quarta-feira, julho 19, 2006

Um interrogatório mortal

Pode a CIA matar legalmente um prisioneiro?


No final de uma afastada rua sem saída, num pujante subúrbio da Virgínia favorecido por empregados da Agência Central de Inteligência (CIA), há uma réplica de uma antiquada casa de granja, com um pórtico de varandas brancas. O amplo jardim tem uma piscina que, numa recente tarde de Outubro, estava primorosamente coberta. Na entrada havia dois automóveis, uma camioneta de modelo recente, e um veículo todo­‑­o‑terreno. A única nota discordante era dada por uma descolorida bandeira americana no pórtico; em vez de esvoaçar na brisa outonal, encontrava-se dobrada numa pilha de adornos natalícios.
A casa pertence a Mark Swanner, um agente da CIA de 46 anos que levou a cabo interrogatórios e provas de polígrafo para a agência, que o emprega pelo menos desde os anos noventa (não é um agente encoberto). Há dois anos, na prisão de Abu Ghraib nos arredores de Bagdade, um prisioneiro iraquiano sob custodia de Swanner, Manadel al­‑Jamadi, morreu durante um interrogatório. A sua cabeça tinha sido coberta por um saco plástico e encontrava-se algemado numa posição de crucificação que inibia a sua capacidade de respirar; segundo os patologistas forenses que examinaram o caso, asfixiou. Numa investigação interna posterior, autoridades do governo dos Estados Unidos classificaram a morte de Jamadi como «homicídio», implicando que resultou de causas não naturais. Swanner não foi acusado de nenhum crime e continua a trabalhar para a Agência.
Após o 11 de Setembro, o Departamento de Justiça elaborou orientações legais secretas que parecem dar imunidade aos agentes da CIA que levem a cabo interrogatórios agressivos e inclusive violentos fora dos Estados Unidos. Técnicas tais como o waterboarding – o quase afogamento de um suspeito – foram implicitamente autorizadas por uma Administração que sente que tais métodos podem ser necessários para ganhar a guerra contra o terrorismo. (Em 2001, o vice-presidente Dick Cheney, numa entrevista no programa “Meet the Press” disse que o governo poderia ter que passar ao «lado escuro» ao tratar com suspeitos de terrorismo, acrescentando: «Vai ser vital para nós que usemos todos os meios à nossa disposição»). No entanto, o duro tratamento dado a Jamadi e a outros presos sob custodia da CIA provocou um acalorado debate em Washington, levantando questões acerca de quais limites deveriam ser postos aos funcionários da agência que interrogam suspeitos de terrorismo estrangeiros fora do território dos EUA.
Neste Outono, respondendo à revelação do disseminado abuso de prisioneiros nos centros de detenção estadunidenses no estrangeiro – entre eles Abu Ghraib, Guantánamo em Cuba, e a Base Aérea de Bagram no Afeganistão – John McCain, senador Republicano pelo Arizona, apresentou ao Congresso um projecto de lei requerendo que os estadunidenses que mantêm detidos prisioneiros no estrangeiro sigam as mesmas normas de tratamento humano exigidas dentro dos EUA pela Constituição. Os prisioneiros não devem ser tratados brutalmente, diz o projecto, seja qual for a sua «nacionalidade ou localização física». No dia 5 de Outubro, em desacordo com o presidente Bush, que se opôs fortemente à proposta de McCain, o Senado votou 90-9 a favor do projecto.
Importantes membros da administração livraram uma batalha feroz, e cada vez mais visível, para proteger o protocolo de interrogatório classificado da CIA. Em fins do mês passado, Cheney e Porter Goss, o director da CIA, tiveram um inusitado encontro privado de 45 minutos em Capitol Hill com o senador McCain, que foi torturado como prisioneiro de guerra durante a guerra de Vietname. Argumentaram que a CIA às vezes precisa da “flexibilidade” para tratar os prisioneiros da guerra contra o terrorismo de formas «cruéis, desumanas e degradantes». Cheney procurou acrescentar uma isenção ao projecto de McCain que permitisse métodos brutais quando «tais operações sejam vitais para proteger os Estados Unidos ou os seus cidadãos de ataques terroristas». Um editorial do Washington Post censurou a visita de Cheney denominando-o «vice­‑presidente para a tortura» [1]. Nas próximas semanas um comité de conferência [2] da Câmara e do Senado decidirá se a proposta de McCain se converte em lei. Três dos nove senadores que votaram contra a medida estão no comité.
O resultado deste amplo debate político poderia jogar um papel em decidir o futuro de Swanner, cujo nome não se conhecia publicamente até agora. Swanner recusou-se a ser entrevistado. A passagem da lei McCain pelas duas câmaras do Congresso significaria que existe uma forte oposição política ao tratamento abusivo de prisioneiros e incrementaria a pressão sobre o Departamento de Justiça para que sejam processados interrogadores como Swanner – que poderia ser acusado de agressão, homicídio por negligência, ou tortura. A advogada de Swanner, Nina Ginsberg, recusou-se a discutir o seu caso oficialmente. Mas Swanner está a ser investigado pelo Departamento de Justiça há mais de um ano.
Manadel al-Jamadi foi capturado por SEALS (corpo de elite) da marinha às 2 da manhã do dia 4 de Novembro de 2003, após uma violenta briga em sua casa, nos arredores de Bagdade. Jamadi brigou ferozmente com um dos SEALS antes de ser submetido na su cozinha; durante a altercação, o seu fogão caiu sobre eles. A CIA tinha­‑o identificado como um alvo «muito valioso», porque alegadamente tinha fornecido os explosivos usados em várias atrocidades perpetradas pelos insurgentes, incluindo o bombardeamento do quartel­‑general do Comité Internacional da Cruz Vermelha, em Bagdade. Após ser retirado da sua casa, Jamadi foi maltratado por vários SEALS, que lhe deixaram um olho negro e vários cortes na cara; foi então transferido para a custódia da CIA, para ser interrogado em Abu Ghraib. Segundo as testemunhas, Jamadi podia caminhar e falar quando chegou à prisão. Foi levado a uma sala de chuveiro para ser interrogado. Quarenta e cinco minutos depois, estava morto.
