sexta-feira, agosto 25, 2006

“Como podemos ficar parados e permitir que isto continue?”

Escreveram os nomes das crianças mortas nas suas mortalhas de plástico. «Mehdi Hashem, 7 anos – Qana», foi escrito com uma caneta de feltro no saco onde repousava o corpo do rapazinho. «Hussein al-Mohamed, 12 anos – Qana», «Abbas al-Shalhoub, um ano – Qana». E quando o soldado libanês veio recolher o pequeno corpo de Abbas, este curvou-se no seu ombro, como o menino poderia ter feito no ombro do seu pai no Sábado. No total, 56 corpos foram trazidos para o hospital governamental de Tiro e para outras enfermarias, dos quais 34 eram crianças. Quando se esgotaram os sacos de plástico, embrulharam os pequenos corpos em tapetes. Os seus cabelos estavam polvilhados de pó, muitos tinham sangue a escorrer do nariz.
É preciso ter-se um coração de pedra para não sentir a indignação que aqueles de nós que assistiram a isto ontem experimentaram. Este massacre foi uma obscenidade, uma atrocidade – sim, se a força aérea israelita bombardeia, de facto, com a “precisão de ponta de alfinete” que reclama, isto também foi um crime de guerra. Israel alegou que tinham sido disparados mísseis pelos guerrilheiros do Hezbollah da cidade de Qana no sul do Líbano – como se isso justificasse este massacre. O primeiro-ministro de Israel, Ehud Olmert, falou sobre o «terror islâmico» que ameaça a «civilização ocidental» – como se o Hezbollah tivesse morto todas estas pobres pessoas.
E em Qana, de todos os lugares! Pois há apenas 10 anos, este foi o cenário de um outro massacre israelita, a matança de 106 refugiados libaneses por uma bateria de artilharia israelita, enquanto se abrigavam numa base da ONU na cidade. Mais de metade dessas 106 pessoas eram crianças. Mais tarde, Israel disse que não tinha nenhum avião não tripulado de reconhecimento fotográfico em tempo real sobre o local do massacre – uma declaração que se verificou não ser verdadeira quando o The Independent descobriu uma cassete de vídeo que mostrava um avião desse tipo sobre o campo em chamas. É como se Qana – cujos habitantes afirmam ter sido esta a aldeia onde Jesus transformou a água em vinho – fosse amaldiçoada pelo mundo, condenada para sempre a receber tragédia.
E não há dúvidas acerca do míssil que matou todas aquelas crianças ontem. Veio dos Estados Unidos, e num fragmento estava escrito: «Para uso na Bomba Guiada BSU-37-B da MK-84». Sem dúvida que os fabricantes podem dizê-lo “provado em combate”, porque destruiu todo o prédio de três andares em que as famílias Shalhoub e Hashim viviam. Tinham¬ se refugiado de um enorme bombardeamento israelita na cave, e foi aí que a maioria deles morreu.
Encontrei Nejwah Shalhoub deitada no hospital governamental de Tiro, a sua face e o seu maxilar com ligaduras, como Robespierre antes da sua execução. Ela não chorou, nem gritou, apesar de a dor estar escrita na sua cara. O seu irmão Taisir, que tinha 46 anos, tinha sido morto. Assim como a sua irmã Najla. Assim como a sua pequena sobrinha Zeinab, que tinha apenas 6 anos. «Estávamos na cave escondidos quando a bomba explodiu à uma da manhã», disse ela. «Em nome de Deus, o que fizemos nós para merecer isto? Tantos dos mortos são crianças, idosos, mulheres. Algumas das crianças ainda estavam acordadas a brincar. Porque é que o mundo nos faz isto?».
As mortes de ontem elevaram para mais de 500 o número total de mortos civis no Líbano, desde que começaram os bombardeamentos israelitas por ar, terra e água, a 12 de Julho, depois de membros do Hezbollah terem cruzado a linha da fronteira, terem morto três soldados israelitas e capturado outros dois. Mas o massacre de ontem acabou com mais de um ano de antagonismo mútuo dentro do governo libanês quando políticos pró-americanos e pró-sírios denunciaram o que descreverem como «um crime hediondo».
Milhares de manifestantes atacaram o maior edifício das Nações Unidas em Beirute, gritando: «Destruam Telavive, destruam Telavive», e o primeiro-ministro do Líbano, o habitualmente imperturbável Fouad Siniora, telefonou à secretária de Estado estadunidense Condoleezza Rice e ordenou¬ lhe que cancelasse a sua iminente viagem de paz a Beirute.
