-capitalista ("comercial" e não-industrial), ele eliminou postos de trabalho na indústria que serviam de sustento àquelas comunidades, negando assim o acesso das pessoas das áreas pobres o acesso às comunidades mais abastadas onde se concentra o emprego e o conhecimento (a menos que também esses tenham desaparecido com a deslocalização para o estrangeiro, ou que tenham simplesmente sido eliminados). Paralelamente verifica-se que o mercado "livre" tem muito pouco para oferecer aos negros dos bairros pobres com antecedentes criminais. Esta população requer por isso intervenção pública no sentido de envolver e compensar directamente o seu trabalho e/ou encorajar ou convencer os empregadores na sua contratação. Esta é a terrível situação das pessoas deixadas para trás nas hiper-segregadas, profundamente empobrecidas, e selvaticamente desindustrializadas comunidades, originada pela extensa discrepância racial, pela globalização, e pelo apelo automático a uma agressividade pública e a uma intervenção governamental. A única questão pertinente é saber que tipo de intervenção vai ser adoptada: de esquerda ou de direita. Ora o encarceramento maciço racista, lançado sob a égide da ineficaz e dispendiosa Guerra à Droga, é precisamente uma intervenção de extrema direita, com implicações fascistas que podem aprofundar os ciclos interrelacionados de pobreza, desigualdade racial, violência, crime, desestabilização dos bairros pobres, abuso de drogas e desespero. Esta situação promove a perigosa criminalização das questões sociais, constituindo um espelho perfeito na projecção destes aspectos na política externa dominante do país, que se tem caracterizado pela exacerbação das crises globais e aprofundamento da violência através da militarização do mundo, intervindo em assuntos políticos e sociais. E funciona, é bom repetir, como método de inversão racial das reparações, transferindo uma parte substancial da riqueza das comunidades negras para as brancas, das quais temos ainda de esclarecer a sua situação estatística. OUTROS MITOS Existem outros mitos nacionais que se devem incluir numa discussão mais alargada a fim de se encontrarem meios para avivar as contradições da narrativa nacional dominante acerca do "encarceramento maciço racialmente discrepante", tais como:
 a noção de que um trabalho pesado e uma acção moral pessoal são factores determinantes para o estabelecimento da condição de vida pessoal de cada um;
 a ideia de que "o elemento criminoso" funda o seu comportamento numa análise de custo benefício "racional" de resultados, pesando a probabilidade e a severidade do castigo às suas decisões de cometer ou não acções ilegais;
 a noção de que o crime é implacável (um apêndice do tipo de confronto emocional "felicidade-violência" utilizado pelos media);
 a noção de que a "punição funciona" num esforço para travar o abuso da substância de problema;
 e a ideia falsa de que todos os americanos possuem igual autoridade face aos seus direitos e que estão igualmente sujeitos aos castigos infligidos pelo estado.
Esta última noção (há muito tempo ridicularizada pelo proletariado americano quando diz que o "dinheiro manda e os outros obedecem", tanto dentro como fora da sala de tribunal), é difícil de sustentar quando (a) as corporações faltosas são punidas muito ao de leve pelas suas práticas ilegais que eliminaram postos de trabalho e rapinaram poupanças de toda uma vida de dezenas de milhares de americanos (ou mais); enquanto (b) centenas de milhares de negros e de pobres americanos passam, de uma forma desproporcionada, tempos difíceis sob condições chocantes (inclusive com a ameaça endémica de estupro) devido a ofensas não violentas e especialmente relacionadas com os narcóticos.

