Em virtude de uma propaganda maciça e de uma repressão feroz, a política de Hitler beneficiou durante muito tempo de um sólido consenso. O historiador Götz Aly revela como os nazis se serviram da pilhagem da Europa, a começar pela dos bens dos judeus, para assegurar aos alemães um elevado nível de vida.
Este livro analisa uma questão simples, que continua sem resposta: como pôde aquilo acontecer? Como puderam os alemães, cada qual no seu âmbito pessoal, permitir e cometer crimes em massa e sem precedentes, em particular o genocídio dos judeus da Europa? O ódio atiçado pelo Estado contra todas as populações «inferiores», «polacos», «bolcheviques» e «judeus», fazia sem dúvida parte das condições necessárias, mas não constitui resposta suficiente.
Nos anos que antecederam o regime hitleriano não havia entre os alemães mais ressentimentos do que entre os outros europeus; o seu nacionalismo não era mais racista do que o das outras nações. Não houve uma Sonderweg (excepção alemã) que pudesse estabelecer uma relação lógica com Auschwitz. Não tem nenhuma base empírica a ideia de que uma xenofobia específica, um anti-semitismo exterminador, se terá desenvolvido muito cedo na Alemanha. É um erro supor que um extravio de consequências tão funestas terá necessariamente tido causas específicas e longínquas. O Partido Nacional‑Socialista Alemão dos Trabalhadores (NSDAP) ficou a dever a conquista e a consolidação do seu poder a um conjunto de circunstâncias, situando‑se os factores mais importantes depois de 1914, e não antes.
A relação entre povo e elite política durante o nacional-socialismo encontra-se no âmago do presente estudo. Está demonstrado que o edifício do poder hitleriano foi desde o primeiro dia extremamente frágil, sendo necessário perguntar como se terá ele estabilizado, sem dúvida de forma incerta, porém suficiente para durar doze anos inflamados e destruidores. É por isso que convém explicitarmos a questão levantada de início de modo geral (“Como pôde aquilo acontecer?”), perguntando agora: como foi que um empreendimento como o nazismo, que retrospectivamente se apresenta tão abertamente mistificador, megalómano e criminoso, conseguiu obter um consenso político com uma amplidão que hoje nos é difícil explicar?
Para tentar dar uma resposta convincente, encaro o nazismo numa perspectiva que o apresenta como uma ditadura ao serviço do povo. O período da guerra, que também mostra muito claramente as outras características do nazismo, permite responder da melhor maneira a estas questões tão importantes. Hitler, os gauleiter (chefes regionais) do NSDAP, uma boa parte dos ministros, secretários de Estado e conselheiros agiram como demagogos clássicos, procurando saber sistematicamente como garantir e consolidar a satisfação geral, comprando dia-a-dia a aprovação da opinião pública ou, pelo menos, a sua indiferença. Dar e receber foi a base sobre a qual ergueram uma ditadura consensual sempre maioritária na opinião pública, depois de a análise do desmoronamento interno, no fim da Primeira Guerra Mundial, haver evidenciado os obstáculos que a sua política de beneficência popular tinha de evitar.
Por conseguinte, durante a Segunda Guerra Mundial os responsáveis nazis tentaram, por um lado, distribuir os víveres de maneira a que a sua repartição fosse encarada como justa, sobretudo pelas pessoas mais modestas; por outro lado, fizeram tudo o que puderam para manter a estabilidade, pelo menos aparente, do Reichsmark (RM), de modo a eliminar qualquer inquietante lembrança da inflação de guerra entre 1914 e 1918 ou do desmoronamento da moeda alemã em 1923; por último, coisa que não tinha sido feita durante a Primeira Guerra Mundial, agiram de maneira a remunerar suficientemente as famílias, que passaram a auferir quase 85 por cento dos anteriores salários líquidos dos soldados mobilizados – contra menos de metade do que recebiam as famílias britânicas e americanas na mesma situação. Não era raro as esposas e as famílias dos soldados alemães terem mais dinheiro do que antes da guerra; além disso, beneficiavam também dos presentes que os soldados, quando iam de licença, levavam em massa, bem como das encomendas, remetidas pelo correio, provenientes dos países ocupados e destinadas aos exércitos.