Durante quase todo o tempo em que Jamadi estava a ser interrogado em Abu Ghraib, havia apenas dois homens na sala com ele. Um era um tradutor de árabe que trabalhava para a CIA com um contrato privado, que foi identificado nos documentos do tribunal militar simplesmente como «Clint C». Foi-lhe dada imunidade contra acusações penais a troco da sua cooperação. A outra pessoa era Mark Swanner.
Na primavera de 2004 o disseminado abuso de prisioneiros em Abu Ghraib tornou-se público, em “60 minutes II” e numa série de artigos de Seymour M. Hersh no The New Yorker [3]. As fotografias tomadas por soldados estadunidenses, que mostravam prisioneiros iraquianos encapuchados, humilhados sexualmente e ameaçados com cães, foram publicadas em todo o mundo. Uma das imagens mais horríveis era a do cadáver severamente ferido de Jamadi, que tinha sido envolvido em plástico e posto em gelo [4]; tornou­‑se conhecido nos meios de comunicação como Ice Man [Homem do Gelo].
Nessa época, John Helgerson, inspector geral da CIA, mandou investigadores para o Iraque e San Diego para entrevistar testemunhas sobre o papel da Agência na morte de Jamadi. Estes determinaram que existia a possibilidade de crime – que é a fronteira requerida pela agência de inteligência para que o caso seja referido ao Departamento de Justiça. A agência fê-lo, e funcionários do Departamento de Justiça enviaram o caso para o escritório de Paul McNulty, o Procurador do estado de Virgínia do Leste, que tem jurisdição sobre o quartel­‑general da CIA. O processo tem permanecido ali por mais de um ano. Um advogado familiarizado com o caso, que pediu para não ser identificado, comentou que o arquivo de Swanner parecia estar «em repouso como que em pousio».
Uma porta­‑voz de McNulty disse que este não faria comentários sobre o caso, já que estava ainda a ser investigado (no mês passado o presidente Bush nomeou McNulty para a posição de subprocurador geral, o segundo posto mais poderoso no Departamento de Justiça.) Nenhum outro funcionário do Departamento de Justiça quis discutir oficialmente por que, dois anos após a morte de Jamadi, não se decidiu apresentar acusações contra alguém.
Um funcionário do governo familiarizado com o caso, que não quis ser identificado, indicou que neste caso pode ser difícil estabelecer culpabilidades devido ao duro tratamento que os SEALS deram a Jamadi antes de ser posto em custódia da CIA. No entanto, nos dois últimos anos vários dos SEALS que capturaram Jamadi e o entregaram à CIA enfrentaram acusações de abuso ante a justiça militar e foram exonerados. Além disso, três experientes médicos que examinaram o caso de Jamadi contaram­‑me que as feridas causadas pelos SEALS não poderiam provocar­‑lhe a morte.
Fred Hitz, que foi director geral da CIA de 1990 a 1998, e que agora é conferencista em assuntos públicos e internacionais na Universidade de Princeton, disse a respeito dos funcionários da administração Bush: «Parece­‑me que estão a ganhar tempo». Contou-me que não conhecia o caso de Swanner de dentro, mas acredita que, por muitas razões que vão desde proteger a segurança nacional até evitar uma situação politicamente embaraçosa, os funcionários da administração «opor­‑se­‑iam a qualquer responsabilização neste caso. Querem que desapareça dos ecrãs». (Um porta­‑voz da CIA disse que a investigação interna sobre a morte de Jamadi está «quase completa» e que por isso seria «inapropriado discutir algum dos detalhes.»)
John Radsan, um advogado que trabalhou no Conselho Geral da CIA, diz: «Juntamente com os problemas usuais de tratar com informação classificada num caso penal, isto poderia colocar um dilema se um funcionário da CIA fosse processado neste caso – um grande dilema acerca de qual conjunto de regras se aplicam a pessoas como Jamadi. A pergunta do milhão é: O que é que foi autorizado? Pode a CIA torturar pessoas? Um caso como este abre uma caixa de Pandora.»
Desde o 11 de Setembro do 2001, o trato e o interrogatório de suspeitos de terrorismo pela CIA permaneceram quase inteiramente escondidos da vista pública. Grupos de direitos humanos estimam que uns dez mil suspeitos estrangeiros estão a ser retidos em centros de detenção estadunidenses no Afeganistão, Iraque, Cuba e outros países. Uma pequena mas desconhecida parte desta população está sob custodia da CIA, a qual, como reportou recentemente Dana Priest no Washington Post [5], utilizou prisões secretas na Tailândia e na Europa Oriental. Também não está claro quão seriamente a Agência lida com alegações de abuso de prisioneiros. A CIA tende a ser cuidadosa em seguir estritos procedimentos legais, que incluem informar os membros mais importantes dos Comités de Inteligência do Senado sobre as suas actividades encobertas. Mas os especialistas não recordam nenhuma instância de um funcionário da CIA ser julgado num tribunal público por homicídio involuntário ou assassinato. Thomas Powers, autor de dois livros sobre a CIA, contou-me: «Nunca ouvi falar de alguém da CIA ter sido condenado por um assassinato». Acrescentou que um caso como o de Jamadi tem delicadas implicações políticas. «Pode a CIA lidar com uma morte ilegal por suas próprias mãos?» perguntou. «O meu palpite é que não». Enquanto os militares se submeteram a uma dúzia de investigações internas na sequência do escândalo de Abu Ghraib, e castigaram mais de duzentos soldados por diversos delitos, a Agência não realizou quase nenhum exame público dos seus actos.

