quarta-feira, julho 05, 2006

Reflexões quase sem nexo e num lapso de momento não cedido à revalorização do dinheiro

A produção teórica do grupo Krisis tem proporcionado uma fabulosa oportunidade para uma crítica radical da sociedade capitalista. O Krisis – e Kurz em especial – traz à luz o resgate da crítica marxiana à produção capitalista. Não se trata da primeira e mesmo única tentativa, mas é a que melhor vem, nos tempos atuais, traduzindo um Marx até então obscuro para a maioria dos marxistas. No lugar da luta por uma melhor repartição quantitativa das riquezas – luta na qual se limitou a esquerda até os dias atuais – o Krisis aponta outra perspectiva. Não inventa, apenas retira de Marx o que passou esquecido, quase morto, durante os últimos 130 anos, mais ou menos. O fetiche da mercadoria, a coisificação das pessoas no processo de revalorização do valor-dinheiro, o “sujeito automático” do valor-mercadoria que submete a todos – burgueses e proletários – à mesma lógica cega da revalorização do valor. O krisis nos diz com todas as letras que as centenas de lutas dos movimentos libertários que operários, camponeses e excluídos em geral têm desenvolvido ao longo das últimas décadas tiveram um componente comum: não se afastaram um milímetro sequer da lógica modernizadora do capital. Em outras palavras: nós, os que estivemos lutando contra o capital, no fundo, estivemos construindo o capital, reforçando a sua dinâmica modernizadora.
Não é fácil, seja para um activista isolado, um militante organizado ou um dirigente sindical, que enfrentou a polícia nas ruas, que esbravejou contra a exploração capitalista, que expôs a própria vida em renhidas lutas por causas que julgou libertárias, ter que admitir que tudo não passou de um equívoco. Ou pelo menos, uma meia verdade. Que a luta que se trava no cotizado tem sido muito mais uma luta defensiva, de resistência e sobrevivência absolutamente enquadrada na lógica da reprodução de mercadorias, do que uma luta pela emancipação consciente do domínio do fetiche da mercadoria. Contudo, é preciso que haja coragem para assumir, no sentido literal do termo. Assumir que está tudo errado e que é preciso retomar uma outra perspectiva de luta; ou assumir que o que se deseja é nada mais do que um capitalismo “mais humano”, e nada mais. A este segundo grupo de pessoas, desejo-lhes sorte, mesmo sabendo, de antemão, por aquilo que entendemos da dinâmica do capital, que a sua tendência mais evidente e descarada é a de desumanizar cada vez mais – embora seja uma criação tão humana: criação inconsciente, que aliena a própria vida humana em favor de um “sujeito automático” (Marx), uma abstracção sem rosto, insensível, de uma mesma qualidade, a do valor. A este grupo de pessoas, ainda, peço que não perca tempo em continuar a leitura deste texto. Será perda de tempo e os senhores sabem bem que na lógica do mundo que vocês transformaram em “natural” e eterno, tempo é dinheiro. Usem-no segundo a ditadura do tempo abstracto do valor-mercadoria. Exponham-se nos balcões da vida e pechinchem a melhor oferta. Nada mais há o que dizer para quem assumiu de vez a sua condição de cidadão-sujeito-civilizado-enquadrado-na-dinâmica-da-troca-de-mercadorias. Que Deus – o Deus-mercadoria – vele por vocês!!!