Para reforçar essa ilusão de conquistas garantidas e que podiam ainda aumentar, Hitler conseguiu que os camponeses, os operários, os empregados e os pequenos e médios funcionários não fossem afectados de maneira significativa pelos impostos de guerra, o que também neste caso representou uma diferença essencial em comparação com a situação na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Além disso, paralelamente a essa exoneração da grande maioria dos contribuintes alemães, houve um aumento considerável da carga fiscal suportada pelas camadas sociais que dispunham de grandes ou muito grandes rendimentos. O imposto excepcional de 8 mil milhões de Reichsmarks que os proprietários de imóveis tiveram de pagar em fins de 1942 constitui um exemplo flagrante da política de justiça social ostensivamente praticada pelo III Reich. Tal como a exoneração fiscal dos pagamentos extra relativos ao trabalho exercido de noite e nos domingos e feriados, concedida depois da vitória sobre a França, e encarada pelos alemães, até há pouco tempo, como um adquirido social.
Na mesma medida em que o regime nazi foi impiedoso contra os judeus e as populações consideradas, do ponto de vista racial, inferiores ou estrangeiras (fremdvölkisch), a sua consciência de classe levou-o a repartir os encargos com vantagem para os mais fracos.
É óbvio que as classes afortunadas (4 por cento dos contribuintes alemães auferiam então mais de 6000 RM por ano) não podiam por si só, com os seus impostos, fornecer os fundos necessários ao financiamento da Segunda Guerra Mundial. Mas então, como terá sido financiada a guerra mais onerosa da história mundial de modo a que a maioria da população alemã se visse minimamente afectada? A resposta é evidente: Hitler poupou os arianos médios à custa do mínimo vital de outras categorias populacionais.
Para continuar a ter os favores do seu próprio povo, o governo do Reich arruinou também as moedas da Europa, exigindo custos de ocupação cada vez mais elevados. Para assegurar o nível de vida da sua população, fez roubar às outras populações milhões de toneladas de géneros alimentícios, de modo a poder alimentar os seus soldados e expedir o restante para a Alemanha. Os exércitos alemães, do mesmo modo que deviam alimentar‑se à custa dos países ocupados, deviam também pagar as suas despesas correntes com o dinheiro desses países, coisa que amplamente conseguiram.
Os soldados alemães mobilizados para o estrangeiro – ou seja, quase todos – e a totalidade dos fornecimentos à Wehrmacht nos países ocupados, as matérias-primas, produtos industriais e géneros alimentícios comprados localmente e destinados à Wehrmacht ou destinados a ser expedidos para a Alemanha, tudo era pago noutra moeda que não o Reichsmark. Os responsáveis aplicaram expressamente os seguintes princípios: se alguém tiver de morrer à fome, que sejam os outros; se a inflação de guerra for inevitável, que ela recaia sobre todos os países menos na Alemanha.
A segunda parte deste livro analisa as estratégias elaboradas com esses objectivos. Os cofres alemães foram também sustentados com os muitos milhões obtidos com a espoliação dos judeus da Europa, assunto que constitui a terceira parte do livro, onde exporei como os judeus foram espoliados, primeiro na Alemanha e depois nos países aliados e nos que estavam ocupados pela Wehrmacht. (...)
Alicerçando-se numa guerra predadora e racial de grande envergadura, o socialismo nacional estabeleceu, nos seus começos, uma verdadeira igualdade, em particular através duma política de promoção social duma amplitude sem precedentes na Alemanha, que o tornou simultaneamente popular e criminoso. O conforto material, as vantagens obtidas com o crime em grande escala, por certo de forma indirecta e sem compromisso da responsabilidade pessoal, mas muito facilmente aceite, alimentaram a consciência, entre a maior parte dos alemães, de que o regime era solícito para com o povo. E, reciprocamente, foi disso que a política de extermínio extraiu a sua energia, ou seja, adoptando como critério o bem-estar do povo. A ausência de uma resistência interna digna deste nome e, ulteriormente, a falta de sentimento de culpa, decorrem dessa constelação histórica. É esse o objecto da quarta parte do livro.
Mas ao responder assim ao problema de sabermos “como pôde aquilo acontecer”, está fora de questão uma qualquer redução pedagógica a simples fórmulas antifascistas; esta resposta não se afixa facilmente nas paredes e é quase impossível isolá-la das histórias nacionais do pós‑guerra dos alemães da República Democrática da Alemanha (RDA), da República Federal da Alemanha (RFA) e da Áustria. Parece todavia necessário apreendermos o regime nazi como um socialismo nacional, para, no mínimo, pormos em dúvida a recorrente projecção da culpa sobre indivíduos e grupos claramente circunscritos – em que vemos estigmatizados, ora o ditador delirante, patológico e “carismático”, bem como o seu círculo mais próximo, ora os ideólogos do racismo (resultante duma moda passageira, própria duma geração que teve a mesma socialização); ou então, segundo outros, de forma exclusiva ou não, os banqueiros, os grandes patrões, os generais ou comandos de assassinos sujeitos a uma loucura homicida. Na RDA, na Áustria e na RFA foram adoptadas as mais diversas estratégias de defesa, mas todas iam no mesmo sentido e asseguravam às populações maioritárias uma existência sossegada e uma consciência tranquila. (...)