A CIA esteve comprovadamente implicada em pelo menos quatro mortes de detidos no Afeganistão e no Iraque, incluindo a de Jamadi, e referiu ao Departamento de Justiça oito potenciais casos penais envolvendo abuso e conduta inapropiada. Em Março, Goss, o director da CIA, testemunhou perante o Congresso que «nós não torturamos» e o escritório de imprensa da Agência emitiu um comunicado afirmando: «Todas as técnicas de interrogatório aprovadas, tanto as passadas como as actuais, são legais e não constituem tortura. (...) As políticas de interrogatório da CIA sempre seguiram directivas legais do Departamento de Justiça. Se um indivíduo viola as políticas, ele ou ela serão responsabilizados».
No entanto, o governo apresentou acusações contra uma só pessoa associada com a agência: David Passaro, um empregado contratado de baixo nível, não um verdadeiro funcionário da CIA. Em 2003, Passaro, enquanto interrogava um prisioneiro afegão, alegadamente golpeou­‑o com uma lanterna tão duramente que ele acabou por morrer das feridas. Em dois outros incidentes de abuso de prisioneiros, informou o Times do mês passado, provavelmente não se apresentarão acusações contra pessoal da CIA: o caso de 2003 de um prisioneiro iraquiano que foi introduzido de cabeça à força numa saco de dormir e depois espancado; e o maltrato de 2002 de um prisioneiro afegão que morreu congelado depois de ter sido despido e encadeado ao chão de uma cela de betão. (O supervisor da CIA envolvido no ultimo caso foi posteriormente promovido.)
Uma das razões pelas quais estes agentes da CIA podem não ter que enfrentar acusações é que, nos últimos anos, o Departamento de Justiça estabeleceu uma impressionante definição estreita de tortura. Em Agosto de 2002, o Escritório de Conselho Legal enviou um memorando sobre interrogatórios à Casa Branca, que argumentava que uma técnica coercitiva só era tortura quando infligia dor equivalente à que poderia sofrer uma pessoa que estivesse a morrer ou a sofrer a falha de algum órgão. Implicitamente, todas as formas menores de maltrato físico e psicológico – o que os críticos chamaram “tortura leve” – eram legais. O memorando também dizia que a tortura só era ilegal quando pudesse ser provado que o interrogador pretendia causar o requerido nível de dor. E proporcionava aos interrogadores outra grande excepção: a tortura poderia ser aceitável se um interrogador estivesse a actuar de acordo a “necessidade” militar. Uma fonte familiarizada com as origens do memorando, que se recusou a falar oficialmente, disse que «foi escrito como uma imunidade, como um cheque em branco». Em 2004, o “memorando da tortura”, como ficou conhecido, foi filtrado, complicando a nomeação de Alberto R. Gonzales para Procurador Geral; como conselheiro da Casa Branca, Gonzales tinha aprovado o memorando. A Administração reviu posteriormente as directivas, usando uma linguagem que parecia mais restritiva. Mas uma nota de rodapé pouco notada protegia os métodos coercitivos permitidos no “memorando da tortura”, afirmando que não violavam «as normas estabelecidas neste memorando».
A Administração Bush resistiu a revelar o conteúdo de dois memorandos do Departamento de Justiça que estabeleciam detalhadas políticas de interrogatório para o Pentágono e a CIA. Um memorando classificado de Março de 2003 era «de tirar o fôlego», disse a mesma fonte. O documento dispensava praticamente todas as leis nacionais e internacionais que regulam o tratamento de prisioneiros, incluindo crimes de guerra e estatutos de agressão, e era radical na sua visão de que em tempos de guerra o presidente pode usar quaisquer meios que considere apropriados para lutar contra os inimigos. De acordo com o memorando, o Congresso não tem o direito constitucional de interferir com o presidente no seu papel de Comandante­‑em­‑chefe, incluindo a elaboração de leis que limitam a forma como os prisioneiros podem ser interrogados. Diz­‑se que outro memorando classificado do Departamento de Justiça, emitido em Agosto de 2002, autoriza à CIA numerosas técnicas “melhoradas” de interrogatório. Estes dois memorandos aprovam medidas tão extremas que, mesmo que a Agência quisesse disciplinar ou processar agentes que saem do seu próprio nível de conforto, as ferramentas legais para o fazer podem já não existir. Tal como o memorando da tortura, pensa­‑se que estes documentos foram assinados por Jay Bybeee, o ex chefe do Escritório de Conselho Legal, mas escritos por um advogado do Departamento de Justiça, John Yoo, que é actualmente professor de Direito em Berkeley.
Durante quase um ano, senadores democratas críticos dos alegados abusos têm vindo a pedir para ver estes memorandos. «Precisamos de saber o que é que foi autorizado», disse­‑me Carl Levin, um democrata do Michigan. «Foi o waterboarding? O uso de cães? Despir os detidos? (...) A recusa a dar-nos estes documentos é totalmente indesculpável». Levin é membro do Comité de Inteligência do Senado, que é suposto ter um papel de supervisão da CIA. «A Administração está a sair­‑se com a sua simplesmente dizendo não», continuou. «Não há alegação de privilégio executivo. Não há alegação de segurança nacional – oferecemos mantê­‑los classificados. É apenas treta. Eles simplesmente não querem que saibamos o que estão a fazer, ou fizeram.»
No Verão de 2003, a insurgência contra a ocupação estadunidense do Iraque tinha-se convertido numa insurreição desconcertante e letal, e tanto o Pentágono como a Casa Branca estavam a pressionar os agentes da CIA e os membros das Forças Especiais a obter o tipo de informação necessária para esmagá­­­‑la. Sob ordens do Secretário da Defesa Donald Rumsfeld, o general Geoffrey Miller, que tinha supervisionado interrogatórios coercitivos de suspeitos de terrorismo em Guantánamo, impôs métodos similares em Abu Ghraib. No entanto, em Outubro desse ano – um mês antes da morte de Jamadi – o Escritório de Conselho Legal do Departamento de Justiça emitiu um parecer afirmando que os insurgentes iraquianos estavam cobertos pelas Convenções de Genebra, que exigem o tratamento humano dos prisioneiros e impedem os interrogatórios coercitivos. O parecer reverteu uma interpretação anterior que tinha concluído, erroneamente, que os insurgentes iraquianos não estavam protegidos pelas leis internacionais.
