«É proibido utilizar, contra os civis, a fome como método de guerra. (…).É proibido atacar, destruir, retirar ou pôr fora de uso bens indispensáveis à sobrevivência da população civil». As implicações do artigo 54 do Protocolo adicional I de 1977 às convenções de Genebra [1] são claras: o bombardeamento das centrais eléctricas em Gaza pelo exército israelita, o bloqueio das populações civis e as punições colectivas contra elas são do âmbito dos crimes de guerra.
Outro princípio do direito internacional violado pela ofensiva israelita é precisado pelo mesmo Protocolo adicional: o da proporcionalidade. O texto estipula que ataques «são interditos se é previsível que causem acessoriamente perdas em vidas humanas na população civil, ferimentos nas pessoas civis ou prejuízos de bens de carácter civil que seriam excessivos em relação ao ganho militar concreto e directo esperado» [2]. Quem pode pensar um instante que o objectivo afirmado – salvar um soldado – valha estas múltiplas destruições?
Contrariamente ao que escreveram vários jornais franceses, entre eles o Libération [3], Israel negociou várias vezes trocas de prisioneiros: assim, em 1985, libertou 1.150 prisioneiros palestinianos para recuperar três dos seus soldados que tinham sido capturados pela Frente Popular de Libertação da Palestina – Comando Geral (FPLP‑CG); e em 2004, no âmbito de um acordo do mesmo tipo com o Hezbollah libanês, trocou 400 prisioneiros palestinos contra um coronel israelita e os corpos de três soldados mortos. As negociações não são melhores para obter directamente a libertação de Gilad Shalit que as operações militares, que correm o risco de conduzir à morte do refém?
Como observa o editorial [4] do diário israelita Haaretz de 30 de Junho: «Bombardear pontes que podem ser contornadas a pé ou de automóvel; tomar o controlo de um aeroporto que está em ruínas há anos; destruir uma estação eléctrica, mergulhando grandes partes de Gaza na escuridão; distribuir folhetos dizendo às pessoas que deviam estar preocupadas com o seu destino; um voo ameaçador sobre o palácio de Bachar Assad; e prender responsáveis eleitos do Hamas: o governo quer convencer-nos de que todas estas acções tencionam libertar o soldado Gilad Shalit». E o comentarista prossegue: «Olmert deveria saber que prender líderes só os reforça e aos seus partidários. Mas isto não é somente um raciocínio defeituoso: prender pessoas para usar como moeda de troca é o acto de um gang, não de um Estado».
Com efeito, como revelaram os meios de comunicação social israelitas, esta ofensiva, incluindo a detenção dos principais responsáveis do Hamas, deputados eleitos e ministros à cabeça, tinha sido planificada há muito tempo. Por quais razões? Trata-se de acabar definitivamente, não somente com o governo palestiniano procedente do voto de Janeiro de 2006, mas com qualquer forma de autoridade palestiniana. É a lógica do “plano de desconexão” decidido por Ariel Sharon e retomado por Ehud Olmert: pretender que não existe interlocutor palestiniano para poder traçar unilateralmente as fronteiras de Israel. Esta estratégia não data da vitória do Hamas; durante todo o ano de 2005, quando Mahmoud Abbas estava à cabeça da Autoridade e governava com uma maioria da Fatah, o primeiro‑ministro Ariel Sharon recusou sistematicamente negociar com ele e prosseguiu, apesar da decisão do Tribunal Internacional de Justiça, a construção do muro. Esta escolha unilateral representa a posta em causa da última aquisição dos acordos Oslo: a convicção (confirmada pelo documento de
reconhecimento mútuo [5] entre Israel e OLP, assinado em 9 de Setembro de 1993 por Itzhak Rabin e Yasser Arafat) de que a solução do conflito israelo‑palestiniano assenta numa negociação bilateral entre a OLP e o Estado de Israel.
A vitória do Hamas nas eleições de Janeiro de 2006 [6] permitiu ao governo israelita acentuar a sua propaganda em torno do tema “não há um interlocutor palestiniano”. Os Estados Unidos e a União Europeia (com o aval da França [7]) puseram três condições ao novo governo palestiniano – reconhecer o Estado de Israel; parar todas as acções armadas; aceitar o processo Oslo – e suspenderam a ajuda directa, contribuindo significativamente para os sofrimentos de uma população culpada de ter “votado mal”. A complacência em relação a um governo israelita que recusa reconhecer o direito dos palestinianos a um Estado independente nos territórios ocupados em 1967, que utiliza o terrorismo contra os civis e que nega todos os compromissos dos acordos de Oslo, não tem limite. Pôde‑se mesmo ouvir Benita Ferrero-Waldner, comissária europeia para os negócios estrangeiros, saudar o unilateralismo do governo israelita como «uma decisão corajosa».