Em geral identificam-se um pouco facilmente os oportunistas que se aproveitaram da arianização com os grandes industriais e banqueiros. As comissões de inquérito sobre o período nazi, criadas durante a década de 1990 em muitos Estados europeus ou em grandes empresas e constituídas por historiadores especializados, reforçaram essa impressão, que é falsa relativamente à situação como um todo. A historiografia, um pouco mais subtil, acrescenta sem custo alguns funcionários nazis de posição mais ou menos elevada ao número dos que lucraram com a arianização. Desde há alguns anos, são também apontados vizinhos vulgares, alemães, mas também polacos, checos ou húngaros, pessoas cujos serviços duvidosos prestados à potência ocupante foram muitas vezes remunerados com bens retirados aos judeus. Mas qualquer teoria que se focalize apenas nos aproveitadores privados trilhará caminho errado e passará ao lado da questão central: que foi feito dos bens dos judeus europeus expropriados e assassinados? (...)
Essa técnica de financiamento da guerra, aplicada na Alemanha desde 1938, que consistiu em impor a conversão do património privado em empréstimos ao Estado, foi ignorada pelos que abordaram a arianização numa perspectiva jurídica, moral ou historiográfica. Uma tal ideia correspondeu à vontade que os dirigentes alemães tiveram de silenciar a utilidade material do saque. Como era tabu evocar a conversão forçada dos valores judeus em empréstimos ao Estado, os números concretos das receitas continuaram a ser secretos. A perseguição dos judeus tinha de ser apresentada e vista como uma questão puramente ideológica, devendo as vítimas indefesas de um gigantesco assassinato predador surgir aos olhos de todos como inimigos desprezíveis.
Em 1943, uma lista estabelecida pelo alto comando da Wehrmacht, que recenseou dezanove problemas políticos e militares causadores de perturbações entre os soldados – aos quais os oficiais deviam dar respostas tão homogéneas quanto possível –, incluía a seguinte pergunta: «Não teremos nós ido longe demais na questão judaica?» A resposta era assim: «Pergunta errada! O princípio nacional‑socialista decorre da nossa Weltanschauung (concepção do mundo) – e isto é indiscutível!» [1] Ora, não se pode confundir a lista de argumentos posta à disposição dos doutrinários nazis e a situação histórica real. (...)
É inegável que houve na Alemanha um número muito grande de cépticos. A maior parte das pessoas que se deixaram levar pelo nazismo fizeram-no com base em pontos imprecisos do programa político do partido. Uns serviram o NSDAP porque este tomou a iniciativa de combater a França, inimigo hereditário; os outros porque este jovem Estado rompia vigorosamente com as representações morais tradicionais. Alguns eclesiásticos católicos benzeram as armas que iam ser utilizadas na cruzada contra o bolchevismo pagão ao mesmo tempo que se opuseram à confiscação dos bens da Igreja e aos crimes de eutanásia; ao invés, houve Volksgenossen (literalmente: camaradas do povo, ou seja, cidadãos arianos) de sensibilidade sobretudo socialista que se entusiasmaram com as dimensões anticlericais e anti‑elitistas do socialismo nacional. Foi precisamente porque este se alicerçava em diversas afinidades parciais que o seguidismo de milhões de alemães, com motivações pontuais mas com consequências funestas, pôde à posteriori ser facilmente reformulado como uma “resistência”, desprovida de eficácia histórica.
O actor Wolf Goette, citado no capítulo sobre os saqueadores satisfeitos com Hitler, era um homem tão afastado da ideologia nazi como Heinrich Böll. Sempre achou que a política alemã era «de causar vómitos» e tinha um «sentimento de insuportável vergonha» quando se cruzava com uma pessoa que envergasse a «insígnia amarela». No entanto, ao contrário de Böll, ele teve num primeiro momento a impressão de que o filme Ich klage na (Acuso), que fazia a apologia da eutanásia, era um documento de «orientação justa e conveniente», uma obra de arte perturbante «que demonstrava, com notável qualidade cinematográfica», a «necessidade» da eutanásia «em certos casos de doenças incuráveis», embora Goette tenha depois exprimido discretas dúvidas, «na hipótese de um Estado arbitrário reivindicar essa ideia». Mas independentemente da sua posição quanto às diversas medidas políticas adaptadas, Goette apreciou sempre as possibilidades de carreira e de consumo que a ditadura alemã lhe dava em Praga, «cidade de sonho». Preocupado com os seus pequenos interesses pessoais, encontrava-se assim politicamente neutralizado [2].
