O homicídio de um terço dos doentes mentais alemães, entre Janeiro de 1940 e Agosto de 1941, representou para os nazis o ensaio – técnico e político – do genocídio dos judeus.
Na Primavera de 1944, a direcção do Serviço de Segurança nazi de Berlim pediu às suas unidades que lhe fornecessem “relatórios” sobre o estado da opinião pública no respeitante a uma questão muito especial: os rumores que circulavam de um extremo ao outro da Alemanha a propósito da morte prematura das pessoas idosas [1]. Os resultados desse inquérito revelaram uma profunda desconfiança perante o sistema de saúde nacional‑socialista. Para uma grande parte da população, os idosos, devido aos seus menores desempenhos, eram considerados indesejáveis e supérfluos pelo Estado, sendo portanto menos bem tratados.
Segundo certos rumores, havia médicos que se «livravam» de pessoas idosas doentes através de meios «apropriados», de forma a reduzir os custos e a economizar os medicamentos raros. Muitos alemães pensavam que as próprias autoridades tinham convidado os médicos a deixar de tratar os pacientes mais velhos e a deixar de lhes receitar próteses ou medicamentos racionados, tais como a insulina. Em certos distritos, as pessoas idosas evitavam ir ao médico, preferindo consultar o farmacêutico ou um curandeiro; outras não acatavam a receita do médico, receando ser envenenadas. Estes rumores andavam a par com queixas; na repartição de alimentos de grande valor – tais como a fruta, os legumes ou o leite – e aquando de evacuações para fugir aos bombardeamentos aliados, seriam privilegiados os jovens, em particular as mulheres fecundas.
Em muitas regiões, havia anos que esses rumores persistiam de forma obstinada, por uma razão simples: a lembrança, muito presente, das últimas experiências de eliminação clínica dos “inúteis” por solicitação do Estado. O homicídio dos pacientes dos asilos e hospitais era evocado quase abertamente e com vivacidade, em conformidade com os novos rumores. Depois dos deficientes, pensavam as pessoas, seria a vez de os idosos serem submetidos às “injecções da Ascensão”, que os mandariam para o além.
Mas o conhecimento da política de eutanásia dos nazis suscitou mais resignação do que revolta. Entre Janeiro de 1940 e Agosto de 1941, cerca de 70.000 pensionistas de estabelecimentos psiquiátricos alemães foram sistematicamente assassinados. Obra duma instituição camuflada sob o nome de T4, esse assassinato em massa foi administrativamente dissimulado e decretado “segredo de Estado”. No início da guerra, o próprio Hitler redigiu uma autorização nesse sentido, voluntariamente formulada de forma vaga, para deixar aos peritos médicos e administrativos a organização do programa criminoso e a definição dos grupos de vítimas. Embora os médicos implicados tenham exigido uma garantia legal, Hitler recusou, a pretexto de confidencialidade, recorrer a uma lei de eutanásia. No entanto, muitos indícios confirmam que a fuga de algumas informações não foi um erro, foi voluntária.
A liquidação dos doentes mentais deu a saber ao regime algo que era essencial: aquele genocídio não tinha fundamentalmente abalado a lealdade da população – experiência decisiva com vista à aplicação do programa de extermínio dos prisioneiros dos campos de concentração, dos judeus e dos ciganos (romas e sintis). De resto, as estruturas administrativas e o pessoal “com provas dadas” no assassinato dos deficientes participaram depois no genocídio dos judeus.
Os preparativos do “teste” representado pela eutanásia são muito anteriores. O dirigente dum asilo psiquiátrico mostrou‑o retrospectivamente em 1947; já antes da guerra, o Ministério do Interior encarava, em caso de conflito, reduzir drasticamente as rações dos ocupantes dos asilos e hospitais psiquiátricos. Perante a objecção de que isso implicaria fazê‑los morrer à fome, tinha-se, «prudentemente, pela primeira vez, apalpado o terreno, perguntando que posição tomaria a Missão Interior [2] se o Estado encarasse o extermínio de certas categorias de doentes durante a guerra, no caso de os alimentos disponíveis deixarem de ser suficientes para alimentar toda a população» [3].
No Verão de 1939, o médico pessoal de Hitler, Theo Morell, redigiu um parecer com o mesmo fim. Com base numa sondagem efectuada no início da década de 1920 a pais de crianças extremamente deficientes, Morell concluiu que estes, na sua maior parte, aceitavam que «a vida dos filhos fosse abreviada sem sofrimento». Alguns diziam mesmo que preferiam não ser eles a decidir sobre o destino dos filhos, valendo mais que um médico tomasse as necessárias decisões. A partir desses elementos, Morell preconizou, em caso de eutanásia, que se renunciasse ao consentimento explícito da família, se dissimulasse tanto quanto possível o homicídio do doente e, mais geralmente, que se contasse com o “eu prefiro não saber” [4].