Não foi sem dúvida por acaso que a ofensiva actual coincidiu com a assinatura da declaração comum [8] de todas as organizações palestinianas (com a excepção da Djihad islâmica), que prevê o estabelecimento de um Estado palestiniano independente em todos os territórios ocupados em 1967, com Jerusalém-Leste como capital – e representa pois um reconhecimento de facto de Israel. Foi também esta nova perspectiva de paz que se abria que o governo israelita quis travar. Como em 2002, quando a cimeira árabe de Beirute tinha ratificado um plano que previa o reconhecimento do Estado de Israel em troca da criação de um Estado palestiniano, e o governo de Sharon tinha respondido, tomando como pretexto um atentado-kamikaze, com uma ofensiva generalizada contra os territórios ocupados.
No entanto, a “Chuva de verão”, nome romântico dado à ofensiva israelita, confirma o fracasso da política unilateral: a retirada do exército israelita da Faixa de Gaza, sem negociações com os palestinianos, não pode desembocar na paz; aplicada à Cisjordânia, onde a imbricação das colónias e da população palestiniana é inextricável, qualquer evacuação unilateral só poderá desembocar em novas violências.
[1] Ver o texto completo do Protocolo adicional I no sítio do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
[2] “Principe de proportionnalité”, in Crimes de guerre. Ce que nous devons savoir, Autrement, Paris, 2002.
[3] “L’enlèvement, une arme sans effet”, Libération, 29 de Junho de 2006.
[4] The government is losing its reason, Haaretz, 30 de Junho de 2006.
[5] Ver as cartas de reconhecimento mútuo trocadas entre Arafat e Rabin [francês] datadas de Setembro de 1993, no nosso caderno sobre o Médio Oriente.
[6] Wendy Kristianasen, Hamas: a prova do poder, Le Monde diplomatique, Junho de 2006.
[7] Alain Gresh, “Cansaço” no Quai d’Orsay, miséria em Gaza, Le Monde diplomatique, Junho de 2006.
[8] The Prisoners' National Conciliation Document, Palestine Center, 28 de Junho de 2006.
Alain Gresh
http://resistir.info/
Outro princípio do direito internacional violado pela ofensiva israelita é precisado pelo mesmo Protocolo adicional: o da proporcionalidade. O texto estipula que ataques «são interditos se é previsível que causem acessoriamente perdas em vidas humanas na população civil, ferimentos nas pessoas civis ou prejuízos de bens de carácter civil que seriam excessivos em relação ao ganho militar concreto e directo esperado» [2]. Quem pode pensar um instante que o objectivo afirmado – salvar um soldado – valha estas múltiplas destruições?
Contrariamente ao que escreveram vários jornais franceses, entre eles o Libération [3], Israel negociou várias vezes trocas de prisioneiros: assim, em 1985, libertou 1.150 prisioneiros palestinianos para recuperar três dos seus soldados que tinham sido capturados pela Frente Popular de Libertação da Palestina – Comando Geral (FPLP‑CG); e em 2004, no âmbito de um acordo do mesmo tipo com o Hezbollah libanês, trocou 400 prisioneiros palestinos contra um coronel israelita e os corpos de três soldados mortos. As negociações não são melhores para obter directamente a libertação de Gilad Shalit que as operações militares, que correm o risco de conduzir à morte do refém?
Como observa o editorial [4] do diário israelita Haaretz de 30 de Junho: «Bombardear pontes que podem ser contornadas a pé ou de automóvel; tomar o controlo de um aeroporto que está em ruínas há anos; destruir uma estação eléctrica, mergulhando grandes partes de Gaza na escuridão; distribuir folhetos dizendo às pessoas que deviam estar preocupadas com o seu destino; um voo ameaçador sobre o palácio de Bachar Assad; e prender responsáveis eleitos do Hamas: o governo quer convencer-nos de que todas estas acções tencionam libertar o soldado Gilad Shalit». E o comentarista prossegue: «Olmert deveria saber que prender líderes só os reforça e aos seus partidários. Mas isto não é somente um raciocínio defeituoso: prender pessoas para usar como moeda de troca é o acto de um gang, não de um Estado».