Por outro lado, só o ritmo desenfreado da acção permitia que Hitler mantivesse em equilíbrio a mistura sempre instável dos mais diversos interesses e posições políticas. Era nisso que residia a alquimia política do seu regime. Ele impedia que tudo se desmoronasse graças ao encadeamento quase ininterrupto das decisões e dos acontecimentos. Valorizava o NSDAP e apoiava os militantes da primeira hora, os Gauleiter e os Reichsleiter, muito mais empenhadamente do que os ministros. A sua habilidade para estruturar o poder tornou‑se manifesta depois de 1933, quando não deixou o Partido todo‑poderoso reduzir-se a um simples apêndice do Estado. Pelo contrário, soube – ao contrário do Partido Socialista Unificado (SED) da RDA, mais tarde – mobilizar o aparelho de Estado com um êxito sem precedentes, deixá-lo desenvolver uma criatividade que concorria para os objectivos do «levantamento nacional», e solicitar as forças do país até ao extremo.
Na sua maioria, os alemães sucumbiram primeiro à vertigem, depois à ebriedade da aceleração da história, e em seguida – quando aconteceu Estalinegrado, cujo impacte se acentuou no interior com os bombardeamentos “em tapete” e com o terror desde então manifesto – a um estado de comoção que provocou o mesmo torpor. Os ataques aéreos provocaram mais indiferença do que medo, levando os alemães a um certo “estarem‑se nas tintas”; os mortos tombados na frente oriental acentuaram a tendência para as pessoas se focalizarem nas preocupações do quotidiano e nas expectativas dos próximos sinais de vida do filho, do marido ou do noivo [3].
Os alemães viveram os doze anos do nazismo como um estado de emergência permanente. No turbilhão dos acontecimentos, perderam toda a noção de equilíbrio e moderação. «Tudo isto provoca em mim o efeito de um filme» [4], notou em 1938, em plena crise dos Sudetas, Vogel, o merceeiro a que alude Victor Klemperer. Um ano depois, nove dias após o início da campanha contra a Polónia, Hermann Göring garantiu aos operários das fábricas Rheinmettal‑Borsig, em Berlim, que em breve eles poderiam ter confiança em dirigentes «que a energia impulsiona para a frente» [5]. Na Primavera de 1941, Joseph Goebbels confirmou essa ideia no seu Diário: «Um ritmo louco durante todo o dia»; «a vida ofensiva e fulgurante recomeça agora». Ou então, na ebriedade antibritânica da vitória: «Ando todo o dia com um sentimento de felicidade febril» [6].
Hitler aludiu muitas vezes, no círculo restrito dos seus amigos, à eventualidade da sua morte próxima, para manter o ritmo insano necessário ao equilíbrio político do seu regime. Actuava como um funâmbulo diletante que só consegue manter o equilíbrio fazendo movimentos balanceados cada vez mais amplos, cada vez mais rápidos, depois precipitados e vãos e que acaba, inevitavelmente, por cair. É por isso que a análise das decisões políticas e militares de Hitler tem mais pertinência se ela se abstrair da excessiva propaganda sobre o futuro e situar essas iniciativas nas suas motivações imediatas e nos efeitos pretendidos a muito curto prazo.
Götz Aly
Historiador, Berlim. Texto extraído do seu livro Hitlers Volkstaat. Raub, Rassenkrieg und Nationaler Sozialismus (O Estado do Povo de Hitler. Pilhagem, Guerra Racial e Socialismo Nacional), publicado em Março de 2005 na editorial S. Fischer, Frankfurt; edição francesa: Comment Hitler a acheté les Allemands: Le IIIe Reich, une dictature au service du peuple, Flammarion, Paris, 2005.
[1] Serviços administrativos da Wehrmacht, Pontos discutidos [Maio de 1943], NA, RG 238, box 26 (Reinecke Files).
[2] Wolf Goette (1909-1995) à sua família e a A., Arquivos Wolf Goette, Praga, 1939-1942, WOGOs Briefe.
[3] Birthe Kundrus, Kriegerfrauen. Familienpolitik und Geschlechterverhältnisse im Ersten und Zweiten Wetkrieg, Hamburgo, 1995, p. 315.
[4] Victor Klemperer, Mes soldats de papier: Journal 1933-1941, Paris, 2000, p. 397.