As vítimas, por conseguinte, foram rapidamente transferidas de um estabelecimento para o outro, de modo a tornar mais difíceis as buscas de familiares ou amigos preocupados, e depois assassinadas nos centros de execução [5]. Subsequentemente, as famílias eram informadas do falecimento, imputado a uma causa inventada, bem como da incineração do defunto. Mas apesar dessas precauções o segredo do homicídio dos doentes acabou por ser propalado, nomeadamente entre o pessoal dos asilos e nas cercanias dos lugares onde eram abatidos.
A fragilidade desse tabu veio a público em Agosto de 1941, quando o bispo de Munster, o conde Clemens August von Galen, referiu abertamente num sermão esse crime. Os protestos provinham em particular dos círculos católicos. Umas semanas antes do escândalo público de von Galen, Hitler mandara suspender o programa de eutanásia.
Mas isso de modo nenhum significava que acabavam os centros de matança. O número de vítimas correspondia mais ou menos, nessa altura, ao objectivo estabelecido pelos organizadores em 1939: um em cada dez pacientes hospitalares devia ser «apanhado pela acção», ou seja, um total de 65.000 a 70.000 pessoas. Os especialistas de estatística chegaram mesmo a calcular as economias assim obtidas no tocante a alojamentos, vestuário e alimentação – até ao ano de 1951! Isto sem contar o pessoal médico «liberto» para outras tarefas, os lugares disponíveis para doentes curáveis, os asilos transformados em hospitais...
Já durante a Primeira Guerra Mundial a divisão da população em diversas categorias destinadas a ser mais ou menos bem aprovisionadas – em função do respectivo «valor» – tinha levado a uma subalimentação drástica dos pacientes dos hospitais psiquiátricos, situação de que resultou um grande aumento da sua mortalidade [6]. Mas com a Segunda Guerra Mundial a selecção sistemática tornou-se a base da política social, associada a medidas estatais coercivas. E nem sequer a suspensão do programa de “eutanásia”, em 1941, alterou fosse o que fosse nessa selecção.
O assassinato dos doentes continuou, de forma descentralizada e com outras técnicas. Os responsáveis locais já não deportavam os condenados para as câmaras de gás dos centros de extermínio, matavam-nos nos diversos hospitais e asilos com injecções letais. Deste modo, alargou-se consideravelmente o círculo dos participantes directos no assassinato e o das pessoas informadas.
Os peritos em “eutanásia”, que anteriormente escolhiam os pacientes a eliminar, deslocaram a sua actividade para outros grupos de vítimas. A partir da Primavera de 1941, seleccionaram nos campos de concentração prisioneiros – sobretudo deficientes e judeus – a eliminar nas câmaras de gás. Mais tarde, os assassinos do “Aktion T4” actuaram nos centros de extermínio de Belzec, Sobibor e Treblinka, cujos comandantes puseram em proveitosa aplicação os seus conhecimentos práticos no tocante à utilização das câmaras de gás, com vista à destruição dos judeus.
Além dos seus conhecimentos práticos e organizativos, os “T4” transferiram da “eutanásia” para a “solução final” a sua experiência relativa à gestão da opinião pública. Tanto mais que em Abril de 1941 o consenso em torno do homicídio dos doentes se revelou positivo: «Em 80 por cento dos casos, os familiares estão de acordo, 10 por cento protestam e 10 por cento são indiferentes» [7]. Os relatórios do Serviço de Segurança datados da Primavera de 1944 podem pois ser lidos como sinais duma prudente moderação: sondam a atmosfera geral, dão indicações sobre as possíveis causas dos rumores e aconselham as autoridades quanto à reacção a terem. No caso vertente, tratava-se mais de avaliar as fronteiras do realizável do que de manipular a opinião pública...
[1] Antigos Arquivos Especiais, Moscovo, 500/4/330.
[2] Organização de assistência protestante, cuja direcção se pronunciou, desde 1931, por uma esterilização eugénica. Cf. Ernst Klee, Euthanasie im NS-Staat, S. Fischer, Frankfurt, 1985.
[3] Ludwig Schaich, Lebensunwert?, citado por Götz Aly e Susanne Heim, em Vordenker, op. cit., p. 271.
[4] Idem, p. 273.
[5] Grafeneck, Brandenburgo, Bernburgo, Hadamar, Harteheim e Pirna.
[6] Heinz Faulstich, Hungersterben in der Psychiatrie 1914-1949, Lambertus, Freiburgo, 1998.
[7] Susanne Heim e Götz Aly, op. cit., p. 275.
