sexta-feira, agosto 25, 2006

As falsas aparências da ajuda ao desenvolvimento

Uma “generosidade” muito mediatizada


A 10 de Junho de 2005, os ministros das Finanças do G8 anunciaram ruidosamente um pequeno abatimento da dívida externa do Sul (40 mil milhões em 2,5 biliões de dólares). A 6 de Julho, África e o aquecimento do planeta serão temas centrais da próxima Cimeira do G8, em Edimburgo. Também a ajuda ao desenvolvimento deveria ser aumentada. Mas estas iniciativas mediáticas mascaram a avareza do Norte em relação ao Sul, receitas económicas desastrosas e segundas intenções geoestratégicas.
Actualmente, são várias as razões que permitem prognosticar um aumento considerável da ajuda pública ao desenvolvimento (adiante designada APD) destinada aos países do Sul, em 2005. Em primeiro lugar, em Fevereiro de 2005, os países contribuintes decidiram entregar 18 mil milhões de dólares ao Banco Mundial, «afim de permitir um crescimento de pelo menos 25 por cento do montante dos seus donativos e empréstimos» [1]. Em segundo lugar, o maremoto que atingiu várias regiões do Oceano Índico em Dezembro de 2004 fez com que chegasse à Ásia uma ajuda financeira fundamental para a reconstrução das zonas costeiras destruídas [2]. Em terceiro lugar, o acordo assinado, em Novembro de 2004, pelos países do Clube de Paris, prevê uma anulação de 80 por cento da dívida pública do Iraque a esses países (30 por cento desde o dia 1 de Janeiro de 2005). E se os Estados Unidos e os seus aliados já tinham incluído 2,2 mil milhões de dólares de despesas no Iraque nas suas APD relativas a 2004, agora, «conforme o ritmo da aplicação dos acordos bilaterais concluídos entre o Iraque e os seus credores, os membros do CAD – Comité de Ajuda ao Desenvolvimento [3] – poderão eventualmente incluir na APD de 2005 até 15 mil milhões de dólares a título desse esforço de aligeiramento da dívida» [4].
Contudo, apesar das declarações mediáticas, a maioria dos governos dos países ricos escapam ao compromisso, tomado em 1970 diante das Nações Unidas, de consagrar à APD 0,7 por cento do seu rendimento nacional bruto (RNB) – ou seja, o produto interno bruto mais os rendimentos “recebidos do resto do mundo”. É certo que a forte diminuição da ajuda, constatada ao longo dos anos 90, parece controlada: após ter baixado em um terço quando comparada com o RNB dos países membros do CAD – de 0,34 por cento em 1990 para 0,22 por cento em 2001 –, a APD voltou a subir para 0,25 por cento em 2004, correspondentes a 78,6 mil milhões de dólares [5]. Mas esta inversão da tendência, embora notável, está ainda longe de ser vertiginosa.