[5] Völkischer Beobachter, 11 de Setembro de 1939.
[6] Elke Fröhlich (ed.), Die Tagebücher von Joseph Goebbels, Munique, 1997, parte 1, vol. 9, p. 171 (5 de Março de 1941), p. 229 (6 de Abril de 1941), p. 247 (14 de Abril de 1941).
http://infoalternativa.org/memoria/memoria002.htm
Nos anos que antecederam o regime hitleriano não havia entre os alemães mais ressentimentos do que entre os outros europeus; o seu nacionalismo não era mais racista do que o das outras nações. Não houve uma Sonderweg (excepção alemã) que pudesse estabelecer uma relação lógica com Auschwitz. Não tem nenhuma base empírica a ideia de que uma xenofobia específica, um anti-semitismo exterminador, se terá desenvolvido muito cedo na Alemanha. É um erro supor que um extravio de consequências tão funestas terá necessariamente tido causas específicas e longínquas. O Partido Nacional‑Socialista Alemão dos Trabalhadores (NSDAP) ficou a dever a conquista e a consolidação do seu poder a um conjunto de circunstâncias, situando‑se os factores mais importantes depois de 1914, e não antes.
A relação entre povo e elite política durante o nacional-socialismo encontra-se no âmago do presente estudo. Está demonstrado que o edifício do poder hitleriano foi desde o primeiro dia extremamente frágil, sendo necessário perguntar como se terá ele estabilizado, sem dúvida de forma incerta, porém suficiente para durar doze anos inflamados e destruidores. É por isso que convém explicitarmos a questão levantada de início de modo geral (“Como pôde aquilo acontecer?”), perguntando agora: como foi que um empreendimento como o nazismo, que retrospectivamente se apresenta tão abertamente mistificador, megalómano e criminoso, conseguiu obter um consenso político com uma amplidão que hoje nos é difícil explicar?
Para tentar dar uma resposta convincente, encaro o nazismo numa perspectiva que o apresenta como uma ditadura ao serviço do povo. O período da guerra, que também mostra muito claramente as outras características do nazismo, permite responder da melhor maneira a estas questões tão importantes. Hitler, os gauleiter (chefes regionais) do NSDAP, uma boa parte dos ministros, secretários de Estado e conselheiros agiram como demagogos clássicos, procurando saber sistematicamente como garantir e consolidar a satisfação geral, comprando dia-a-dia a aprovação da opinião pública ou, pelo menos, a sua indiferença. Dar e receber foi a base sobre a qual ergueram uma ditadura consensual sempre maioritária na opinião pública, depois de a análise do desmoronamento interno, no fim da Primeira Guerra Mundial, haver evidenciado os obstáculos que a sua política de beneficência popular tinha de evitar.
Por conseguinte, durante a Segunda Guerra Mundial os responsáveis nazis tentaram, por um lado, distribuir os víveres de maneira a que a sua repartição fosse encarada como justa, sobretudo pelas pessoas mais modestas; por outro lado, fizeram tudo o que puderam para manter a estabilidade, pelo menos aparente, do Reichsmark (RM), de modo a eliminar qualquer inquietante lembrança da inflação de guerra entre 1914 e 1918 ou do desmoronamento da moeda alemã em 1923; por último, coisa que não tinha sido feita durante a Primeira Guerra Mundial, agiram de maneira a remunerar suficientemente as famílias, que passaram a auferir quase 85 por cento dos anteriores salários líquidos dos soldados mobilizados – contra menos de metade do que recebiam as famílias britânicas e americanas na mesma situação. Não era raro as esposas e as famílias dos soldados alemães terem mais dinheiro do que antes da guerra; além disso, beneficiavam também dos presentes que os soldados, quando iam de licença, levavam em massa, bem como das encomendas, remetidas pelo correio, provenientes dos países ocupados e destinadas aos exércitos.
Para reforçar essa ilusão de conquistas garantidas e que podiam ainda aumentar, Hitler conseguiu que os camponeses, os operários, os empregados e os pequenos e médios funcionários não fossem afectados de maneira significativa pelos impostos de guerra, o que também neste caso representou uma diferença essencial em comparação com a situação na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Além disso, paralelamente a essa exoneração da grande maioria dos contribuintes alemães, houve um aumento considerável da carga fiscal suportada pelas camadas sociais que dispunham de grandes ou muito grandes rendimentos. O imposto excepcional de 8 mil milhões de Reichsmarks que os proprietários de imóveis tiveram de pagar em fins de 1942 constitui um exemplo flagrante da política de justiça social ostensivamente praticada pelo III Reich. Tal como a exoneração fiscal dos pagamentos extra relativos ao trabalho exercido de noite e nos domingos e feriados, concedida depois da vitória sobre a França, e encarada pelos alemães, até há pouco tempo, como um adquirido social.