Susanne Heim
http://infoalternativa.org/memoria/memoria003.htm
Na Primavera de 1944, a direcção do Serviço de Segurança nazi de Berlim pediu às suas unidades que lhe fornecessem “relatórios” sobre o estado da opinião pública no respeitante a uma questão muito especial: os rumores que circulavam de um extremo ao outro da Alemanha a propósito da morte prematura das pessoas idosas [1]. Os resultados desse inquérito revelaram uma profunda desconfiança perante o sistema de saúde nacional‑socialista. Para uma grande parte da população, os idosos, devido aos seus menores desempenhos, eram considerados indesejáveis e supérfluos pelo Estado, sendo portanto menos bem tratados.
Segundo certos rumores, havia médicos que se «livravam» de pessoas idosas doentes através de meios «apropriados», de forma a reduzir os custos e a economizar os medicamentos raros. Muitos alemães pensavam que as próprias autoridades tinham convidado os médicos a deixar de tratar os pacientes mais velhos e a deixar de lhes receitar próteses ou medicamentos racionados, tais como a insulina. Em certos distritos, as pessoas idosas evitavam ir ao médico, preferindo consultar o farmacêutico ou um curandeiro; outras não acatavam a receita do médico, receando ser envenenadas. Estes rumores andavam a par com queixas; na repartição de alimentos de grande valor – tais como a fruta, os legumes ou o leite – e aquando de evacuações para fugir aos bombardeamentos aliados, seriam privilegiados os jovens, em particular as mulheres fecundas.
Em muitas regiões, havia anos que esses rumores persistiam de forma obstinada, por uma razão simples: a lembrança, muito presente, das últimas experiências de eliminação clínica dos “inúteis” por solicitação do Estado. O homicídio dos pacientes dos asilos e hospitais era evocado quase abertamente e com vivacidade, em conformidade com os novos rumores. Depois dos deficientes, pensavam as pessoas, seria a vez de os idosos serem submetidos às “injecções da Ascensão”, que os mandariam para o além.
Mas o conhecimento da política de eutanásia dos nazis suscitou mais resignação do que revolta. Entre Janeiro de 1940 e Agosto de 1941, cerca de 70.000 pensionistas de estabelecimentos psiquiátricos alemães foram sistematicamente assassinados. Obra duma instituição camuflada sob o nome de T4, esse assassinato em massa foi administrativamente dissimulado e decretado “segredo de Estado”. No início da guerra, o próprio Hitler redigiu uma autorização nesse sentido, voluntariamente formulada de forma vaga, para deixar aos peritos médicos e administrativos a organização do programa criminoso e a definição dos grupos de vítimas. Embora os médicos implicados tenham exigido uma garantia legal, Hitler recusou, a pretexto de confidencialidade, recorrer a uma lei de eutanásia. No entanto, muitos indícios confirmam que a fuga de algumas informações não foi um erro, foi voluntária.
A liquidação dos doentes mentais deu a saber ao regime algo que era essencial: aquele genocídio não tinha fundamentalmente abalado a lealdade da população – experiência decisiva com vista à aplicação do programa de extermínio dos prisioneiros dos campos de concentração, dos judeus e dos ciganos (romas e sintis). De resto, as estruturas administrativas e o pessoal “com provas dadas” no assassinato dos deficientes participaram depois no genocídio dos judeus.
Os preparativos do “teste” representado pela eutanásia são muito anteriores. O dirigente dum asilo psiquiátrico mostrou‑o retrospectivamente em 1947; já antes da guerra, o Ministério do Interior encarava, em caso de conflito, reduzir drasticamente as rações dos ocupantes dos asilos e hospitais psiquiátricos. Perante a objecção de que isso implicaria fazê‑los morrer à fome, tinha-se, «prudentemente, pela primeira vez, apalpado o terreno, perguntando que posição tomaria a Missão Interior [2] se o Estado encarasse o extermínio de certas categorias de doentes durante a guerra, no caso de os alimentos disponíveis deixarem de ser suficientes para alimentar toda a população» [3].
No Verão de 1939, o médico pessoal de Hitler, Theo Morell, redigiu um parecer com o mesmo fim. Com base numa sondagem efectuada no início da década de 1920 a pais de crianças extremamente deficientes, Morell concluiu que estes, na sua maior parte, aceitavam que «a vida dos filhos fosse abreviada sem sofrimento». Alguns diziam mesmo que preferiam não ser eles a decidir sobre o destino dos filhos, valendo mais que um médico tomasse as necessárias decisões. A partir desses elementos, Morell preconizou, em caso de eutanásia, que se renunciasse ao consentimento explícito da família, se dissimulasse tanto quanto possível o homicídio do doente e, mais geralmente, que se contasse com o “eu prefiro não saber” [4].
