quinta-feira, junho 01, 2006

O FIM DO DIREITO

O Capitalismo exige hoje um ritmo que os seus princípios formais já não conseguem acompanhar. Não foram feitos para esta velocidade. O desenvolvimento das forças produtivas e as formações sociais colidem, ou entram mesmo em colapso, haja em vista as economias em colapso por todo o mundo, seja em África, na América Latina ou no Leste da Europa. O que se perfila não é a universalização da Democracia e do Direito, mas a sua limitação. O sistema triunfante perde cada vez mais terreno e revela-se cada vez mais como decadente. O populismo da Direita que também grassa no centro do Capitalismo Democrático, a redução das forças democráticas tradicionais a nada (hoje a Itália, amanhã a França, depois de amanhã onde se verá), mostra claramente o fenómeno de esfacelamento das Democracias Ocidentais e dos seus princípios burgueses formais. O Direito (sob a forma de legislação e de aplicação da lei) não consegue aguentar este ritmo de desenvolvimento social. Ele não é apenas incapaz (sempre foi) de conformar a realidade, mas também crescentemente incapaz de a administrar. Se até ao presente ele permaneceu ao abrigo, agora é sujeito a outras exigências e regularmente submetido. Bem podem os seus defensores na Política, na Burocracia e na Ciência esforçar-se, o Direito já não encontra nenhuma possível integração. Leis utilizáveis – ou seja, leis que consagram um consenso social relativamente não problemático e que podem regular a sociedade e com base nas quais os indivíduos podem agir – são já muito difíceis de elaborar e de executar. Cada vez mais, as leis, no próprio momento da sua entrada em vigor, estão já antiquadas, imprestáveis e carecidas de alteração. Os grandes projectos estão condenados ao fracasso, mas os pequenos passos também. O Capitalismo precisa, como notava Max Weber, "de um Direito que se possa calcular como uma máquina". E isto cada vez menos se pode garantir. O fracasso da lei já está, muitas vezes, programado de antemão, é simplesmente inevitável. Argumentos de Advogado impregnam hoje toda a discussão jurídica. Um público assombrado encontra-se perante uma matéria que já não pode ser observada na sua complexidade pelos tradutores-intérpretes do Direito. O resultado não é a segurança jurídica, mas a arbitrariedade. As leis têm cada vez mais dificuldade em ser levadas à prática. O que é válido não o é incondicionalmente. O Direito perde o seu carácter de garantia e, com isso, perde-se a si próprio. Afirmações como "com a dupla codificação do sistema jurídico será conseguida a segurança de que quando se está no âmbito do Direito se está no domínio do direito e não do torto" têm de ser hoje vistas como ignorância crassa. O princípio "maxima caritas lex" (1) tornou-se obsoleto. O credo comum da burguesia e do movimento operário (apesar de todas as diferenças) já não é sustentado por ninguém. Mais Direito não cria mais direitos. Mas menos Direito também não. Não estão à vista soluções deste dilema. Esta crise do Direito não diz respeito apenas à disciplina jurídica, como crise interna; ela é um fenómeno social. Também não pode ser resolvida pelo intrumentário jurídico. O Estado de Direito não é quebrado por quaisquer inimigos externos, mas pela sua própria lógica. Já não nos podemos abandonar ao Direito; somos abandonados pelo Direito. O Direito não está apenas classicamente distorcido, ele encontra-se substancialmente em processo de decomposição. O slogan "direitos iguais para todos" não está apenas socialmente condicionado; é cada vez mais estruturalmente impossível. Não se trata de uma arbitrariedade intencional – quem hoje clama contra a "justiça de classe" ou a "burocracia" atinge apenas fenómenos de segunda grandeza – mas de já não se conseguir margem de manobra. O Direito encontra-se globalmente à deriva. O Direito não pode também tornar-se mais próximo das pessoas, mas é cada vez mais assunto de Advogados, transformada na ciência oculta de académicos esotéricos, de operadores, de procuradores e de trapaceiros jurídicos. As propostas de reforma, venham elas da média, da burocracia, da ciência ou da política, têm escasso valor. De guia normativo, o Direito transformou-se em labirinto ou mesmo selva de simulações e pretensões contraditórias que encontram a sua expressão atrabiliária nas mais diversas leis e regulamentos. A anomia do Direito é simplesmente inevitável. O próprio crescimento exponencial da produção normativa permite concluir por um amargo fim do Direito. Embora aumente, falha. Num cego crescendo, todas as realidades são reguladas e desreguladas e a estafada polémica sobre mais Estado ou mais mercado é de novo instalada e decidida de acordo com cada conjuntura. O jogo entre regulação e desregularão é cada vez mais irritante. Mas isso nada muda no sentido do desenvolvimento social. De tal não foram capazes nem o Direito nem a Política, mesmo nos seus melhores tempos. Regular, como o próprio nome indica, não deve confundir-se com planeamento social. "O Direito, na sua imediatismo, é a propriedade" escreveu Hegel. Precisamente, a propriedade extingue-se com o desenvolvimento do Capitalismo. E de diversos modos: seja como socialização negativa das consequências sociais da produção, seja pela socialização dos indivíduos através do dinheiro e da troca, seja pela crescente monopolização, seja pela curta longevidade das mercadorias, seja pela não continuidade do valor de troca