Na mesma medida em que o regime nazi foi impiedoso contra os judeus e as populações consideradas, do ponto de vista racial, inferiores ou estrangeiras (fremdvölkisch), a sua consciência de classe levou-o a repartir os encargos com vantagem para os mais fracos.
É óbvio que as classes afortunadas (4 por cento dos contribuintes alemães auferiam então mais de 6000 RM por ano) não podiam por si só, com os seus impostos, fornecer os fundos necessários ao financiamento da Segunda Guerra Mundial. Mas então, como terá sido financiada a guerra mais onerosa da história mundial de modo a que a maioria da população alemã se visse minimamente afectada? A resposta é evidente: Hitler poupou os arianos médios à custa do mínimo vital de outras categorias populacionais.
Para continuar a ter os favores do seu próprio povo, o governo do Reich arruinou também as moedas da Europa, exigindo custos de ocupação cada vez mais elevados. Para assegurar o nível de vida da sua população, fez roubar às outras populações milhões de toneladas de géneros alimentícios, de modo a poder alimentar os seus soldados e expedir o restante para a Alemanha. Os exércitos alemães, do mesmo modo que deviam alimentar‑se à custa dos países ocupados, deviam também pagar as suas despesas correntes com o dinheiro desses países, coisa que amplamente conseguiram.
Os soldados alemães mobilizados para o estrangeiro – ou seja, quase todos – e a totalidade dos fornecimentos à Wehrmacht nos países ocupados, as matérias-primas, produtos industriais e géneros alimentícios comprados localmente e destinados à Wehrmacht ou destinados a ser expedidos para a Alemanha, tudo era pago noutra moeda que não o Reichsmark. Os responsáveis aplicaram expressamente os seguintes princípios: se alguém tiver de morrer à fome, que sejam os outros; se a inflação de guerra for inevitável, que ela recaia sobre todos os países menos na Alemanha.
A segunda parte deste livro analisa as estratégias elaboradas com esses objectivos. Os cofres alemães foram também sustentados com os muitos milhões obtidos com a espoliação dos judeus da Europa, assunto que constitui a terceira parte do livro, onde exporei como os judeus foram espoliados, primeiro na Alemanha e depois nos países aliados e nos que estavam ocupados pela Wehrmacht. (...)
Alicerçando-se numa guerra predadora e racial de grande envergadura, o socialismo nacional estabeleceu, nos seus começos, uma verdadeira igualdade, em particular através duma política de promoção social duma amplitude sem precedentes na Alemanha, que o tornou simultaneamente popular e criminoso. O conforto material, as vantagens obtidas com o crime em grande escala, por certo de forma indirecta e sem compromisso da responsabilidade pessoal, mas muito facilmente aceite, alimentaram a consciência, entre a maior parte dos alemães, de que o regime era solícito para com o povo. E, reciprocamente, foi disso que a política de extermínio extraiu a sua energia, ou seja, adoptando como critério o bem-estar do povo. A ausência de uma resistência interna digna deste nome e, ulteriormente, a falta de sentimento de culpa, decorrem dessa constelação histórica. É esse o objecto da quarta parte do livro.
Mas ao responder assim ao problema de sabermos “como pôde aquilo acontecer”, está fora de questão uma qualquer redução pedagógica a simples fórmulas antifascistas; esta resposta não se afixa facilmente nas paredes e é quase impossível isolá-la das histórias nacionais do pós‑guerra dos alemães da República Democrática da Alemanha (RDA), da República Federal da Alemanha (RFA) e da Áustria. Parece todavia necessário apreendermos o regime nazi como um socialismo nacional, para, no mínimo, pormos em dúvida a recorrente projecção da culpa sobre indivíduos e grupos claramente circunscritos – em que vemos estigmatizados, ora o ditador delirante, patológico e “carismático”, bem como o seu círculo mais próximo, ora os ideólogos do racismo (resultante duma moda passageira, própria duma geração que teve a mesma socialização); ou então, segundo outros, de forma exclusiva ou não, os banqueiros, os grandes patrões, os generais ou comandos de assassinos sujeitos a uma loucura homicida. Na RDA, na Áustria e na RFA foram adoptadas as mais diversas estratégias de defesa, mas todas iam no mesmo sentido e asseguravam às populações maioritárias uma existência sossegada e uma consciência tranquila. (...)
