Há uma atitude perante os livros em Portugal que me parece desastrosa culturalmente. Chamo a essa atitude a "sacralização do livro". E eu penso que é preciso precisamente o oposto: é preciso desacralizar o livro e a leitura. A sacralização do livro e da leitura tem expressão num certo discurso empolado, pastoso, de um romantismo bacoco e ultrapassado. Quando se fala de livros são sempre "verdades inatingíveis", "desocultações ocultantes", "dores de alma necessariamente vividas desde logo no texto escrito a sangue" e parvoíces deste género. As pessoas minimamente inteligentes, que não gostam deste tipo de discurso emproado, olham por isso com desconfiança para o livro, que lhes surge como um objecto sacralizado. A leitura não é encarada como algo normal e útil e divertido e que nos alarga horizontes e nos torna mais lúcidos, mas como um sacrifício que só vale a pena enfrentar se em contrapartida pudermos ir para a televisão ou para as rádios ou para os jornais alardear o conhecimento dolorosamente alcançado do Grande Panteão dos Doentinhos da Alma.
É preciso criar alternativas a este discurso tonto. É preciso que as pessoas saibam que há livros de tudo, bons, maus, e mais ou menos, sobre sexo, filosofia e ideias, sobre ciência e relações humanas, sobre angústias e alegrias, sobre vivências e história. Infelizmente, a imprensa cultural portuguesa, na sua maior parte, continua a sacralizar o livro, rodeando-o de um discurso hermético tonto, desencorajante e terrorista.
A razão de ser deste discurso não é senão o puro atraso cultural. Leia-se com atenção as inúmeras críticas na imprensa portuguesa e compare-se com as críticas que surgem na boa imprensa estrangeira. Ou experimente-se a ler a crítica a um livro que se leu e se conhece bem — e será evidente que na maior parte dos casos os autores das críticas não compreenderam o livro, não destacam o fundamental e são incapazes de explicar de que trata o livro. Pouco mais fazem do que pavonear ideias soltas. Aliás, acontece muitas vezes que as críticas aos livros são ocas, palavrosas e difíceis de compreender, ao passo que os livros sob escrutínio são claros, elegantes e acessíveis.
É surpreendente o tipo de livros que são escolhidos pelos críticos. O panorama editorial português não é nada bom, mas a julgar pelas críticas que vão surgindo na imprensa cultural portuguesa, é péssimo. Por que razão os melhores livros de divulgação científica passam despercebidos, por exemplo, ao passo que qualquer ensaio bacoco de contornos difusos tem imediatamente honras de primeira página? Por que razão se dá tanto destaque ao romance (tantas vezes de cordel pretensioso) e tão pouco aos ensaios sólidos de divulgação das disciplinas fundamentais do conhecimento? Talvez porque em Portugal a "cultura" seja ainda sinónimo de literatice bacoca? Talvez porque em Portugal Física e Filosofia, História e Geografia não sejam "cultura"? A "cultura" é uns autores enfezados a falar das suas experiências transcendentes à beira de um urinol público? Autores cuja ignorância das disciplinas fundamentais do conhecimento é grotesca, autores que pensam que o universo é enorme porque tem milhares de estrelas?
Enfim, desculpe-me o leitor o desabafo, mas gostaria muito de ver em Portugal nascer uma imprensa cultural diferente: despretensiosa, inteligente, saudável. Felizmente, começam a aparecer alguns críticos com estas qualidades, que escolhem bons livros e escrevem boas críticas. Infelizmente, são uma gota de água de sensatez num oceano de tontice.
Outra vez o livro sagrado
Pacheco Pereira publicou no seu blog (Abrupto) algumas notas sobre bibliotecas que frequentou na sua juventude. Os seus leitores reagiram com memórias mil de outras tantas experiências fecundas, transcendentes e saudosas das bibliotecas nacionais. Para efeitos de equilíbrio e completude, vou deixar aqui o meu testemunho singelo sobre as bibliotecas nacionais. E é muito simples: nunca as frequentei, porque nunca encontrei nelas nada que valesse realmente a pena ler: só bolor e livros com ideias velhas. Os livros que li, comprei-os ou foram-me emprestados pelos amigos — poucos. Serei eu uma excepção? Ou terei gostos demasiado esquisitos para não me agradarem os grandes autores embibliotecados nos bolores nacionais? Desconfio que se trata apenas de ser um tudo nada selectivo e desconfiar da pose falsamente intelectual do amor indiscriminado aos livros. Eu tenho amor é às ideias que estão nos livros, e não a todas; mas não tenho amor algum aos livros. Os livros são apenas papéis pintados com tinta. Daí que, ao contrário de um leitor do Abrupto (MJA), que declara "Nunca consegui deitar um livro fora: acho um crime", eu me farte de deitar livros fora. Quase todos os meses mando livros para o lixo. E só posso pensar que alguém que não deita livros fora é porque não lê muitos livros; pois a maior parte dos livros que se publicam são uma choldra. (Isso devia ser evidente dado que até eu já publiquei livros.) E por que razão haveria de ser de outro modo? A maior parte dos quadros que se pintam são uma porcaria, e a maior parte da música e da filosofia que se faz é uma miséria. Na verdade, a maior parte de tudo (incluindo editoriais como este e blogs) é uma porcaria. Daí que seja necessário com os livros, como com tudo na vida, essa capacidadezinha que dá um bocado de trabalho: discernimento. O amor aos livros é inversamente proporcional ao desenvolvimento cultural das sociedades. Na sociedade portuguesa o livro é encarado como um adereço sagrado da vida culta e o problema é que na vida verdadeiramente culta não pode haver adereços sagrados: há inovação, espírito crítico e independência mental; quando as ideias andam de gravata, em livros bolorentos, são fraquinhas e tolas. Daí que nas sociedades verdadeiramente cultas, onde se produziram e continuam a produzir algumas das ideias mais importantes da humanidade, não se encontre esta atitude de sacralização do livro. Por isso escrevi no editorial "O Livro Sagrado" que precisamos é de dessacralizar o livro, e não de cantar encómios pacóvios ao livro. Como ninguém leu esse editorial, aqui estou a repetir a mesma coisa. Claro que ninguém lê à mesma, mas sempre alivia o espírito.