POLÍTICA, IDEOLOGIA, E DISCURSO Existe um pequeno mistério ou mesmo um equívoco sobre o que se pode e deve fazer -- segundo uma perspectiva inclusiva minimamente social, democrática e racial -- para romper com o círculo vicioso do encarceramento maciço racialmente discriminatório. O padrão da ladainha "liberal" das soluções políticas minimamente razoáveis, está carregado de ideias que definem as questões básicas em termos sociais, democráticos, orçamentais, e de bom senso, incluindo:
1 a revogação de leis de condenação obrigatória, e o estabelecimento de novas estruturas para revisão e reformulação das condenações do estado levando os juizes a um uso mais efectivo de opções correccionais;
2 a criação de novos apoios e responsabilidades na prisão e pós-prisão para os prisioneiros e ex-prisioneiros libertados;
3 o fim da actuação de acordo com um perfil racial nas acções de tráfico, do policiamento de rua, da vigilância e das práticas racialmente díspares na acusação e condenação de casos de droga e outros tipos de ofensas;
4 a criação de uma nova focalização política e uma nova acção governamental que permita coordenar a transição da prisão para a vida laboral;
5 a eliminação de barreiras dispensáveis, e a criação de novas possibilidades e incentivos para empregos adequados aos ex-condenados;
6 investir em tratamento em vez de encarceramento. Num estudo exaustivo de pesquisa em ciência social que foi escandalosamente ignorado por todos, menos por alguns políticos nos EUA, durante quase uma década, a corporação conservadora RAND, chegou à conclusão de que cada dólar adicionalmente investido no tratamento do abuso de narcóticos, poupa aos contribuintes 7,46 dólares nos custos relacionados com o crime, a violência, e a produtividade perdida.
É evidente que a política é importante, mas é também uma grande parte do problema -- a razão porque estes passos políticos minimamente civilizados são tão difíceis de implementar -- porque ela é moral e ideológica, reflectindo e relacionando a criação e a manutenção das narrativas nacionais dominantes. Para retroceder a ineficiente e dispendiosa estratégia a que "Open Society" chama de "super encarceramento", nós necessitamos de políticas "firmes", especificas e cuidadosamente tratadas. Nós precisamos também de mudar -- ou melhor, de aprender a analisar de modo critico -- a superabundância dos venerados impingidores de regras que são os reaccionários shows televisivos e coberturas noticiosas, e acabar com o seu costume sórdido relacionado com a culpabilização das vítimas da sua radical experiência em "racializar o encarceramento maciço". O surgimento da "Nação Encarceramento" é uma deriva radical do estado, fortemente racista, e em parte mesmo fascista, e não o resultado directo de uma resposta trágica e inevitável do estado ao terrível comportamento de um numeroso "elemento criminoso" que precisa de ser punitivamente condicionado para agir racionalmente perante oportunidades supostamente importantes que irá enfrentar no glorioso mundo sem-estado, do daltónico capitalismo de mercado. No esforço a desenvolver para matar este monstro prisional de múltiplas cabeças, precisamos primeiramente nos libertar da tendência de não envolver ortodoxias doutrinais, e depois devemos de reavivar uma compreensão básica da necessidade de termos um governo com uma atitude construtiva e positiva (mão esquerda) através de uma acção decidida nas barreiras raciais socialmente construídas, de classe, de género e poder. Nós precisamos de retomar as rédeas das nossas vidas políticas e das nossas imaginações sociais e retira-las das mãos dos aristocráticos e autoritários bem-estabelecidos, que tomaram posse do discurso e da política pública, e os transformaram em instrumentos de privilégio e repressão. Os riscos não são pequenos, pois na presente situação, estamos em direcção a um Mundo Novo Heróico onde a guerra racista americana permanente e o império no estrangeiro, alimentam e reflectem no país a desigualdade racista e a repressão permanentes, ambos impostos pelas curiosas palavras de liberdade, mercado, e democracia.

Paul Street
Vice-presidente da "Research and Planning at the Chicago Urban League" e autor de "Empire Abroad", de "Empire and Inequality: America and the World Since 9/11", de "Still Separate, Unequal: Race, Place, Policy, and the State of Black Chicago " e de "The Vicious Circle: Race, Prison, Jobs, and Community in Chicago, Illinois, and the Nation"

http://resistir.info

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