no campo da micro-electrónica, etc. A propriedade caracteriza-se, simultaneamente, pela disponibilidade da coisa e pela exclusão de outros. Ambas são cada vez mais impossíveis e sem sentido. O que vivemos é uma socialização sem socialismo. Nenhuma lei poderia reintroduzir o antigo Direito. Normalidade e legalidade esboroam-se cada vez mais, cada vez é mais difícil produzir igualdades perante a lei. A realidade diverge não apenas como o ser do dever-ser, mas tende para se totalizar para além deles. Ser e dever-ser coexistiam no Estado de Direito burguês como diferença de facto, mas reconduzidos também a uma identidade idealista fictícia. Estavam inextrincavelmente complicados. Mesmo que não pudessem coincidir nas suas expressões exteriores, eram regularmente reconduzidos pelo Direito – a categoria que os ligava – à congruência. Até esta clássica capacidade de aplicação do Direito se tornou hoje frágil. O Ser é repelido pelo Dever-Ser, sem que a necessária atracção do Direito possa já ser exercida. O Direito tem cada vez menos força para conseguir desencadear esta força de atracção que o constitui. A outrora forte aliança entre Ser e Dever-Ser rompe-se: o Ser, ou, melhor, a realidade quer outro Dever-Ser e por isso o Direito queixa-se permanentemente da actual produção de identidades, precisamente porque elas se tornam cada vez mais voláteis. Questione-se apenas quem ou o quê vem render o Direito. Com o declarado esvaziamento do princípio formal do Ocidente não se consegue ganhar nada; pelo contrário, sem alternativas positivas, a sua superação não é mais do que a sua pura eliminação, ou seja, a falta de Direito. Nesta perspectiva, uma conquista civilizacional não se transformaria em algo de novo, mas reduzir-se-ia ao seu fulcro. E a forma mais elementar do Direito é a força. Para o uso da força encontram-se hoje à disposição – sejam eles sicilianos, colombianos ou russos – instrumentos de barbárie como nunca antes. O que passa então a valer como Direito é determinado por formas mafiosas da organização social.
O Direito foi uma das muitas muletas que o Homem utilizou no processo da Hominização. Assim considerado, o Direito é, por um lado, expressão de um elevado desenvolvimento histórico, mas por outro lado também a súmula de uma carência civilizacional. Em ordens para além da coacção nenhum Direito seria possível. Os direitos subjectivos só são necessários onde eles não aparecem como evidências objectivas. Os "direitos" à vida, à alimentação, à habitação, etc. são, em si mesmos, absurdos; eles só fazem sentido num sistema de relações sociais que, por sua própria tendência, não pressupõe como evidentes estes elementos básicos da vida humana, mas, pelo contrário, os põe objectivamente em causa. Nós dirigimo-nos para a sociedade sem Direito. As nossas capacidades impelem-nos para aí. Os governantes fazem as suas leis a partir daí. O Direito pressente, pela primeira vez, o seu carácter histórico limitado, sente o seu fim crepuscular. O que vem a seguir, e quais possam ser os princípios normativos pós-jurídicos, está, de momento, para além do nosso horizonte de conhecimento. Mas, de qualquer modo, não poderá ser apreendido com os conceitos de Estado e de Democracia, Lei e Direito. Não temos neste momento termos positivos, nem sequer conceitos auxiliares, para o descrever e o concretizar. Eles só se deixarão revelar a partir dos movimentos sociais. O que se pede não é outra legalidade e outro Direito, mas alternativas ao Direito e à Lei. Elas não serão não Direito, mas pós-Direito. O grotesco da História pode assim formular-se: quem quiser salvar o nível civilizacional, as conquistas do Ocidente – e aqui há, no melhor sentido da palavra, muita coisa a guardar – tem de colocar-se no plano da ultrapassagem do princípio formal do Ocidente. Nada pode ser já como antes. Este é precisamente o ponto que tem de se atingir, se não se quiser deixar a "superação" da crise à Direita moderna de Berlusconi ou de Haider. Esta compreendeu instintivamente a crise da Democracia e do Parlamentarismo e do Estado Social de Direito, e quer utilizá-la cada vez mais abertamente para conceitos ditatoriais. A renúncia de Haider à Democracia Representativa e a sua defesa do Estado de Direito burguês apontam nesta direcção. Tolos são aqueles que se lhe opõem, com modéstia republicana, só defensivamente, ao mais uma vez mostrarem elevada consideração, ou mesmo se rejubilarem, pelos princípios da Democracia burguesa. 1918 é irreversível, não pode repetir-se uma segunda vez. A sociedade exige o novo, e se não quiser entretanto ser conquistada pelo antigo não pode entrincheirar-se atrás dos valores democrático-burgueses. De qualquer forma, estes vão por água abaixo.
P.S. Cada época da história entende-se como a última. Anders chamou com pertinência a este desejo tão indispensável de eternidade o "Platonismo dos idiotas". Sobre a metafísica dos juristas corporativos, escreve: "Em última análise, eles estão profundamente afectados pelo facto de existirem mudanças que estão a alterar o mundo. São os inimigos figadais da História; demitidos do tempo, exigem que o mundo continue a ser aquilo que era, que se mantenha como é: estagnado para que a validade rígida das normas jurídicas e a validade por elas assegurada dos "pacta servanda" se correspondam."
Maxima caritas lex. A melhor caridade é a lei.
Franz Schandl www.krisis.org

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