Ninguém neste país pode esquecer como o presidente George Bush, Rice, e Tony Blair se recusaram repetidamente a pedir um cessar-fogo imediato – uma trégua que teria salvo todas aquelas vidas ontem. Rice diria apenas: «Queremos um cessar-fogo logo que possível», um comentário seguido por um anúncio israelita de que tencionavam manter os seus bombardeamentos do Líbano por pelo menos mais duas semanas.
Durante o dia, os habitantes de Qana e os trabalhadores da protecção civil escavaram as ruínas do edifício com pás e com as mãos, rasgando o entulho até que encontraram um corpo atrás de outro, ainda vestidos com roupas coloridas. Numa das secções do entulho, encontraram o que restava de um único quarto com 18 corpos lá dentro. Doze dos mortos eram mulheres. Por todo o sul do Líbano encontram-se agora cenas como esta, não tão grotescas em escala, talvez, mas igualmente terríveis, pois as pessoas destas vilas estão aterrorizadas para sair e aterrorizadas para ficar. Os israelitas largaram panfletos sobre Qana, ordenando às pessoas que deixassem as suas casas. No entanto, já por duas vezes desde que começou a investida de Israel, os israelitas ordenaram aos habitantes para abandonarem as suas casas e depois atacaram-nos com aviões enquanto eles obedeciam às instruções israelitas e fugiam. Há pelo menos 3000 muçulmanos xiitas encurralados entre Qlaya e Aiteroun – perto do cenário da última incursão militar de Israel em Bint Jbeil – e, no entanto, nenhum deles pode sair sem medo de morrer nas estradas.
E qual foi a reacção de Olmert? Depois de expressar o seu «grande pesar», ele anunciou que: «Nós não vamos parar esta batalha, apesar dos difíceis incidentes [sic] desta manhã. Vamos continuar a actividade, e se necessário será estendida sem hesitação». Mas quanto mais poderá ser estendida? A infra¬ estrutura libanesa está a ser progressivamente feita em pedaços, as suas vilas arrasadas, o seu povo cada vez mais aterrorizado – e terror é a palavra que utilizaram – por caça¬¬ bombardeiros israelitas feitos na América. Os mísseis do Hezbollah são feitos no Irão, e foi o Hezbollah que iniciou esta guerra com as suas incursões ilegais e provocadoras pela fronteira. Mas a selvajaria de Israel contra a população civil chocou profundamente não apenas os diplomatas ocidentais que permanecem em Beirute, mas centenas de trabalhadores humanitários da Cruz Vermelha e de grandes agências humanitárias.
Incrivelmente, ontem Israel negou uma passagem segura à caravana do Programa Alimentar das Nações Unidas em rota para o Sul, uma missão de seis camiões que deveria levar produtos de assistência para a cidade de Marjayoun no sudeste. Mais de três quartos de um milhão de libaneses fugiram das suas casas, mas não existe ainda um valor preciso para o número total dos que ainda estão encurralados no sul. Khalil Shalhoub, que sobreviveu entre os destroços de Qana ontem, disse que a sua família e a dos Hashims estavam demasiado «aterrorizadas» para se lançarem para fora da vila à estrada, a qual tem sido atacada por aviões há mais de duas semanas. A auto¬ estrada de 7 milhas entre Qana e Tiro está desfeita com casas civis em ruínas e carros familiares incendiados. Na quinta-feira, a rádio Al-Mashriq do exército israelita, que difunde para o sul do Líbano, disse aos residentes que as suas aldeias seriam «totalmente destruídas» se fossem disparados mísseis delas. Mas quem quer que tenha visto os bombardeamentos de Israel nestas duas últimas semanas sabe que, em muitos casos, os israelitas não sabem o local de onde o Hezbollah está a disparar mísseis, e – quando sabem – falham frequentemente os seus alvos. Como poderá um habitante de uma vila ou aldeia impedir o Hezbollah de disparar foguetes da sua rua? O Hezbollah resguarda-se de facto junto de casas civis – tal como as tropas israelitas ao entrar em Bint Jbeil na semana passada também utilizaram casas civis para se resguardarem. Mas pode isto ser a desculpa para uma matança desta dimensão?
Siniora dirigiu-se ontem aos diplomatas estrangeiros em Beirute, dizendo¬ lhes que o governo em Beirute estava agora apenas a pedir um imediato cessar-fogo e que já não estava interessado num pacote político a acompanhᬠlo. Escusado será dizer que Jeffrey Feltman, cujo país fez a bomba que matou os inocentes de Qana, optou por não comparecer.
Robert Fisk
http://infoalternativa.org/autores/fisk/fisk091.htm

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