Quanto ao primeiro grupo, daqueles que não perderam a capacidade de sonhar e não se deixaram domar, nem se curvaram à ferrugem de uma cultura que absolutizou o trabalho como coisa sacra, convido-os a este diálogo. Em geral, quando falamos da crítica da mercadoria, as pessoas perguntam o que fazer então para mudar. Se todos, em última instância, desejamos uma forma social de pessoas associadas conscientemente, livres de Estado, de mercadoria, de alienação social, etc., que caminho poderá nos conduzir a este mundo? Aqui, de início, estamos diante de uma diferença de qualidade com relação aos dogmas cultuados pela esquerda tradicional. Antes, tratava-se de organizar as pessoas num partido, nos sindicatos, etc, para conquistas imediatas na órbita do capitalismo e para a chamada conquista estratégica do poder político. A revalorização cega do dinheiro não era questionada mas apenas a sua injusta distribuição. A conquista do poder garantiria “mais justiça”, como ocorreu em Cuba, China ou na ex-URSS. E em grande medida, como ocorreu também nos países ricos. Contudo, o que estava em jogo não era a superação do capital mas a luta pela expropriação formal de uma classe – a burguesia – ou do latifúndio. Afinal, eles ficavam com a maior fatia da exploração da mais-valia e nada mais justo do que expropriá-los. Esta leitura, no entanto, não escapava ao universo do capital. A abstracção dinheiro não carece de uma classe formal para se revalorizar. Este papel pode ser assumido por um Estado do tipo soviético ou qualquer outro. Os próprios burgueses não são mais do que gerentes de uma dinâmica que eles não dominam. A esquerda tradicional criou o mito de que os burgueses agem conscientemente, articulam grandes manobras e detêm total controle da situação. Ledo engano. No âmbito da reprodução de capitais eles possuem uma reduzida margem de manobra. Mas ainda assim se trata de uma expressão inconsciente da consciência de uma classe submissa à dinâmica cega do valor-dinheiro. Organizam, por exemplo, a repressão e a tortura através do aparelho de Estado. Investem aqui ou acolá e afinal que diferença faz se no fundo o que se busca é a revalorização do dinheiro como fim em si mesmo? O mesmo ocorre com o proletariado e suas manobras por arrancar conquistas em forma de tempo menor de trabalho ou por um valor mais elevado por cada hora trabalhada – conquistas estas que ajudaram a modernizar o capital. Para a ideologia corrente entre o proletariado e seus pretensos dirigentes, o “direito ao trabalho” é coisa sagrada. Lafargue, no seu “Direito à Preguiça”, ironizou este “direito ao trabalho” como o direito do escravo a continuar escravo.
A pergunta, portanto, permanece: o que fazer para pôr abaixo este sistema? A análise do fetiche da mercadoria, em Marx, e que o Krisis nos traz num admirável esforço teórico, aponta para a alienação humana nas suas relações. Até os dias atuais, a humanidade esteve presa a relações fetichistas – ora mediada por Deuses, ora pela consangüinidade ou pelo valor-dinheiro, caso do capitalismo –, expressando formas variadas de relações inconscientes. O comunismo, para Marx, seria a superação da pré-história, já que seria a primeira forma social construída conscientemente e não mais a consequência cega de relações alienadas, inconscientes. Esta premissa teórica e filosófica nos coloca diante de uma realidade prática, dominada pelo fetiche-mercadoria, sob a qual subsistimos e nos entregamos quotidianamente. Como destruir esta forma social partindo das condições dadas, com certeza não pode ser respondido num texto ou com jogo de palavras, mas é possível ir construindo uma linguagem e uma prática que não mais represente a repetição do que tem sido até agora. A primeira coisa que eu sinto, e que pressinto, é que é preciso reunir gente, muita gente. Gente que se disponha a discutir essas coisas sem o sectarismo que as organizações fechadas em si mesmas cultuam. Não se trata de uma crítica às organizações em si, às vezes necessárias, inclusive para organizar melhor as discussões ou desenvolver actividades colectivas. Critico, aqui, aquelas que se fecham como seitas e formulam concepções vanguardistas. A exemplo dos instrumentos alienados de dominação – os aparelhos de Estado – estes organismos fragmentados separam-se da vida e voltam-se para si mesmas. A nossa luta, camaradas das diversas matizes que não perderam o sonho da emancipação da forma-mercadoria, é contra um sistema, uma relação social histórica. É preciso envolver as pessoas – não numa actividade de partido, etc. – mas numa perspectiva, num projetos, num movimento, numa rede, que pode e deve ter muitas cores. É possível e necessário, penso, construir um movimento comum, em torno de pontos comuns, que não apenas não sufoquem as diferenças como, pelo contrário, abra espaço para sua ampla manifestação ou superação, se for o caso. É preciso fazer um esforço para que as pessoas se encontrem e estabeleçam um diálogo aberto, fraterno, que conduza a pontos comuns de reflexão e de acção.