Como resultado destes mandatos contraditórios de Washington, as regras de procedimento em Abu Ghraib tornaram­‑se difusas, e as tácticas cada vez mais improvisadas. Jeffrey H. Smith, um antigo conselheiro geral da CIA, disse-me: «Abu Ghraib tem as suas raízes no topo. Penso que esta incerteza a respeito de quem estava e quem não estava coberto pelas Convenções de Genebra, e toda esta conversa de que são todos terroristas, alimentou o clima no qual este tipo de abusos tem lugar».
Em Abu Ghraib, a confusão a respeito dos métodos de interrogatório e detenção foi favorecida pelo fato de agentes da CIA terem trabalhado lado a lado com militares estadunidenses. A coronel Janis Karpinski, antiga comandante da 800ª Brigada de Polícia Militar, que superintendia à administração de Abu Ghraib durante o período em que os abusos se tornaram comuns, afirmou que agentes da CIA, juntamente com intérpretes contratados e alguns oficiais de inteligência militar, não usavam uniforme quando visitavam a prisão, e que não era claro, mesmo para ela, o que estavam a fazer ali. «Pensava que a maioria dos civis ali eram intérpretes, mas havia alguns civis que eu não conhecia», disse a Seymour Hersh. «Chamava­‑lhes fantasmas que desaparecem (...) Estavam sempre a trazer a alguém para ser interrogado, ou à espera para recolher alguém que saía». Os agentes da CIA, ao contrário dos membros do Exército e da Marinha, não estão sujeitos ao Código Uniforme de Justiça Militar, que proíbe «crueldade para com, ou opressão ou maltrato de» prisioneiros.

Walter Diaz, um polícia militar, estava de guarda em Abu Ghraib na manhã em que Jamadi foi levado à prisão. Disse-me: «As OGA» –“outras agências governamentais”, iniciais habitualmente utilizadas para proteger a identidade da CIA – «traziam pessoas o tempo todo para interrogá-las. Tínhamos um ala, Tier One Alpha, reservada para as OGA. A certa altura, eles tinham ali talvez umas vinte pessoas». Prosseguiu: «Eram prisioneiros deles. Entravam numa sala e fechavam­‑na. Nós, como soldados, não nos envolvíamos. Fechávamos a porta para eles e saíamos. Não sabíamos o que estavam a fazer». Mas, recordou, «ouvíamos muitos gritos».
Considerando este nível de segredo, é duvidoso que quaisquer detalhes tivessem emergido acerca do papel da CIA na morte de Jamadi se não fosse uma estranha e tangencial corrente de eventos. Três meses após Jamadi ter morrido, Jeffrey Hopper, um SEAL da marinha, que tinha sido designado para levar a cabo acções conjuntas com a CIA em Bagdade, foi acusado de roubar o colete à prova de balas de outro SEAL. Hopper, que tinha sido apodado Klepto pela unidade, foi expulso das Forças Especiais. Quando foi destituído, contou às autoridades que conhecia ofensas muito piores cometidas por outros SEALS, e citou o maltrato de vários prisioneiros, incluindo Jamadi. As suas acusações formaram a base de múltiplas acusações contra vários SEALS, as quais conduziram ao tribunal marcial o tenente Andrew Ledford, comandante do pelotão que capturou Jamadi, por, entre outras coisas, permitir às suas tropas agredir o prisioneiro. Em Maio passado, Ledford foi absolvido de qualquer actuação indevida, mas durante as audiências, que foram abertas, ficaram a conhecer­‑se um número de factos inquietantes, que aludem ao papel da CIA na morte de Jamadi.
Seth Hettena um jornalista da Associated Press com base em San Diego, Califórnia, assistiu às audiências. Os depoimentos prestados no tribunal, informou, indicaram que Jamadi, antes de chegar a Abu Ghraib, foi interrogado «de forma violenta» por uma combinação de SEALS e pessoal da CIA no “quarto de jogos”, um diminuto espaço no acampamento da Marinha no aeroporto internacional de Bagdade. Swanner encontrava-se entre os presentes. Um dos SEALS testemunhou que após que Jamadi ter sido algemado um dos interrogadores da CIA assestou «o seu braço contra o peito do detido, pressionando sobre ele com todo o seu peso». De acordo com um relatório recente de John McChesney na National Public Radio, um guarda da CIA que testemunhou a cena contou mais tarde aos investigadores que, após ter despido Jamadi e encharcá­‑lo com água fria, um interrogador da CIA ameaçou «assá­‑lo» se ele não falasse. Jamadi, segundo foi relatado, gemeu: «Estou a morrer, estou a morrer». O interrogador replicou: «Vais desejar estar a morrer».
Os depoimentos no tribunal também estabeleceram que Jamadi foi arrojado violentamente pelos SEALS para a parte traseira de um Humvee antes de ser entregue em Abu Ghraib. Durante este tempo, esteve algemado. «Constituía uma ameaça?» perguntou um procuradora da Marinha a um dos SEALS processados. «Não, senhora», concedeu o SEAL.
Pouco depois de a Associated Press ter publicado a história de Hettena sobre o “quarto de jogos”, dois agentes não identificados, evidentemente da CIA, apareceram no tribunal. A partir desse momento, contou-me Hettena, os agentes, que não deram os seus nomes, protestavam quando os depoimentos tocavam em assuntos delicados para a CIA. Em muitas instâncias, exigiu-se aos jornalistas e a outros membros do público que abandonassem a sala do tribunal. Noutra ocasião, uma testemunha não identificada da CIA testemunhou por trás de uma cortina azul. Várias partes das perguntas dos advogados defensores dos SEALS foram declaradas fora dos limites. Quando um dos advogados da defesa, Matthew Freedus, perguntou a uma testemunha: «Em que posição estava Jamadi quando morreu?», os representantes da CIA protestaram, dizendo que a resposta estava classificada. A mesma objecção foi feita quando foi formulada uma pergunta sobre o papel desempenhado pela água nos interrogatórios de Jamadi.
