terça-feira, julho 18, 2006

Sobre a abstenção

O charlatanismo político do Estado exprime-se de maneira, a um tempo, singela e cívica, através de um rectângulo de papel, onde até os mais letrados rabiscam uma cruz: o boletim de voto. Como nas apostas mútuas desportivas... Se fizermos abstracção do aparato que rodeia as urnas, da composição das mesas, do dispositivo de segurança, das técnicas de contagem dos sufrágios expressos, da solenidade do momento e o facto do dia escolhido ser, em geral, um domingo ou dia feriado, o método é dos mais simples, para dizer dos mais simplórios... ... Depois dos candidatos se terem copiado uns ao outros, prolixamente, é permitido as máquinas votantes exprimirem-se á sua maneira, laconicamente. E como o peso do número é quem mais ordena, há sempre maços de rectângulos de papel que saiem democraticamente vencedores. É então que intervém o fenómeno estranho a que podemos chamar « o mistério do boletim de voto ». Duma simples cruzinha feita de quatro em quatro anos... ... brotam, pelos vistos, todas as indicações, todas as orientações, todas as terapêuticas, que devem pautar o comportamento dos eleitos, para que justiça se faça e seja respeitada a vontade integral e imperativa dos representados. A política económica, o orçamento geral do Estado, o combate á inflação e ao desemprego, a racionalização da exploração do material humano e dos recursos naturais misturados com os outros « elementos de produção », a verdadeira distribuição do rendimento nacional, o direito elementar de um poiso chamado habitação, etc, tudo se encontra, por incrível que pareça, escrito nas estrelinhas duma cruz _ Dizem os exegetas, uma mão no peito, a outra sobre a constituição... ... O quê?, Como pode uma simples cruz ser tão eloquente? Como pode alguém que me representa, ainda por cima contra a minha vontade, saber melhor do que eu aquilo que quero?. Que o boletim de voto, pela boca dos utentes, tenha ilusões sobre si mesmo_ isso é lá com ele... ...Pouco importa que haja um partido ou vários a fingirem que conquistam, mas a serem conquistados pelo poder,... ... chegou-se a tal ponto que, se rebentasse uma greve de zelo bem preparada, que, fingindo aceitar a filosofia do Estado de direito, aplicasse escrupulosamente todas as leis, decretos, regulamentos e por aí fora na hierarquia das normas jurídicas publicadas até este dia e ainda no todo ou em parte em vigor, haveria tantas ordens contraditórias, ridículas, extravagantes, vexatórias, que a mega- máquina tremeria dos pés á cabeça... ou pelo menos teria um rascante ataque de tosse!... ... Quem sabe?, talvez saibam porque vibram, porque têm a falsa consciência de entusiasmar-se, num mundo sem alegria, nem entusiasmo. Não são eles que têm os livros e democraticamente monopolizam, para maior proveito e fastio de todos nós? Sufrágio universal directo e secreto!... ...É o que acontece nos nossos dias. Em todos os países onde vigora esse disfarce púdico da tirania brutal do Estado chamado democracia, o sufrágio é universal. Todos os cidadãos são iguais diante da lei e do voto – única forma de igualdade que a burguesia admite. No que respeita à liberdade de não votar, de se abster, a burguesia e os estratos sociais culturalmente próximos que lhe fazem concorrência, quando não a proíbem expressamente, como no Brasil e nos países onde o “direito” de voto é obrigatório, desaconselham-na vivamente... Uma greve eleitoral tiraria a máscara a um poder que não precisa de eleições, para se exercer quotidianamente em casa, na fábrica, no campo, no escritório, na caserna... por isso, a abstenção consciente é a única atitude radical diante do problema especifico do sufrágio... ...Não há regimes melhores nem piores. A mudança dos regimes só comprova a continuidade do sistema... este sistema é absurdo. Se há verdadeiramente actos que homens devem ordenar, permitir e proibir, seria interessante determinar esses actos pela lógica. Se não há, os políticos não são mais qualificados que os outros Homens/Mulheres, para os determinarem. Como se estabelece a verdade? Como se determina a ciência? Nomeiam-se delegados para esse efeito? – Não. O que destrinça a verdade não foi delegado por ninguém. Muitas vezes, ele não tem nem diplomas nem dignidades. – Vota-se em matéria científica? – Não. O voto nada prova. Galileu era o único a dizer que a terra gira em volta do Sol. Minoria, ele tinha no entanto razão contra a pretensa maioria. – Impõem-se a ciência pela força? – Não. Diz-se aos Homens/Mulheres: “aqui está ela. Aqui estão as provas. Imporeis a vós próprios o que tiverdes reconhecido justo”.
Carbonária Anarquista

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