As vítimas, por conseguinte, foram rapidamente transferidas de um estabelecimento para o outro, de modo a tornar mais difíceis as buscas de familiares ou amigos preocupados, e depois assassinadas nos centros de execução [5]. Subsequentemente, as famílias eram informadas do falecimento, imputado a uma causa inventada, bem como da incineração do defunto. Mas apesar dessas precauções o segredo do homicídio dos doentes acabou por ser propalado, nomeadamente entre o pessoal dos asilos e nas cercanias dos lugares onde eram abatidos.
A fragilidade desse tabu veio a público em Agosto de 1941, quando o bispo de Munster, o conde Clemens August von Galen, referiu abertamente num sermão esse crime. Os protestos provinham em particular dos círculos católicos. Umas semanas antes do escândalo público de von Galen, Hitler mandara suspender o programa de eutanásia.
Mas isso de modo nenhum significava que acabavam os centros de matança. O número de vítimas correspondia mais ou menos, nessa altura, ao objectivo estabelecido pelos organizadores em 1939: um em cada dez pacientes hospitalares devia ser «apanhado pela acção», ou seja, um total de 65.000 a 70.000 pessoas. Os especialistas de estatística chegaram mesmo a calcular as economias assim obtidas no tocante a alojamentos, vestuário e alimentação – até ao ano de 1951! Isto sem contar o pessoal médico «liberto» para outras tarefas, os lugares disponíveis para doentes curáveis, os asilos transformados em hospitais...
Já durante a Primeira Guerra Mundial a divisão da população em diversas categorias destinadas a ser mais ou menos bem aprovisionadas – em função do respectivo «valor» – tinha levado a uma subalimentação drástica dos pacientes dos hospitais psiquiátricos, situação de que resultou um grande aumento da sua mortalidade [6]. Mas com a Segunda Guerra Mundial a selecção sistemática tornou-se a base da política social, associada a medidas estatais coercivas. E nem sequer a suspensão do programa de “eutanásia”, em 1941, alterou fosse o que fosse nessa selecção.
O assassinato dos doentes continuou, de forma descentralizada e com outras técnicas. Os responsáveis locais já não deportavam os condenados para as câmaras de gás dos centros de extermínio, matavam-nos nos diversos hospitais e asilos com injecções letais. Deste modo, alargou-se consideravelmente o círculo dos participantes directos no assassinato e o das pessoas informadas.
Os peritos em “eutanásia”, que anteriormente escolhiam os pacientes a eliminar, deslocaram a sua actividade para outros grupos de vítimas. A partir da Primavera de 1941, seleccionaram nos campos de concentração prisioneiros – sobretudo deficientes e judeus – a eliminar nas câmaras de gás. Mais tarde, os assassinos do “Aktion T4” actuaram nos centros de extermínio de Belzec, Sobibor e Treblinka, cujos comandantes puseram em proveitosa aplicação os seus conhecimentos práticos no tocante à utilização das câmaras de gás, com vista à destruição dos judeus.
Além dos seus conhecimentos práticos e organizativos, os “T4” transferiram da “eutanásia” para a “solução final” a sua experiência relativa à gestão da opinião pública. Tanto mais que em Abril de 1941 o consenso em torno do homicídio dos doentes se revelou positivo: «Em 80 por cento dos casos, os familiares estão de acordo, 10 por cento protestam e 10 por cento são indiferentes» [7]. Os relatórios do Serviço de Segurança datados da Primavera de 1944 podem pois ser lidos como sinais duma prudente moderação: sondam a atmosfera geral, dão indicações sobre as possíveis causas dos rumores e aconselham as autoridades quanto à reacção a terem. No caso vertente, tratava-se mais de avaliar as fronteiras do realizável do que de manipular a opinião pública...
[1] Antigos Arquivos Especiais, Moscovo, 500/4/330.
[2] Organização de assistência protestante, cuja direcção se pronunciou, desde 1931, por uma esterilização eugénica. Cf. Ernst Klee, Euthanasie im NS-Staat, S. Fischer, Frankfurt, 1985.
[3] Ludwig Schaich, Lebensunwert?, citado por Götz Aly e Susanne Heim, em Vordenker, op. cit., p. 271.
[4] Idem, p. 273.
[5] Grafeneck, Brandenburgo, Bernburgo, Hadamar, Harteheim e Pirna.
[6] Heinz Faulstich, Hungersterben in der Psychiatrie 1914-1949, Lambertus, Freiburgo, 1998.
[7] Susanne Heim e Götz Aly, op. cit., p. 275.
Susanne Heim
http://infoalternativa.org/memoria/memoria003.htm
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