Em fins da Primavera passada, as reputações dos SEALS tinham sido manchadas pela revelação dos seus maus tratos contra Jamadi, mas foram absolvidos das acusações mais graves de maltrato. A questão sobre quem era responsável pela morte de Jamadi permaneceu sem resposta. Milt Silverman, um dos advogados da defesa, disse­‑me: «Quem matou Jamadi? Sei que não foi nenhum dos SEALS. (...) Foi por isso que os seus casos resultaram numa absolvição. Frank Spinner, um advogado civil que representou Ledford, disse: «Há um caso mais sólido contra a CIA do que contra Ledford. Mas os militares estão a ser postos a secar enquanto a CIA patina. Quero uma responsabilização publica, seja num julgamento, numa audiência perante um comité do Congresso, ou num relatório público. Tem que haver algo mais significativo do que simplesmente meter o caso numa gaveta do Departamento de Justiça».
Spinner e vários outros advogados da defesa ficaram a saber mais do que era suposto sobre o papel da CIA na morte de Jamadi, devido a um erro de classificação cometido pela Agência. A CIA enviou centenas de páginas de material relativo à morte de Jamadi para a Marinha; grande parte delas eram classificadas, e todas estavam marcadas como não classificadas. Estas páginas foram entregues aos advogados civis, que as leram cuidadosamente. A Agência, depois de se ter dado conta do seu erro, exigiu que os advogados devolvessem o material classificado, e posteriormente selaram praticamente todos os registos do tribunal relativos ao caso. No entanto, alguns dos documentos da CIA foram vistos por uma fonte familiarizada com o caso, que partilhou os seus conteúdos comigo.
Manadel al­‑Jamadi chegou a Abu Ghraib nu da cintura para baixo, de acordo com uma testemunha ocular, Jason Kenner, um polícia militar da 372ª Companhia de Polícia Militar. Numa declaração a investigadores da CIA, Kenner recordou que Jamadi tinha sido despido das suas calças, cuecas, meias e sapatos, chegando com apenas uma t­‑shirt púrpura e um casaco púrpura, e com um saco verde de plástico cobrindo completamente a sua cabeça. Contudo, Kenner contou aos investigadores da CIA que «o prisioneiro não parecia estar a sofrer. Caminhava bem e falava normalmente». As “algemas flexíveis” de plástico nos pulsos de Jamadi estavam tão apertadas, no entanto, que Kenner teve problemas a cortá­‑las quando foram substituídas por algemas de aço e as mãos de Jamadi foram presas atrás das suas costas.
O sargento do Staff Mark Nagy, reservista da 372ª companhia de Polícia Militar, também estava de serviço em Abu Ghraib quando Jamadi chegou. Segundo os documentos internos classificados, disse aos investigadores da CIA que Jamadi parecia «lúcido», assinalando que «falava durante a admissão». Nagy disse que Jamadi «não era combativo» quando foi posto em cela de detenção, e que «respondia às ordens». Na opinião de Nagy, não havia «necessidade de ser duro com ele».
Kenner contou aos investigadores que «minutos» após Jamadi ter sido posto na cela, um «interrogador» – posteriormente identificado como Swanner – começou a «gritar­‑lhe, tratando de averiguar onde estavam certas armas». Kenner disse que podia ver Jamadi através da porta aberta da cela, «sentado como um menino assustado». Os gritos continuaram, disse, por cinco ou dez minutos. Em certo momento, segundo Kenner, Swanner e o seu tradutor «tiraram o casaco e a camisola do prisioneiro», deixando-o nu. Acrescentou que não viu feridas nem contusões. Pouco depois, Swanner e o tradutor disseram aos polícias militares para «levar o prisioneiro para Tier One», a ala de interrogatórios da Agência. Os polícias militares vestiram Jamadi com um fato­‑macaco laranja regular, deixando o saco sobre a sua cabeça, e encaminharam­‑no para a sala de chuveiro para ser interrogado. Kenner disse que Jamadi «não ofereceu resistência».

No caminho, Nagy notou que Jamadi estava «a gemer e a respirar pesadamente, como se estivesse sem ar». Walter Diaz, o polícia militar que tinha estado de guarda na prisão, contou aos investigadores da CIA que Jamadi não mostrava «sinais de sofrimento nem se queixava a caminho da sala de chuveiro. Mas disse­‑me que também ele notou que Jamadi estava a ter «problemas respiratórios». Uma autópsia mostrou que Jamadi tinha seis costelas fracturadas; não é claro quando foram partidas. Os agentes da CIA encarregados de Jamadi sequer realizaram um exame médico superficial, embora as Convenções de Genebra exijam que os prisioneiros recebam «cuidados médicos».
«Jamadi era basicamente um “prisioneiro fantasma”», disse-me um antigo investigador do caso, que não quis ser identificado. «Não foi registado ao entrar no estabelecimento. Gente como esta, simplesmente o trazem, e usam o estabelecimento para os interrogatórios. Os militares de baixa graduação ali só seguiram as ordens dos OGA. Não houve processo de registro».
De acordo com o depoimento de Kenner, quando o grupo chegou ao chuveiro, Swanner disse aos polícias militares que «não queria que o prisioneiro se sentasse e queria­‑o algemado à parede». (Não está registada nenhuma explicação para esta decisão). Havia uma janela com grades numa das paredes. Usando um par de grilhetas para tornozelos, Kenner e Nagy ataram os braços de Jamadi, que tinham sido colocados atrás das suas costas, às grades da janela.
A Associated Press mencionou um especialista que descreveu a posição na qual Jamadi morreu como uma forma de tortura conhecida como «suspensão palestiniana», na qual um prisioneiro cujas mãos estão presas atrás das costas é pendurado pelos seus braços. (A técnica foi alegadamente usada no conflito palestino-israelense). As declarações juradas realizadas pelos polícias militares aos investigadores sugerem que, pelo menos ao princípio, Jamadi podia estar de pé, sem dor: os registros da autópsia mostram que ele media 1,78 m, e, segundo Diaz me explicou, a janela estava a aproximadamente um metro e meio do chão. Os relatos concordam em que, conquanto Jamadi podia estar de pé sem desconforto, não podia ajoelhar­‑se nem sentar­‑se sem se pendurar dolorosamente dos seus braços. Uma vez que esteva preso, os polícias militares deixaram­‑no só na sala com Swanner e o tradutor.