Em geral identificam-se um pouco facilmente os oportunistas que se aproveitaram da arianização com os grandes industriais e banqueiros. As comissões de inquérito sobre o período nazi, criadas durante a década de 1990 em muitos Estados europeus ou em grandes empresas e constituídas por historiadores especializados, reforçaram essa impressão, que é falsa relativamente à situação como um todo. A historiografia, um pouco mais subtil, acrescenta sem custo alguns funcionários nazis de posição mais ou menos elevada ao número dos que lucraram com a arianização. Desde há alguns anos, são também apontados vizinhos vulgares, alemães, mas também polacos, checos ou húngaros, pessoas cujos serviços duvidosos prestados à potência ocupante foram muitas vezes remunerados com bens retirados aos judeus. Mas qualquer teoria que se focalize apenas nos aproveitadores privados trilhará caminho errado e passará ao lado da questão central: que foi feito dos bens dos judeus europeus expropriados e assassinados? (...)
Essa técnica de financiamento da guerra, aplicada na Alemanha desde 1938, que consistiu em impor a conversão do património privado em empréstimos ao Estado, foi ignorada pelos que abordaram a arianização numa perspectiva jurídica, moral ou historiográfica. Uma tal ideia correspondeu à vontade que os dirigentes alemães tiveram de silenciar a utilidade material do saque. Como era tabu evocar a conversão forçada dos valores judeus em empréstimos ao Estado, os números concretos das receitas continuaram a ser secretos. A perseguição dos judeus tinha de ser apresentada e vista como uma questão puramente ideológica, devendo as vítimas indefesas de um gigantesco assassinato predador surgir aos olhos de todos como inimigos desprezíveis.
Em 1943, uma lista estabelecida pelo alto comando da Wehrmacht, que recenseou dezanove problemas políticos e militares causadores de perturbações entre os soldados – aos quais os oficiais deviam dar respostas tão homogéneas quanto possível –, incluía a seguinte pergunta: «Não teremos nós ido longe demais na questão judaica?» A resposta era assim: «Pergunta errada! O princípio nacional‑socialista decorre da nossa Weltanschauung (concepção do mundo) – e isto é indiscutível!» [1] Ora, não se pode confundir a lista de argumentos posta à disposição dos doutrinários nazis e a situação histórica real. (...)
É inegável que houve na Alemanha um número muito grande de cépticos. A maior parte das pessoas que se deixaram levar pelo nazismo fizeram-no com base em pontos imprecisos do programa político do partido. Uns serviram o NSDAP porque este tomou a iniciativa de combater a França, inimigo hereditário; os outros porque este jovem Estado rompia vigorosamente com as representações morais tradicionais. Alguns eclesiásticos católicos benzeram as armas que iam ser utilizadas na cruzada contra o bolchevismo pagão ao mesmo tempo que se opuseram à confiscação dos bens da Igreja e aos crimes de eutanásia; ao invés, houve Volksgenossen (literalmente: camaradas do povo, ou seja, cidadãos arianos) de sensibilidade sobretudo socialista que se entusiasmaram com as dimensões anticlericais e anti‑elitistas do socialismo nacional. Foi precisamente porque este se alicerçava em diversas afinidades parciais que o seguidismo de milhões de alemães, com motivações pontuais mas com consequências funestas, pôde à posteriori ser facilmente reformulado como uma “resistência”, desprovida de eficácia histórica.
O actor Wolf Goette, citado no capítulo sobre os saqueadores satisfeitos com Hitler, era um homem tão afastado da ideologia nazi como Heinrich Böll. Sempre achou que a política alemã era «de causar vómitos» e tinha um «sentimento de insuportável vergonha» quando se cruzava com uma pessoa que envergasse a «insígnia amarela». No entanto, ao contrário de Böll, ele teve num primeiro momento a impressão de que o filme Ich klage na (Acuso), que fazia a apologia da eutanásia, era um documento de «orientação justa e conveniente», uma obra de arte perturbante «que demonstrava, com notável qualidade cinematográfica», a «necessidade» da eutanásia «em certos casos de doenças incuráveis», embora Goette tenha depois exprimido discretas dúvidas, «na hipótese de um Estado arbitrário reivindicar essa ideia». Mas independentemente da sua posição quanto às diversas medidas políticas adaptadas, Goette apreciou sempre as possibilidades de carreira e de consumo que a ditadura alemã lhe dava em Praga, «cidade de sonho». Preocupado com os seus pequenos interesses pessoais, encontrava-se assim politicamente neutralizado [2].