Não sou ingénuo a ponto de imaginar que se trata de tarefa fácil. A maioria das organizações que conheço ou conheci ao longo dos anos se alimentam de questiúnculas sem a menor base de sustentação. Mas na ausência de uma causa melhor, as pessoas se alimentam disso, promovem rachas, rixas e discussões que não constroem uma reflexão colectiva. Outro dia mesmo, resolvi assistir ao Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes) em Goiânia e constatei o que já sabia: apesar do radicalismo verbal entre as correntes que disputam o aparelho burocrático daquela entidade – que na década de 60, e só naquela época, teve alguma importância –, não havia divergência de fundo que justificasse aquela pendenga. Eles bem que poderiam sair de braços dados, bradando: “Fora FHC”, “Lula presidente”, “abaixo o FMI”, “por um Brasil soberano”, etc. Não há diferença de fundo entre estes senhores e sua preocupação é administrar a crise engendrada pela revalorização do valor dinheiro de forma mais competente do que os representantes formais da burguesia. Essas pessoas não se propõem sinceramente, seja pelo discurso ou pela prática – que neste caso não se dissociam – a construir “um outro mundo”. É verdade que há gente “de base” ou independentes, mesmo entre estas correntes, que não estão comprometidas completamente com essa perspectiva. Não proponho que se descubram onde estão essas pessoas. Espero que elas próprias se descubra e descubram um horizonte diferente daquele a que se habituaram.
O fato é que mudar este mundo com base na negação do valor-dinheiro esbarra num paradoxo cotizado. O de ter que (sobre) viver e afirmar quotidianamente a reprodução do valor-dinheiro e, ao mesmo tempo, o de querer negá-lo. O dado positivo reside exactamente na sua negatividade, na capacidade ou não de construir uma recusa colectiva à dinâmica da troca de mercadorias. O que não é tarefa fácil: temos contra nós o mundo, uma realidade pressuposta e que se reflecte na acção e no pensamento da grande maioria das organizações tidas e havidas como porta-vozes das utopias de esquerda. No fundo, são porta-vozes da modernização tardia dos países periféricos, e no centro capitalista, tornaram-se mais realistas do que os reis. Sociais-democratas, socialistas e comunistas europeus são os estrategistas das manobras possíveis do capital no planeta.
A quem devemos nos dirigir nesta empreitada de negação ao que é? A todos os que tenham sensibilidade para ver e entender o domínio cego de uma abstracção. Se desejarem priorizar o discurso entre o proletariado, estejam à vontade, senhores! Mas façam-no, por favor, num sentido libertador e não de afirmação do proletariado como sujeito predestinado a libertar a humanidade do capitalismo. Libertemos primeiro o próprio proletariado de sua condição de classe subordinada à dinâmica automática do valor-dinheiro e o resto vem por si (espero!). Somos – e estamos – todos sujeitos de uma realidade sem sujeito, ou submissos à sujeição comum ao valor-dinheiro. Estudantes, operários, sem-terra, sem-tecto, sem-emprego, sem-qualquer-coisa, que sejam convidados para este diálogo. Territórios abertos, sem bairrismo, sem fronteira, sem pátria. O espaço da nossa acção deve ser o espaço da sociabilidade que se nega a si própria, enquanto forma social alienada, subordinada mundialmente à qualidade comum da abstracção dinheiro. O tempo da nossa acção é o tempo que conscientemente nos dispusermos a privar o tempo imposto pela dinâmica da revalorização do dinheiro. Não há medição de tempo no mundo da negação do dinheiro. Não se perde tempo como no mundo do capital. Aliás, perder ou ganhar torna-se vocábulo de um outro mundo, daquele que queremos ver transformado em museu. Não é um jogo, é a nossa vida, a de cada um e a de todos. Os instrumentos para essa acção? Estão por aí, seja nas formas de comunicação mediática utilizadas de forma