Diaz contou que menos de uma hora depois estava a passar pela sala do chuveiro quando Swanner saiu e pediu ajuda, dizendo «Este tipo não quer cooperar». De acordo ao relatório do NPR, um dos homens da CIA disse aos investigadores que pediu assistência medica, mas não há registro disponível de um médico ter sido chamado. Quando Diaz entrou na sala do chuveiro, disse, ficou surpreendido por ver que os joelhos de Jamadi estavam torcidos, e que estava quase ajoelhado. Swanner, disse ele, queria que os soldados reposicionassem Jamadi, de modo que ficasse mais erecto. Diaz chamou ajuda adicional de dois outros soldados da sua companhia, o sargento Jeffery Frost e Dennis Stevanus. Mas depois de terem sido bem sucedidos em porem Jamadi de pé por um momento, como pedido, prendendo as algemas mais acima na janela, Jamadi sucumbiu de novo. Diaz disse-me: «Ao princípio pensei, “este tipo está bêbado”. Simplesmente deslizava até onde estavam as suas mãos, como se saísse das algemas. Parecia estranho. Eu pensava, “deve dor—lhe”. Todo o seu peso estava sobre as mãos e pulsos – parecia que estava a ponto de deslocar as articulações».
Swanner, que Diaz descreveu como um «tipo branco com excesso de peso, de aspecto esfarrapado», que vestia roupa preta, estava aparentemente menos preocupado. «Dizia “Está só a fazer-se de morto”», recordou Diaz. «Ele pensava que ele estava a fingir. Não estava nada preocupado». Enquanto Jamadi estava pendurado pelos seus braços, disse-me Diaz, Swanner «simplesmente continuava a falar com ele. Mas não havia resposta».

Frost contou aos investigadores da CIA que o interrogador tinha dito que Jamadi estava simplesmente «a fazer­‑se de morto». Mas quando Frost levantou Jamadi pelo seu fato­‑macaco, notando que se enterrava entre as pernas, pensou, “Este prisioneiro é muito bom a fazer­‑se de morto”». Quando o corpo de Jamadi afrouxou de novo, Frost lembrou­‑se de ter comentado que «nunca tinha visto os braços de alguém posicionados daquela maneira, e surpreendia­‑o que simplesmente não se deslocassem».
Diaz, sentindo que algo estava mal, levantou o capuz de Jamadi. A sua cara estava muito amachucada. Diaz pôs um dedo diante dos olhos abertos de Jamadi, que não se moveram nem piscaram, e deduziu que estava morto. Quando os homens baixaram Jamadi para o chão, contou Frost aos investigadores, «começou a jorrar sangue do nariz e da boca, como se uma torneira tivesse sido aberta».
Swanner, que se tinha mostrado tão imperturbado, de repente pareceu «surpreendido» e «pasmado», segundo Frost. Começou a falar de como Jamadi tinha lutado e resistido durante todo o caminho para a prisão. Também fez chamadas do seu telemóvel. Em minutos, disse Diaz, chegaram à cena quatro ou cinco agentes OGA adicionais, também vestidos de negro.
O doutor Steven Miles, um especialista em ética médica da Universidade de Minnesota, que está a escrever um estudo das práticas médicas dos EUA durante a guerra contra o terrorismo, examinou o incidente de Jamadi em detalhe. Recentemente relatou-me o que ocorreu naquela manhã. «Um médico iraquiano que trabalhava com a CIA confirmou a morte de Jamadi. O capitão Donald Reese, comandante da polícia militar de Abu Ghraib, chegou à sala do chuveiro e ouviu o coronel Thomas M. Pappas, comandante de inteligência militar na prisão, dizer: «Não vou cair por isto sozinho».
O pessoal da CIA ordenou que o corpo de Jamadi fosse mantido na sala do chuveiro até à manhã seguinte. O cadáver foi posto em gelo envolvido em plástico, aparentemente numa tentativa de atrasar o processo de descomposição e, segundo crê Miles, para tentar dificultar a datação da morte. O gelo já estava a derreter­‑se quando a especialista Sabrina Harman posou para umas fotos enquanto se inclinava sobre o corpo de Jamadi, sorrindo e pondo o polegar para cima. No dia seguinte, um médico inseriu uma intravenosa no braço de Jamadi, pôs o corpo numa maca, e tirou-o da prisão como se Jamadi estivesse meramente doente, para «não perturbar os outros detidos». A outros interrogadores, disse Miles, «foi­‑lhes dito que Jamadi tinha morrido de um ataque de coração». (Não há evidência médica de que Jamadi tenha sofrido paragem cardíaca.) Um oficial de inteligência militar relatou mais tarde que um condutor de táxi local foi pago para levar o corpo de Jamadi.
Antes de sair, contou Frost aos investigadores, Swanner confidenciou que «não tinha conseguido nenhuma informação do prisioneiro». Os agentes da CIA levaram com eles o capuz ensanguentado que tinha coberto a cabeça de Jamadi; foi mais tarde deitado fora. «Eles destruíram as provas e não preservaram o local do crime», disse Spinner, o advogado de um dos SEALS.
No dia seguinte Swanner entregou uma declaração aos investigadores do Exército, enfatizando que não tinha posto uma mão em Jamadi, e que não tinha feito nada de mal. «Clint C.», o tradutor, também disse que Swanner não tinha golpeado Jamadi. «Não penso que alguém quisesse que o tipo morresse», disse­‑me um antigo investigador do caso, que pediu para não ser identificado. Mas pensa que a decisão de algemar Jamadi à janela reflecte uma intenção de causar sofrimento. (Sob as leis estadunidenses e internacionais, a intenção é crucial para avaliar a criminalidade em crimes de guerra ou casos de tortura.) A CIA, disse, «pô-lo nessa posição para fazê-lo falar. Eles assumiram que dor equivale a cooperação».