UMA HEMORRAGIA DE CAPITAIS

O objectivo de 0,7 por cento só foi atingido por alguns países do Norte da Europa – Noruega, Luxemburgo, Dinamarca, Suécia e Holanda – enquanto há três países que não ultrapassam os 0,2 por cento – Itália, Estados Unidos e Japão. A 24 de Maio de 2005, os países da União Europeia avançaram com o valor de 0,56 por cento até 2010, e 0,7 por cento até 2015. Esta promessa terá mais hipóteses de ser cumprida do que a de 1970?
Na verdade, a própria natureza da APD e o seu conteúdo constituem um problema. A definição dada pelo CAD revela os seus limites e predetermina os seus erros: ela seria, na prática, constituída por «empréstimos ou donativos atribuídos aos países e territórios que figuram na parte I da lista dos beneficiários da ajuda (...) por parte do sector público, com o objectivo primordial de facilitar o desenvolvimento económico e de melhorar as condições de vida». O CAD mantém uma lista, chamada “parte I”, actualmente composta por 150 países e territórios com rendimentos fracos ou intermédios, que recebem esta ajuda. Os outros países, ditos “em transição” e formando a “parte II”, são os países que saíram do bloco soviético e alguns outros mais avançados: os empréstimos e os donativos que lhes são concedidos não contam para a APD.
Por outro lado, os empréstimos são tidos em conta no cálculo desde que sejam atribuídos aos países elegíveis a uma taxa inferior à taxa do mercado e desde que comportem uma parcela doada superior a 25 por cento. O montante em causa está longe de ser negligenciável: no final de 2002, a dívida dos países do Sul ligada à APD – e à ajuda pública – elevava-se a 171,7 mil milhões de dólares [6]. Quer isto dizer que esta ajuda é em si própria geradora de dívida. Consequentemente, os reembolsos que ela engendra provocam uma hemorragia de capitais nos países do Sul. Entre o fim de 1996 e o fim de 2003, no que diz respeito aos créditos bilaterais a taxas preferenciais, os países em desenvolvimento reembolsaram os seus credores em 31 mil milhões de dólares a mais do que aquilo que receberam em novos empréstimos [7]. Feitas as contas, os países doadores enriquecem à custa daqueles que era suposto ajudarem.
A definição dos objectivos destas doações e empréstimos é suficientemente vaga para deixar livre curso a múltiplas manipulações estatísticas. De facto, as principais actividades financiadas estão muito afastadas das necessidades prioritárias das populações. O exame dos números de 2003 revela que 12 por cento da APD foram consagrados a abatimentos da dívida, não criando por isso qualquer fluxo financeiro positivo para os países endividados. E este número quadruplicou em três anos. A impostura está no facto de muitas vezes os créditos anulados serem antigos e duvidosos. A sua anulação não é mais do que uma operação de saneamento das contas por parte de países que disto se aproveitam duplamente no plano mediático, já que podem anunciar alto e bom som uma redução da dívida, antes de proclamarem, no ano seguinte, um aumento da sua ajuda ao desenvolvimento, quando na verdade se tratou da mesma operação financeira.
O anúncio em Londres, a 11 de Junho de 2005, pelos ministros das Finanças dos sete países mais industrializados – o G7 – da anulação de uma parte da dívida multilateral de 18 países pobres muito endividados (PPME) insere­‑se nesta lógica. Apresentada como um favor “histórico”, o apagar da dívida detida pelo Banco Mundial, o Banco Africano de Desenvolvimento e o Fundo Monetário Internacional só abrange os países que participam na iniciativa PPME, aceitando pelo menos quatro longos anos de camisa-de-forças neoliberal (abertura dos mercados em proveito das multinacionais; privatizações; liberalização da economia; aumento da fiscalidade indirecta – IVA –, das propinas e das despesas com a saúde, tudo medidas que afectam sobretudo os pobres). Estes 18 países não representam mais do que 5 por cento da população total dos países em desenvolvimento. O custo desta anulação deve elevar-se a uns meros 1,2 mil milhões de dólares por ano para os países do G7, ou seja 600 vezes menos do que as suas despesas militares, e sem a mínima garantia de que esse valor não será acrescentado à APD actual.

A parte correspondente ao reembolso da dívida, que se eleva a 30 por cento em França, permitiu o anúncio de um aumento da APD em 2003, quando na realidade, se excluirmos a redução da dívida, esta na prática diminuiu [8]. Da mesma forma, uma redução da dívida a cobrar à República Democrática do Congo permitiu que a Bélgica anunciasse uma APD em clara subida em 2003 (0,60 por cento do RNB contra 0,43 por cento em 2002). Mas, a partir de 2004, o número voltou a cair para 0,41 por cento, revelando o embuste. O recorde para 2004 é de Portugal, cuja APD cresceu 187,5 por cento na sequência de um excepcional perdão de dívida a Angola.
Como se isto não bastasse, o tratamento contabilístico destas anulações é discutível. Segundo as regras da OCDE, um empréstimo comercial atribuído em 1990 e anulado em 2005 leva a um aumento da APD de 2005. No papel, tudo se passa como se os fundos fossem novamente distribuídos, quando não é nada disso que acontece.
Pior ainda: é o valor nominal dos créditos anulados que é tido em conta. Ora, face às dificuldades encontradas pelos países implicados, uma avaliação real da sua dívida deveria integrar um desvalorização significativa, que traduzisse o facto de qualquer credor que tente vender essa dívida, hoje em dia, ser obrigado a baixar muito o seu preço para encontrar um comprador. Para os PPME, «o governo dos Estados Unidos – que está encarregado pelo Congresso de calcular o valor actualizado do seu caderno de empréstimos – aplica um índice de desvalorização de 92 por cento» [9]. Nestas condições, incluir na APD o valor nominal dos créditos anulados, como fazem os governos dos países industrializados (entre os quais os Estados Unidos) representa uma distorção deliberada.
Além disso, a cooperação técnica – mais de um quarto da APD – engloba «os donativos a pessoas que saíram dos países beneficiários da ajuda e que frequentam o ensino ou a formação no seu país ou no estrangeiro», bem como «os pagamentos destinados a recompensar os consultores, conselheiros e pessoal análogo, mais os professores e administradores em missão nos países beneficiários». No entanto, toda a gente sabe que os professores de países ricos expatriados dão muitas vezes aulas em estruturas escolares frequentadas maioritariamente pelos filhos dos outros expatriados...
A França, o Canadá, a Áustria e a Alemanha contabilizam na sua APD as despesas de educação, a saber, o custo gerado pelos estudantes originários dos países elegíveis que prosseguem os estudos de segundo e terceiro ciclos nos quatro países citados. Em princípio, o CAD tolera a inclusão das despesas de educação, com a condição de que os estudos seguidos estejam relacionados com as questões do desenvolvimento e que os estudantes regressem depois para exercer nos seus países de origem. O cálculo real não é tido em conta porque, por um lado, integra as somas antes de saber se esse retorno será efectivo, e, por outro, leva em linha de conta os estudantes estrangeiros nascidos nos países doadores e que na maior parte dos casos ficam por lá. As somas em causa têm o seu peso: 660 milhões de euros no caso da França, em 2005.

