domingo, julho 02, 2006

O VOTO EM BRANCO

Algumas reflexões suscitadas pelo "Ensaio sobre a Lucidez"

O livro de Saramago é uma denúncia do "terrorismo de Estado" e dosmeios que pode utilizar numa sociedade "democrática": estado de sítio,manipulação da informação, provocações policiais, falsas acusações,detenções arbitrárias, execuções extrajudiciais.O ponto de partida do romance é a súbita e enorme expansão do voto em branco numas eleições legislativas. Hipótese tão plausível como topar o Bin Laden a fazer compras na Rua dos Fanqueiros. O governo, irritado com essa legal, silenciosa e pacífica manifestação de desagrado, trata logo dea elevar à categoria de criminoso acto de desobediência civil. E partepara o processo provocatório e repressivo a que atrás aludimos. Odesenrolar da acção é exposto com mestria e sentido de humor(frequentemente amargo) que de algum modo vai fazendo esquecer afragilidade e carácter artificioso dos eventos iniciais.Sendo o anti-eleitoralismo tema caro à corrente libertária, a ideia deSaramago dificilmente poderia deixar de suscitar algumas reflexões. Paracomeçar por os anarquistas recomendarem a abstenção e não o voto embranco. E decerto o não fazem por considerar o voto em branco maissubversivo do que a abstenção.O voto em branco difere significativamente da abstenção e do voto nulo porser uma explícita recusa das opções político-partidárias concretasoferecidas ao eleitor. Ao manifestar a discordância votando em branco oeleitor recusa os candidatos ou partidos que figuram na lista mas não oregime representativo. Com outros partidos ou candidatos o eleitor poderiavotar afirmativamente.Ora é precisamente porque o que está em causa para os anarquistas é o sistema eleiçoeiro-representativo e não aqueles candidatos ou partidos,que se recomenda a abstenção e não o voto, ainda que branco ou nulo. "Contrariamente ao voto em branco a abstenção tem causas múltiplas,impossíveis de quantificar com precisão em cada acto eleitoral.Recordaremos algumas:– Os eleitores falecidos entre a última actualização do recenseamento e o acto eleitoral contam como abstencionistas;– Os ausentes no estrangeiro ou que, no país, estejam longe da sua secçãode voto são abstencionistas, involuntários ou não segundo ascircunstâncias;– Os doentes e inválidos impossibilitados de se deslocarem à secção devoto são abstencionistas involuntários;– As pessoas a quem a política não diz nada, são abstencionistas persistentes, por desinteresse;– Aqueles a quem a política interessa mas que preferem um dia na praia ou um desafio de futebol, são abstencionistas ocasionais, por opção circunstancial;– Enfim, os que repudiam a democracia representativa por que pretendem uma democracia directa e participativa como os libertários, sãoabstencionistas persistentes por opção ideológica. A sua abstenção é poismais subversiva do que o voto em branco ou nulo (mesmo que este último nãoresulte meramente de iliteracia e seja praticamente equivalente ao voto embranco);– Os que repudiam a democracia e defendem a ditadura, como os fascistas.ou os monárquicos que repudiam o regime republicano poderiam igualmenteabster-se por opção ideológica, mas em geral votam nos partidosrespectivos enquanto aguardam a mudança de regime. O voto em branco, tal como a abstenção, embora possa retirar legitimidade "moral" aos órgãos legislativo e executivo, não lhe retira legitimidade jurídico-política. Muitos presidentes, parlamentos e governos foram eleitos com resultados pouco expressivos. Nas últimas eleições da IRepública (1925) só votaram 14,5% dos eleitores no país e em Lisboa apenas12%. A despeito destes valores o presidente da República – Teixeira Gomes– empossou o secretário-geral do partido mais votado – António Maria daSilva (PRP – Partido Republicano Português). O mesmo tem acontecido, comabstenções iguais ou superiores a 50% em muitos países, e os eleitosassumem funções sem grandes problemas de consciência nem recurso a meiosrepressivos, contrariamente aos membros do governo do romance de Saramago.É por demais evidente que uma obra de ficção goza de liberdades (amplasliberdades talvez) que não se admitem num trabalho de índole filosófica,política ou sociológica. O autor está no pleníssimo direito de tornear oudar um piparote na realidade comezinha se tal contribuir eficazmente parao efeito pretendido. No campo da estética os fins justificam meios que nãosão aceitáveis (embora muito praticados) na vida real, onde devem ser osmeios que justificam os fins (Camus dixit).

Luís Garcia e Silva http://ainfos.ca/index24.html

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