A autópsia, efectuada por patologistas militares cinco dias mais tarde, classificou a morte de Jamadi como homicídio, dizendo que a causa da morte foi «respiração comprometida» e «lesões com objectos contundentes» na cabeça e no torso de Jamadi. Mas parece que os patologistas que realizaram a autópsia não sabiam que Jamadi tinha sido algemado a uma janela alta. Quando foi feita uma descrição da posição de Jamadi a dois dos mais proeminentes examinadores médicos do país – ambos os quais se ofereceram para rever o relatório da autópsia de graça, a pedido de um dos advogados dos SEALS – a sua conclusão foi diferente. Miles, independentemente, concordou.
Um desses examinadores, o Dr. Michael Baden, que é o principal patologista forense da Polícia do Estado de New York, disse-me: «O que me impressionou foi que Jamadi estava vivo e bem quando entrou na prisão. Os SEALS foram acusados de causar lesões na cabeça antes de ele chegar, mas ele não tinha lesões significativas na cabeça – certamente nenhuma lesão cerebral que pudesse ter­‑lhe causado a morte». As lesões de Jamadi, disse ele, eram sem dúvida dolorosas, mas não mortais. Baden continuou: «Também tinha lesões nas costelas. Não se morre-se de costelas partidas. Mas se tivesse estado pendurado dessa forma e tivesse partido as costelas, isso é diferente». No seu julgamento, «asfixia é do que morreu – como numa crucificação». Baden, que tinha inspeccionado um saco de plástico do mesmo tipo que foi colocado sobre a cabeça de Jamadi, afirmou que o saco «pode ter dificultado a sua respiração, mas não pode ter morrido só disso». De maior importância, pensava, era a posição de Jamadi. «Se as suas mãos foram levantadas um metro e meio, chegavam à altura do pescoço. Isso é bastante duro. Isso poria muita tensão nos músculos do tórax, que são necessários para respirar. Não só é doloroso – pode impedir o diafragma de subir e baixar e o tórax de se expandir. Os músculos cansam-se, e o funcionamento da respiração é prejudicado, por isso há menos oxigénio a entrar na corrente sanguínea». Uma pessoa nestas condições primeiro perderia a consciência, disse, e eventualmente morreria. O capuz, sugeriu, teria provavelmente complicado o problema, porque os interrogadores «não podem ver a sua cara se está a ficar azul. Vemos muito sobre a condição de um paciente olhando para a sua cara. Ao porem esse maldito capuz, não podem ver se está consciente». Também «não lhes permite saber quando morreu». A conclusão, disse Baden, é que Jamadi «não morreu como resultado de nenhuma lesão recebida antes de entrar na prisão».
O Dr. Ciril Wecht, médico e advogado, que é o coroner [6] do condado de Allegheny, Pennsylvania, e antigo presidente da Academia Americana de Ciência Forense, chegou independentemente à mesma conclusão. A interpretação avançada pelos patologistas militares, disse, «não encaixavam no seu próprio relatório. Disseram que morreu por trauma causado por objecto contundente, no entanto não havia evidência significativa de trauma na cabeça». Wecht pensa, em vez disso, que Jamadi «morreu de respiração comprometida», e que «a posição em que o corpo estava teria sido a causa de morte». Acrescentou: «Repare, eu não sou um crítico da guerra do Iraque. Mas não penso que devamos reduzir‑nos aos níveis bárbaros dos insurgentes».
Walter Diaz disse-me: «Alguém deveria ser acusado. Se Jamadi já estava algemado, não havia razão para tratar o tipo da forma como o foi – o modo como o penduraram». Diaz afirmou que não sabia se Swanner tinha tencionado torturar Jamadi, ou se a morte foi acidental. Mas ficou perturbado com a inacção do governo, e o que viu como uma tentativa da CIA de tapar o assunto. «Tentaram culpar os SEALS. A CIA teve um grande papel nisto. Mas você conhece a CIA – quem vai opor­‑se a eles?»
Segundo Jeffrey Smith, antigo conselheiro geral da CIA, e agora um advogado privado que trata de casos de segurança nacional, uma decisão de processar Swanner «provavelmente chegaria até ao Procurador Geral». Críticos da Administração, como John Sifton, advogado da Human Rights Watch, questionam se Alberto Gonzales, que se tornou Procurador Geral no ano passado, não tem demasiados conflitos de interesses para avaliar imparcialmente o caso contra Swanner. Disse Sifton: «É difícil imaginar a liderança actual a perseguir estes tipos, porque o chefe do Departamento de Justiça, Alberto Gonzales, teve um papel central na elaboração das políticas que levaram aos abusos». Sugeriu que a actuação prudente seria Gonzales «recusar­‑se tomar parte nessa decisão e deixá­‑la para o subprocurador, ou para um funcionário de carreira».
Mas também aqui há conflitos políticos. É no escritório de Paul McNulty – cuja nomeação para ser segundo de Gonzales será em breve apresentada ao Congresso, e que foi membro do staff republicano do Congresso antes de ser nomeado procurador – que o caso de Jamadi abancou. E Alice Fisher, a nova chefe da divisão criminal do Departamento de Justiça, só conseguiu o posto graças a uma nomeação de recesso [7]; durante as audiências de confirmação, Fisher, que previamente lidou com casos de contra­‑terrorismo para o departamento, recusou-se a fornecer toda a informação que lhe foi pedida a respeito do seu conhecimento do abuso de prisioneiros pela CIA, e o Congresso não aprovou a sua nomeação.
