sábado, julho 08, 2006

A propósito de ti

Somos felizes. Acabamos de pagar a casa em Outubro, fechámos amarquise, substituímos a alcatifa por tacos, nenhum de nós foidespedido, as prestações do Opel estão no fim. Somos felizes:preferimos a mesma novela, nunca discutimos por causa do comando,quando compras a TV Guia sublinhas a encarnado os programas que meinteressam, lembras-te sempre da hora daquela série policial que eugosto tanto, com o preto cheio de anéis a dar cabo dos italianos daMáfia. Somos felizes: aos domingos vamos ao Feijó visitar a tua mãe,ficas a conversar com ela na cozinha e eu passeio com o indiano, filhode uma senhora que mora lá no pátio, assistimos ao basquete dossobrinhos dele no pavilhão polivalente, comemos uma salada de polvo nocafé durante os resumos do futebol e voltamos para Almada à noite, como jantar que a tua mãe nos deu numa marmita embrulhada no Record, atempo de assistir às perguntas sobre factos e personalidades, doconcurso em que a apresentadora se parece com a tua prima Beatriz, aque montou um pronto-a-vestir no centro comercial do Prior Velho. Somos felizes. A prova de que somos felizes é que compramos o cãono mês passado e foi por causa do cão que tirámos a alcatifa que asunhas do animalzinho rasparam de tal forma que já se notava o cimentodo construtor por baixo. Andámos a ensiná-lo a não estragar ascortinas, pusemos-lhe uma coleira contra as pulgas depois de umasemana inteira a coçarmo-nos sem entender porquê, passados dois dias oFernando começou a coçar-se também e a acusar-me de cheirar a cachorroe levar pulgas para a repartição, o chefe avisou-me do fundo – Veja-me lá isso Antunesde modo que pus também uma coleira contra as pulgas debaixo da camisa,o Dionísio, espantado – Deste em cónego ou que?e eu, envergonhado, a abotoar o colarinho – É uma coisa chinesa para o reumatismo a Jóia magnética Vitafor éuma porcaria ao pé disto e como nas Finanças se respeitam o reumatismoe as coisas chinesas, nunca mais me maçaram. Às segundas, quartas e sextas sou eu que vou lá abaixo levar o cãoa fazer chichi contra a palmeira, às terças, quintas e sábados é a tuavez e o que não vai lá abaixo fica à janela, a olhar o bichinho acheirar os pneus dos automóveis com o ar sério de quem resolveproblemas de palavras cruzadas que os cães têm sempre que farejampostes e Unos. Somos felizes. Por isso não me preocupei no sábado com o animalmuito entretido na praceta e tu atrás dele, de trela enrolada na mão,sem olhares para cima nem dizeres adeus, a andar devagarinho atédesapareceres na travessa para a estação dos barcos. Foi anteontem. Àsonze horas tirei o cozido do forno e comi sozinho. Ontem também. Hojetambém. Não levaste roupa nem pinturas nem a fotografia do teu pai nemnada. Ainda há bocadinho acabei de gravar o episódio da novela para ti.A tua mãe telefonou a saber porque é que não fomos ao Feijó e eudisse-lhe que daqui a nada lhe ligavas. Porque tenho a certeza de quenão te foste embora visto sermos felizes. Tão felizes que um dia·destes vou comprarem um microondas para, se chegares a casa, teres acomida quente à tua espera.
António Lobo Antunes

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