REFORÇO DAS ZONAS DE INFLUÊNCIA

As despesas ligadas ao “acolhimento” dos refugiados são também incluídas na APD: ou seja, os custos da detenção ou expulsão, em condições muitas vezes dramáticas, de numerosos candidatos ao asilo que tentam encontrar refúgio nos países do Norte para escapar à repressão. O vínculo com o desenvolvimento dos países do Sul é impossível de justificar nestes casos. E também aqui as somas implicadas são significativas: no caso da França, em 2005, 373 milhões de euros, seis vezes mais do que em 1996 [10].
Segundo a OCDE, perto de três quartos da APD bilateral é constituída por fundos “com objectivos especiais”, como a cooperação técnica, os abatimentos de dívidas, o apoio de emergência e os custos administrativos. O Banco Mundial acrescenta: «Ainda que os donativos com objectivos especiais sejam um elemento essencial do processo de desenvolvimento e tenham um impacte orçamental nos países doadores, eles não fornecem recursos financeiros adicionais para atingir os objectivos do Milénio» [11]. De facto, uma parte importante das somas declaradas é despendida no país “doador” (compra de alimentos, de medicamentos, de equipamentos, frete de veículos, missões com especialistas, etc.), ou a ele regressam, como reconheceu Robert McNamara, presidente do Banco Mundial entre 1968 e 1981.
Para piorar as coisas, esta ajuda não se concentra prioritariamente nos países que mais necessidades têm. Em 2002­‑2003, apenas 41 por cento das ajudas foram dirigidos para os 50 países menos desenvolvidos [12]. Pelo contrário, a parte que coube ao Afeganistão, à Colômbia, ao Iraque, à Jordânia e ao Paquistão, nos valores totais da APD bilateral, foi multiplicada 3,5 vezes entre 2000 e 2003, confirmando que os factores estratégicos continuam a desempenhar um papel preponderante na distribuição de recursos aos países beneficiários. O principal objectivo dos doadores é claramente o reforço da sua zona de influência, através do apoio político aos dirigentes aliados do Sul, de forma a conseguirem impor­‑lhes certas decisões económicas e controlar as posições que eles adoptam aquando das cimeiras internacionais.


[1] Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), L’aide publique au développement augmente à nouveau – mais les objectifs pour 2006 restent un défi, 11 de Abril 2005.
[2] Damien Millet e Eric Toussaint, Les Tsunamis de la dette, CADTM/Syllepse, Paris, 2005.
[3] Instância da OCDE, composta por 23 dos 30 países desta organização, o CAD está encarregado de centralizar as informações que dizem respeito à APD.
[4] OCDE, L’Aide publique au développement augmente à nouveau (...), ibid.
[5] Por comparação, cada ano, os países em vias de desenvolvimento desembolsam mais de 370 mil milhões de dólares para o reembolso da sua dívida externa. Ver a página do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM).
[6] OCDE, Statistiques de la dette extérieure 1998-2002, Paris, 2003.
[7] Cálculo dos autores, a partir de Global Development Finance 2004, Banco Mundial, Washington, 2004.
[8] Dette & Développement, Rapport 2003-2004: la dette face à la démocratie [pdf], 2004.
[9] Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (CNUCED), Le développement économique en Afrique. Endettement viable: Oasis ou mirage?, Genebra, 2004.
[10] Alto Conselho da Cooperação Internacional, La Programmation de l’aide publique française au développement. Recommandations, sugestão adoptada em sessão plenária a 11 de Maio de 2005.
[11] Banco Mundial, Global Development Finance 2005, op. cit.
[12] Ver OCDE, Direcção da Cooperação para o Desenvolvimento (CAD), Anexo estatístico da publicação, Coopération pour le développement, Rapport 2004, quadro 26.

Damien Millet e Eric Toussaint

http://infoalternativa.org/autores/toussaint/toussaint018.htm

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