Com efeito, como revelaram os meios de comunicação social israelitas, esta ofensiva, incluindo a detenção dos principais responsáveis do Hamas, deputados eleitos e ministros à cabeça, tinha sido planificada há muito tempo. Por quais razões? Trata-se de acabar definitivamente, não somente com o governo palestiniano procedente do voto de Janeiro de 2006, mas com qualquer forma de autoridade palestiniana. É a lógica do “plano de desconexão” decidido por Ariel Sharon e retomado por Ehud Olmert: pretender que não existe interlocutor palestiniano para poder traçar unilateralmente as fronteiras de Israel. Esta estratégia não data da vitória do Hamas; durante todo o ano de 2005, quando Mahmoud Abbas estava à cabeça da Autoridade e governava com uma maioria da Fatah, o primeiro‑ministro Ariel Sharon recusou sistematicamente negociar com ele e prosseguiu, apesar da decisão do Tribunal Internacional de Justiça, a construção do muro. Esta escolha unilateral representa a posta em causa da última aquisição dos acordos Oslo: a convicção (confirmada pelo documento de
reconhecimento mútuo [5] entre Israel e OLP, assinado em 9 de Setembro de 1993 por Itzhak Rabin e Yasser Arafat) de que a solução do conflito israelo‑palestiniano assenta numa negociação bilateral entre a OLP e o Estado de Israel.
A vitória do Hamas nas eleições de Janeiro de 2006 [6] permitiu ao governo israelita acentuar a sua propaganda em torno do tema “não há um interlocutor palestiniano”. Os Estados Unidos e a União Europeia (com o aval da França [7]) puseram três condições ao novo governo palestiniano – reconhecer o Estado de Israel; parar todas as acções armadas; aceitar o processo Oslo – e suspenderam a ajuda directa, contribuindo significativamente para os sofrimentos de uma população culpada de ter “votado mal”. A complacência em relação a um governo israelita que recusa reconhecer o direito dos palestinianos a um Estado independente nos territórios ocupados em 1967, que utiliza o terrorismo contra os civis e que nega todos os compromissos dos acordos de Oslo, não tem limite. Pôde‑se mesmo ouvir Benita Ferrero-Waldner, comissária europeia para os negócios estrangeiros, saudar o unilateralismo do governo israelita como «uma decisão corajosa».
Não foi sem dúvida por acaso que a ofensiva actual coincidiu com a assinatura da declaração comum [8] de todas as organizações palestinianas (com a excepção da Djihad islâmica), que prevê o estabelecimento de um Estado palestiniano independente em todos os territórios ocupados em 1967, com Jerusalém-Leste como capital – e representa pois um reconhecimento de facto de Israel. Foi também esta nova perspectiva de paz que se abria que o governo israelita quis travar. Como em 2002, quando a cimeira árabe de Beirute tinha ratificado um plano que previa o reconhecimento do Estado de Israel em troca da criação de um Estado palestiniano, e o governo de Sharon tinha respondido, tomando como pretexto um atentado-kamikaze, com uma ofensiva generalizada contra os territórios ocupados.
No entanto, a “Chuva de verão”, nome romântico dado à ofensiva israelita, confirma o fracasso da política unilateral: a retirada do exército israelita da Faixa de Gaza, sem negociações com os palestinianos, não pode desembocar na paz; aplicada à Cisjordânia, onde a imbricação das colónias e da população palestiniana é inextricável, qualquer evacuação unilateral só poderá desembocar em novas violências.
[1] Ver o texto completo do Protocolo adicional I no sítio do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
[2] “Principe de proportionnalité”, in Crimes de guerre. Ce que nous devons savoir, Autrement, Paris, 2002.
[3] “L’enlèvement, une arme sans effet”, Libération, 29 de Junho de 2006.
[4] The government is losing its reason, Haaretz, 30 de Junho de 2006.
[5] Ver as cartas de reconhecimento mútuo trocadas entre Arafat e Rabin [francês] datadas de Setembro de 1993, no nosso caderno sobre o Médio Oriente.
[6] Wendy Kristianasen, Hamas: a prova do poder, Le Monde diplomatique, Junho de 2006.
[7] Alain Gresh, “Cansaço” no Quai d’Orsay, miséria em Gaza, Le Monde diplomatique, Junho de 2006.
[8] The Prisoners' National Conciliation Document, Palestine Center, 28 de Junho de 2006.
Alain Gresh
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