É preciso criar alternativas a este discurso tonto. É preciso que as pessoas saibam que há livros de tudo, bons, maus, e mais ou menos, sobre sexo, filosofia e ideias, sobre ciência e relações humanas, sobre angústias e alegrias, sobre vivências e história. Infelizmente, a imprensa cultural portuguesa, na sua maior parte, continua a sacralizar o livro, rodeando-o de um discurso hermético tonto, desencorajante e terrorista.
A razão de ser deste discurso não é senão o puro atraso cultural. Leia-se com atenção as inúmeras críticas na imprensa portuguesa e compare-se com as críticas que surgem na boa imprensa estrangeira. Ou experimente-se a ler a crítica a um livro que se leu e se conhece bem — e será evidente que na maior parte dos casos os autores das críticas não compreenderam o livro, não destacam o fundamental e são incapazes de explicar de que trata o livro. Pouco mais fazem do que pavonear ideias soltas. Aliás, acontece muitas vezes que as críticas aos livros são ocas, palavrosas e difíceis de compreender, ao passo que os livros sob escrutínio são claros, elegantes e acessíveis.
É surpreendente o tipo de livros que são escolhidos pelos críticos. O panorama editorial português não é nada bom, mas a julgar pelas críticas que vão surgindo na imprensa cultural portuguesa, é péssimo. Por que razão os melhores livros de divulgação científica passam despercebidos, por exemplo, ao passo que qualquer ensaio bacoco de contornos difusos tem imediatamente honras de primeira página? Por que razão se dá tanto destaque ao romance (tantas vezes de cordel pretensioso) e tão pouco aos ensaios sólidos de divulgação das disciplinas fundamentais do conhecimento? Talvez porque em Portugal a "cultura" seja ainda sinónimo de literatice bacoca? Talvez porque em Portugal Física e Filosofia, História e Geografia não sejam "cultura"? A "cultura" é uns autores enfezados a falar das suas experiências transcendentes à beira de um urinol público? Autores cuja ignorância das disciplinas fundamentais do conhecimento é grotesca, autores que pensam que o universo é enorme porque tem milhares de estrelas?
Enfim, desculpe-me o leitor o desabafo, mas gostaria muito de ver em Portugal nascer uma imprensa cultural diferente: despretensiosa, inteligente, saudável. Felizmente, começam a aparecer alguns críticos com estas qualidades, que escolhem bons livros e escrevem boas críticas. Infelizmente, são uma gota de água de sensatez num oceano de tontice.
Outra vez o livro sagrado
Pacheco Pereira publicou no seu blog (Abrupto) algumas notas sobre bibliotecas que frequentou na sua juventude. Os seus leitores reagiram com memórias mil de outras tantas experiências fecundas, transcendentes e saudosas das bibliotecas nacionais. Para efeitos de equilíbrio e completude, vou deixar aqui o meu testemunho singelo sobre as bibliotecas nacionais. E é muito simples: nunca as frequentei, porque nunca encontrei nelas nada que valesse realmente a pena ler: só bolor e livros com ideias velhas. Os livros que li, comprei-os ou foram-me emprestados pelos amigos — poucos. Serei eu uma excepção? Ou terei gostos demasiado esquisitos para não me agradarem os grandes autores embibliotecados nos bolores nacionais? Desconfio que se trata apenas de ser um tudo nada selectivo e desconfiar da pose falsamente intelectual do amor indiscriminado aos livros. Eu tenho amor é às ideias que estão nos livros, e não a todas; mas não tenho amor algum aos livros. Os livros são apenas papéis pintados com tinta. Daí que, ao contrário de um leitor do Abrupto (MJA), que declara "Nunca consegui deitar um livro fora: acho um crime", eu me farte de deitar livros fora. Quase todos os meses mando livros para o lixo. E só posso pensar que alguém que não deita livros fora é porque não lê muitos livros; pois a maior parte dos livros que se publicam são uma choldra. (Isso devia ser evidente dado que até eu já publiquei livros.) E por que razão haveria de ser de outro modo? A maior parte dos quadros que se pintam são uma porcaria, e a maior parte da música e da filosofia que se faz é uma miséria. Na verdade, a maior parte de tudo (incluindo editoriais como este e blogs) é uma porcaria. Daí que seja necessário com os livros, como com tudo na vida, essa capacidadezinha que dá um bocado de trabalho: discernimento. O amor aos livros é inversamente proporcional ao desenvolvimento cultural das sociedades. Na sociedade portuguesa o livro é encarado como um adereço sagrado da vida culta e o problema é que na vida verdadeiramente culta não pode haver adereços sagrados: há inovação, espírito crítico e independência mental; quando as ideias andam de gravata, em livros bolorentos, são fraquinhas e tolas. Daí que nas sociedades verdadeiramente cultas, onde se produziram e continuam a produzir algumas das ideias mais importantes da humanidade, não se encontre esta atitude de sacralização do livro. Por isso escrevi no editorial "O Livro Sagrado" que precisamos é de dessacralizar o livro, e não de cantar encómios pacóvios ao livro. Como ninguém leu esse editorial, aqui estou a repetir a mesma coisa. Claro que ninguém lê à mesma, mas sempre alivia o espírito.
http://www.criticanarede.com/ed35.html
Desidério Murcho
Desidério Murcho
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