terça-feira, julho 04, 2006

O oposto do copyright não é necessariamente o caos

Entrevista a António Cunha, co-organizador do Festival Copyriot


O Copyleft é um movimento que defende a flexibilização das leis de propriedade intelectual e encara os utilizadores de conteúdos como potenciais criadores. Por oposição ao copyright, que autoriza o uso de conteúdos mediante o pagamento de direitos de autor, o princípio do Copyleft baseia­‑se na livre utilização, difusão e até modificação da obra original. Onde o primeiro diz “proibido”, o segundo afirma “permitido”.

A ideia, posta em prática desde há alguns anos em vários países, só recentemente tem vindo a ser divulgada em Portugal. António Cunha, 36 anos, tem sido um dos seus impulsionadores. Co-organizador do Festival Copyriot, que decorreu em Lisboa e no Porto no final de Abril – naquela que foi a primeira tentativa para dar a conhecer este conceito –, explica nesta entrevista a origem do Copyleft, os princípios que o orientam e aponta alguns caminhos para o futuro deste movimento no país.

Em que contexto surge o Copyleft?

O Free Documentation License (Licença de Documentação Livre), ou Copyleft, inspira-se no movimento do software livre, iniciado por um professor do Massachusetts Institute of Technology que, em meados dos anos oitenta, desenvolveu uma licença denominada General Public License aplicada à tecnologia informática. Mais tarde, alguns programadores informáticos, baseados nesse conceito, criaram programas e sistemas operativos de utilização livre como o Linux ou o Mozilla.

Este princípio permite que os programas de software criados sob esta licença possam ser modificados e distribuídos livremente. Apesar de ter surgido inicialmente aplicado à documentação do software livre, o Copyleft ultrapassou esse limite e estendeu-se entretanto a outro tipo de conteúdos, nomeadamente artísticos, literários e musicais.

Quais são os seus princípios orientadores?

O Copyleft consiste numa licença que permite a livre reprodução, divulgação e alteração de qualquer tipo de criação cultural ou tecnológica, garantindo, apesar disso, o reconhecimento da sua produção e autoria.

Desta forma, ao contrário do que acontece com o copyright, que é um sistema fechado de direitos de autor, torna­‑se possível a sua difusão junto de um maior número de pessoas.

Trata-se, no fundo, de uma ideia que concebe todos os utilizadores da cultura como potenciais criadores, abdicando dos direitos de propriedade em favor da livre circulação das criações intelectuais.

Mas, segundo esta lógica, os autores não perdem dinheiro?

Não necessariamente, porque o Copyleft é constituído por diferentes tipos de licenças que permitem ao autor estabelecer os usos que autorizam e os que limitam a sua obra.

Estas licenças estão consagradas pela Criative Commons, uma organização sem fins lucrativos fundada em 2001 nos Estados Unidos por Lawrence Lessing, professor de direito da Universidade de Stanford e defensor da extensão das leis de propriedade intelectual. Quando o autor escolhe a licença, decide se alguém pode ou não fazer uso comercial da sua obra, se a pode modificar ou se a obra derivada deve ou não ter o mesmo tipo de licença relativamente à original.

No caso de ela ser comercializada, existe a obrigação de fazer referência aos autores e deixar claro que qualquer alteração produzida a partir do original tem de ser libertada para a sociedade de acordo com o mesmo princípio. Não é possível, assim, partir do produto base, fazer uma alteração, patenteá-lo com uma licença “copyright” e vendê-lo sob essa licença.

Mas não se corre esse risco?

Esse risco só ocorre em países onde não existe legislação específica para este tipo de licença, como é o caso de Portugal, onde, no caso de se autorizar a reprodução de um conteúdo através do Copyleft, facilmente alguém se pode apoderar dele e registá-lo em seu nome. Nestas situações, torna-se muito difícil provar a autoria original.

Em outros países onde ela está legalmente consagrada – o Brasil e a Espanha são dois desses exemplos –, corre­‑se exactamente o mesmo risco relativamente ao copyright fechado, isto é, de haver uma utilização indevida da obra sem conhecimento do respectivo autor. Mas aqui, tal como acontece com o copyright, o autor pode, por via legal, desencadear um procedimento criminal contra o infractor.

Tendo em conta os contornos inovadores associados a este conceito, ele tem tido aceitação?

Sim, e a prova é que ele já está em prática em vários países. Ao contrário do que muitas pessoas possam pensar, o oposto do copyright não é necessariamente o caos. O objectivo não é acabar com os direitos de autor. Qualquer pessoa tem legitimidade para escolher a sua actividade e de ganhar dinheiro com isso. O que se propõe é divulgar uma alternativa legal ao actual sistema de propriedade de direitos intelectuais.

Além disso, a facilidade de cópia nos meios digitais torna praticamente inútil o copyright fechado, porque as violações de licença e as cópias sem autorização continuam. Deveria assumir-se que é quase impossível evitá­‑lo e apostar noutro tipo de alternativas.

De uma forma mais abrangente, a filosofia do Copyleft acaba por defender que o conhecimento como tal não pertence a ninguém…

Sim, essa é a questão de princípio que deu origem ao movimento. Se, por absurdo, alguém se lembrasse de patentear o abecedário, passaríamos a pagar para poder escrever. É o que se passa actualmente com algumas descobertas no campo da genética e da agricultura, que deveriam ser do domínio público mas estão nas mãos de algumas empresas. Porém, as bases científicas que deram origem à descoberta de determinados medicamentos ou sementes são fruto de centenas de anos de uma base comum de conhecimento que não deveria poder ser patenteado. Essa base é social. E algo que é do domínio público não pode ser privatizado.

Em que fase está o desenvolvimento do Copyleft em Portugal?

Em Portugal estão ainda a dar-se os primeiros passos. Creio que as licenças Criative Commons foram já adaptadas para a legislação portuguesa.

Sei que foi um dos responsáveis pela co-organização do Festival Copyriot, realizado em Lisboa e Porto no final de Abril. Quais foram os objectivos e, já agora, porquê a adulteração da designação original?

Na língua inglesa “riot” significa sublevação. Copyriot, portanto, no sentido de tentar que este evento constituísse uma sublevação de consciências, de alerta, mostrando que existem alternativas ao copyright e conceitos mais livres de direitos de autor.

Porque actualmente acontecem coisas extraordinárias, como o facto de uma banda não poder actuar se não estiver registada na Sociedade Portuguesa de Autores, ou de pessoas como a Margarida Rebelo Pinto poderem registar o nome de forma a não poderem ser citadas em obras que criticam a sua produção literária.

O objectivo do festival, que inicialmente era para ser exclusivamente musical e acabou por se alargar a outras áreas artísticas, foi o de divulgar esta ideia e, ao mesmo tempo, abrir a porta a pessoas que têm um menor nível de reconhecimento público, dando-lhes a conhecer um meio que possibilita uma divulgação mais alargada por comparação ao copyright e às cadeias de distribuição tradicionais.

Quais são agora os próximos passos?

Apesar de poder falar apenas a título individual, penso que este festival procurou ser o início de um movimento que funcione como uma espécie de observatório e de grupo de pressão, tentando juntar pessoas, despertar atenções, distribuir informação e alertar o público para, entre outras coisas, o ridículo que se torna sempre que alguém se lembra de patentear um nome ou para o perigo que representa uma empresa patentear uma semente.

Por outro lado, é necessário iniciar o trabalho de sensibilização dos criadores artísticos, já que muitas vezes eles acabam por se limitar à lógica dominante apenas por desconhecerem outras alternativas.

http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=4609

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