Por outro lado, só o ritmo desenfreado da acção permitia que Hitler mantivesse em equilíbrio a mistura sempre instável dos mais diversos interesses e posições políticas. Era nisso que residia a alquimia política do seu regime. Ele impedia que tudo se desmoronasse graças ao encadeamento quase ininterrupto das decisões e dos acontecimentos. Valorizava o NSDAP e apoiava os militantes da primeira hora, os Gauleiter e os Reichsleiter, muito mais empenhadamente do que os ministros. A sua habilidade para estruturar o poder tornou‑se manifesta depois de 1933, quando não deixou o Partido todo‑poderoso reduzir-se a um simples apêndice do Estado. Pelo contrário, soube – ao contrário do Partido Socialista Unificado (SED) da RDA, mais tarde – mobilizar o aparelho de Estado com um êxito sem precedentes, deixá-lo desenvolver uma criatividade que concorria para os objectivos do «levantamento nacional», e solicitar as forças do país até ao extremo.
Na sua maioria, os alemães sucumbiram primeiro à vertigem, depois à ebriedade da aceleração da história, e em seguida – quando aconteceu Estalinegrado, cujo impacte se acentuou no interior com os bombardeamentos “em tapete” e com o terror desde então manifesto – a um estado de comoção que provocou o mesmo torpor. Os ataques aéreos provocaram mais indiferença do que medo, levando os alemães a um certo “estarem‑se nas tintas”; os mortos tombados na frente oriental acentuaram a tendência para as pessoas se focalizarem nas preocupações do quotidiano e nas expectativas dos próximos sinais de vida do filho, do marido ou do noivo [3].
Os alemães viveram os doze anos do nazismo como um estado de emergência permanente. No turbilhão dos acontecimentos, perderam toda a noção de equilíbrio e moderação. «Tudo isto provoca em mim o efeito de um filme» [4], notou em 1938, em plena crise dos Sudetas, Vogel, o merceeiro a que alude Victor Klemperer. Um ano depois, nove dias após o início da campanha contra a Polónia, Hermann Göring garantiu aos operários das fábricas Rheinmettal‑Borsig, em Berlim, que em breve eles poderiam ter confiança em dirigentes «que a energia impulsiona para a frente» [5]. Na Primavera de 1941, Joseph Goebbels confirmou essa ideia no seu Diário: «Um ritmo louco durante todo o dia»; «a vida ofensiva e fulgurante recomeça agora». Ou então, na ebriedade antibritânica da vitória: «Ando todo o dia com um sentimento de felicidade febril» [6].
Hitler aludiu muitas vezes, no círculo restrito dos seus amigos, à eventualidade da sua morte próxima, para manter o ritmo insano necessário ao equilíbrio político do seu regime. Actuava como um funâmbulo diletante que só consegue manter o equilíbrio fazendo movimentos balanceados cada vez mais amplos, cada vez mais rápidos, depois precipitados e vãos e que acaba, inevitavelmente, por cair. É por isso que a análise das decisões políticas e militares de Hitler tem mais pertinência se ela se abstrair da excessiva propaganda sobre o futuro e situar essas iniciativas nas suas motivações imediatas e nos efeitos pretendidos a muito curto prazo.
Götz Aly
Historiador, Berlim. Texto extraído do seu livro Hitlers Volkstaat. Raub, Rassenkrieg und Nationaler Sozialismus (O Estado do Povo de Hitler. Pilhagem, Guerra Racial e Socialismo Nacional), publicado em Março de 2005 na editorial S. Fischer, Frankfurt; edição francesa: Comment Hitler a acheté les Allemands: Le IIIe Reich, une dictature au service du peuple, Flammarion, Paris, 2005.
[1] Serviços administrativos da Wehrmacht, Pontos discutidos [Maio de 1943], NA, RG 238, box 26 (Reinecke Files).
[2] Wolf Goette (1909-1995) à sua família e a A., Arquivos Wolf Goette, Praga, 1939-1942, WOGOs Briefe.
[3] Birthe Kundrus, Kriegerfrauen. Familienpolitik und Geschlechterverhältnisse im Ersten und Zweiten Wetkrieg, Hamburgo, 1995, p. 315.
[4] Victor Klemperer, Mes soldats de papier: Journal 1933-1941, Paris, 2000, p. 397.
[5] Völkischer Beobachter, 11 de Setembro de 1939.
[6] Elke Fröhlich (ed.), Die Tagebücher von Joseph Goebbels, Munique, 1997, parte 1, vol. 9, p. 171 (5 de Março de 1941), p. 229 (6 de Abril de 1941), p. 247 (14 de Abril de 1941).
http://infoalternativa.org/memoria/memoria002.htm
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