espectacular pelos que desejam manter o que é, ou em outras formas quaisquer. Haverá sempre espaço nas entrelinhas da Internet, das rádios livres, dos panfletos e jornais alternativos, ou em outras formas criativas de comunicação. O importante é que se construa uma rede. Uma reflexão colectiva que proporcione a associação de pessoas, de cada vez mais gente. Que esta reflexão crítica possa se traduzir em práticas colectivas de negação prática da revalorização do dinheiro será já uma mudança de qualidade. Não falo apenas em actividades do tipo passeatas e marchas pelos centros urbanos. Nada contra essas actividades, sobretudo se expressarem uma outra perspectiva que não a de reforçar as muitas reivindicações corporativas e imediatamente ligadas ao universo do dinheiro. Penso aqui em actividades de solidariedade que promovam a ocupação dos espaços para reprodução e manifestação da vida humana sem a mediação do dinheiro e do Estado; penso na utilização dos meios técnicos em forma de autogestão directa e não mais voltados para o mercado; penso também numa reflexão colectiva, na construção de um amplo movimento, local e mundial ao mesmo tempo, de negação do valor-dinheiro e do trabalho como mediação das relações humanas. Para isso, precisamos reunir gente, dialogar e reflectir com as pessoas sobre um outro mundo, não mais submetido ao “sujeito automático” do valor.
Essa tarefa é complexa porque se trata de combater uma “abstracção real” (Norbert Trenkle) e não apenas as formas ou a encarnação física das relações sociais mediadas pelo dinheiro. É ainda uma tarefa difícil porque não se trata de uma “missão” que tenha que ser cumprida por um partido que libertará a humanidade. Antes, trata-se do envolvimento das pessoas que assumam ou não uma perspectiva histórica e imediata, individual e colectivamente. Aliás, esta separação entre indivíduo e colectivo é o outro ponto a ser destacado. Essa inversão comum ao capital, através da qual as pessoas se “socializam” no trabalho produtivo de revalorização, e se “individualizam” na repartição quantitativa dos resultados é consequência lógica do fetichismo da mercadoria. O individualismo, neste caso, nada tem a ver com a manifestação da diferença. Pelo contrário, ela expressa a submissão das diferenças a um mesmo universo, o do valor-mercadoria. Subtrai as diferenças, a qualidade sensível, e deixa ao indivíduo a melancólica sina de um isolamento pessoal, resignado e voltado para a concorrência insana na disputa pela cota-parte da abstracção criada pelas relações mediadas pelo trabalho. E que se expressa também na prática quotidiana. – Companheiro, vamos discutir o mundo? – Claro, companheiro, mas antes tenho que cuidar da “minha vida”! Como se a vida de alguém, seja ele burguês, operário ou sem-terra, já não tivesse sido previamente alienada, subtraída, antes mesmo que este alguém desse o ar da graça no planeta Terra. A resposta correcta seria: antes tenho que cuidar da vida que a abstração-dinheiro surrupiou de mim. Neste caso, “cuidar da vida”, não como meio estritamente necessário para se manter vivo, mas como fim, é a mais autêntica aplicação da lei capitalista segundo a qual a revalorização do dinheiro ocorre como fim em si mesmo. Não, camarada, não há vida humana nos marcos do capital; apenas sobrevive-se. E a resistência, ainda que seja como tentativa de negação teórica e prática do que é, pode ser considerada, senão a única, pelo menos a mais consistente forma de manifestação de vida inteligente... e tentativa de superação do que é. Por isso, proponho que a gente se encontre. Não sei como, nem quando, nem onde. Sei apenas que é preciso que mais gente se reúna e que procure transformar a crítica radical da mercadoria numa arma prática de libertação da humanidade. Da nossa libertação.

Euler Conrado
http://obeco.planetaclix.pt/

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