Ainda mais inquietante é a possibilidade de que, sob as directivas de interrogatório secretas da Administração Bush, o assassinato de Jamadi possa não ter violado nenhuma lei. Jeffrey Smith diz que é possível que os memorandos do Escritório de Conselho Legal possam ter criado demasiados vazios legais para interrogadores como Swanner, «tornando o processamento de algum modo demasiado difícil». Smith acrescentou: «Mas, mesmo sob a definição ampliada de tortura, não vejo como alguém golpeado com as suas mãos atadas, que depois morreu enquanto pendurado – como isso poderia ser legal. Sentiria vergonha se alguém argumentasse que o é.»
O senador Richard Durbin, um democrata por Illinois, fez parte do Comité de Inteligência do Senado até Janeiro. Antes de o seu mandato terminar, pôde ver o conjunto classificado completo de fotografias de Abu Ghraib. Numa entrevista recente no seu escritório no Capitólio, disse: «Você não pode imaginar o que é ir para um quarto fechado onde há um relatório classificado, e estar ombro a ombro com os seus colegas do Senado, e ver centenas e centenas de slides como os de Abu Ghraib, a maioria dos quais nunca foram publicamente divulgados. Senti‑me doente quando saí». Continuou: «Foi então que comecei a ter suspeitas de que algo significativo estava a ocorrer nos mais altos níveis do governo, no que dizia respeito à política de tortura».
Desde então, Durbin tem estado a tentar preencher os vazios que permitem ao pessoal do governo levar a cabo interrogatórios brutais. No ano passado, introduziu uma emenda na lei de autorização de defesa estabelecendo que a CIA estava coberta pelas leis estadunidenses que proíbem a tortura e o trato cruel, desumano e degradante de prisioneiros. Mas os seus esforços encontraram uma forte resistência da Administração Bush, e a emenda não passou. Durbin tentou outros estratagemas legislativos, sem muito sucesso. Eventualmente John McCain retomou a causa de Durbin – o que conduziu às confrontações do mês passado com Cheney e Goss. O escândalo de Abu Ghraib não parece ter moderado Cheney nem nenhuns outros funcionários da Administração; na verdade, eles estão pela primeira vez a argumentar abertamente e explicitamente que o pessoal da CIA deveria ser eximido das normas que se aplicam ao resto dos estadunidenses.
«Preocupa-me que o governo não avance com estes processamentos», disse Durbin a respeito dos casos da CIA. «É realmente difícil entender as políticas da Administração nisto. Penso que o mundo era muito simples antes do 11/Set. Sabíamos qual era a lei, e eu entendia que se aplicava a todos no governo. Agora há uma verdadeira incerteza. Há uma sombra sobre a nossa nação que precisa ser dissipada». [8]

Notas do tradutor:
[1] Vice president for torture, editorial do Washington Post, 26/10/2005.
[2] Comité de Conferência (Conference Committee): Um comité que é designado para expor diferenças específicas de opinião entre a Câmara de Deputados e o Senado a respeito das propostas de lei que cada Câmara tenha sancionado, mas com posições diferentes numa ou mais emendas.
[3] Ver http://www.newyorker.com/archive/previous/articles
[4] Ver http://www.salon.com/news/abu_ghraib/2006/03/14
[5] Dana Priest, CIA holds terror suspects in secret prisons, Washington Post, 02/11/2005
[6] Os coroners nos EUA são em geral funcionários eleitos, mas não judiciais. Costumam depender só de cada Estado ou dos condados. Ocupam-se em geral de determinar as causas e circunstâncias das mortes violentas cuja causa se desconhece.
[7] A nomeação de recesso (recess appointment) produz-se quando o presidente dos EUA decide preencher uma vaga numa posição federal durante um recesso do Senado. Estão autorizadas pela Constituição (Art. II). Costumam usar-se para casos difíceis, com a esperança de que após o recesso a oposição tenha diminuído. Ainda que não está claro quão longo deve ser o recesso para que o Presidente possa usar este poder. Roosevelt chegou a realizar nomeações durante recessos de um só dia.
[8] Este artigo, publicado em The New Yorker em Novembro de 2005, ajuda a entender o que ocorreu depois. Em 15 de Dezembro, o Congresso acabou por aprovar a lei McCain, e Bush não se animou a vetá­‑la. A foto do aperto de mãos com McCain e a frase «Mandámos uma mensagem ao mundo de que os Estados Unidos não são como os terroristas», percorreram o mundo. Menos publicidade recebeu o signing statement emitido por Bush duas semanas depois. Um signing statement é a posição oficial do presidente declarando a sua interpretação de uma nova lei. Bush interpreta que a lei McCain está limitada pela autoridade “constitucional” do Presidente, como Comandante em Chefe. Nas palavras de David Golove, professor de Direito da Universidade de Nova York: «Este signing statement está a dizer “Só cumprirei a lei se quiser, e se surgir alguma coisa na guerra contra o terrorismo pela qual considere importante torturar ou praticar um comportamento cruel, desumano e degradante, tenho a autoridade para o fazer e nada na lei me deterá». (Charlie Savage, Bush could bypass new torture ban, The Boston Globe, 04/01/2006). Este novo passo segue as linhas do memorando de Yoo, mencionado no artigo de Jane Mayer, sobre o papel do presidente como Comandante em Chefe e é uma nova mostra do avanço da Administração Bush sobre o poder judicial (ver a declaração dos senadores democratas a respeito disso em Charlie Savage, 3 GOP senators blast Bush bid to bypass
torture ban, The Boston Globe, 05/01/2006). A importância dos signing statements para a Administração Bush pode quantificar­‑se: menos de 400 foram emitidos desde 1817 até à chegada de Bush, enquanto este emitiu 435 só no seu primeiro mandato (Jennifer Van Bergen, The unitary executive: is the doctrine behind the Bush presidency consisten
with a democratic state?, FindLaw, 09/01/2006). Em 95 deles Bush alude à doutrina do unitary executive que sugere que os poderes presidenciais são quase ilimitados. O candidato de Bush para o Tribunal Supremo, Samuel Alito, foi no passado um fervoroso defensor desta doutrina, embora actualmente mostre certas convenientes reservas.
Jane Mayer

http://infoalternativa.org/usa/usa105.htm

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