sexta-feira, agosto 25, 2006

Numa missão de auxílio humanitário da Cruz Vermelha quando a força aérea israelita veio pedir satisfações

Devia ser uma viagem de rotina através dos campos de morte libaneses para os valentes homens e mulheres da Cruz Vermelha Internacional. Sylvie Thoral era a “líder da equipa” dos nossos dois veículos, uma mulher francesa de 38 anos de cabelo castanho escuro e olhos de aço. Os israelitas tinham sido informados e tinham dado o que o CICV gosta de chamar a sua “luz verde” para a rota. E, claro, quase morremos.
Confiar no exército e na força aérea israelita, que rompem as Convenções de Genebra quase todos os dias, é um assunto bicudo.
Os seus aviões já atacaram – contra todas as convenções – os quartéis de defesa civil em Tiro, matando 20 refugiados. Atacaram duas vezes camiões carregados com refugiados a quem eles mesmos tinham ordenado que se fossem das suas aldeias.
Já atacaram duas ambulâncias libanesas da Cruz Vermelha em Qana, matando dois dos três pacientes feridos e ferindo toda a tripulação – uma clara e aparentemente deliberada quebra do Capítulo IV, Artigo 24 das Convenções de Genebra de 1949.
Mas o CICV deve confiar no exército israelita, de modo que saímos apressados do sul do Líbano para Jezzine ao som dos tiros, sob as ameias esmigalhadas do castelo dos cruzados em Beaufort, através das destruídas ruas fantasmagóricas de Nabatiyeh, com crateras de bombas e edifícios esmagados de ambos os lados.
Para cruzar o rio Litani, tivemos de conduzir pela água, ouvindo o uivo dos motores dos aviões, um olho na estrada, outro no céu. Sylvie e os seus camaradas – Christophe Grange da França, Claire Gasser da Suíça, Saidi Hachemi da Argélia e dois colegas libaneses, Beshara Hanna e Edmund Khoury – guiavam em silêncio.
Havia crateras de bombas recentes na estrada a norte de Nabatiyeh – os ataques tinham chegado só umas poucas horas antes, um facto em que devíamos ter pensado mais. Pedaços de artilharia cobriam os caminhos, fragmentos de metralha perversa, enormes cepos de betão. Mas tínhamos recebido essa importantíssima “luz verde” de Telavive.
As equipas do CICV podem ser os únicos salvadores nas estradas do sul do Líbano – sua reticência em criticar alguém, incluindo os israelitas e o Hezbollah, é um silêncio digno de anjos–, ainda que o seu trabalho possa atacar as suas emoções com tanta força como um bombardeamento aéreo. Só um dia antes, tinham ido à aldeia de Aiteroun, a uma escassa milha do desastroso ataque do exército israelita a Bint Jbeil. Em cada aldeia “abandonada” no caminho, aparecia uma mulher, depois uma criança e depois mais mulheres e os idosos, todos desesperados por ir embora.
Havia talvez uns 3000 deles e, ontem à noite, Sylvie Thoral estava a tentar obter permissão para um comboio de evacuação. Os israelitas estão a prometer aos libaneses um castigo muito pior do que já receberam – bem mais de 400 civis libaneses mortos – pelo assassinato de três soldados israelitas e a captura de outros dois pelo Hezbollah. Mas ainda assim, os israelitas não sugeriram uma “luz verde” para Aiteroun.
«Rogavam-nos que os trouxéssemos connosco e não tínhamos capacidade para fazer isso», diz Saidi com profunda emoção. «Os olhos deles estavam cheios de lágrimas».
Os trabalhadores do CICV no Líbano viajam sem coletes de protecção ou capacetes – o seu estatuto de não­‑militarizados é algo de que se orgulham – e ir com eles na mesma condição foi uma experiência estranhamente comovedora.

Vivem – ao contrário dos israelitas e dos seus antagonistas do Hezbollah – segundo as Convenções de Genebra. Acreditam nelas quando todos os demais quebram as regras. Mas ontem, quando chegámos à cidade de Jarjooaa, o CICV em Beirute disse­‑nos que voltássemos para trás. Os israelitas estavam a bombardear a estrada a norte, de modo que prudentemente demos meia volta aos carros e dirigimo­‑nos pelas colinas abaixo para Arab Selim. A estrada estava vazia e quase tínhamos chegado ao fundo de um pequeno vale.
Eu reflectia na conversa que acabava de ter no telemóvel com Patrick Cockburn, o correspondente do The Independent que acabava de sair de Bagdade. Os nossos anjos da guarda estavam a trabalhar tanto, disse ele, que temia que eles formassem um sindicato e entrassem em greve.
Foi quando cinco vastos, castanhos, dedos mortais de fumo dispararam para o céu em frente de nós, uma bomba israelita lançada do ar que explodiu na estrada a escassos 80 metros de distância com o tipo de “c­‑crac” que as revistas de banda­­ desenhada expressam com tanta exactidão, seguido pelo grito de um jacto. Se tivéssemos seguido 25 segundos mais depressa ao longo da estrada, todos estaríamos morridos.
De modo que retrocedemos uma vez mais para Jarjooaa e estacionámos sob a varanda de uma casa onde duas mulheres e três crianças nos olhavam, acenando e sorrindo.
Sylvie estava silenciosa, mas eu podia ver a raiva na sua face. Os israelitas, ao que parecia, tinham cometido um “erro”. Tinham lido mal a rota – ou o número – do nosso pequeno comboio. «Como podemos trabalhar assim? Como podemos fazer o nosso trabalho?» Perguntou Sylvie com uma mistura de ira e frustração. Em todas as estradas ontem, vi apenas três homens que suspeito eram do Hezbollah – não são respeitadores das Convenções de Genebra, eles – conduzindo a grande velocidade num Volvo a desfazer­‑se. Eles podem atravessar os rios do Líbano à vontade – tal como nós fizemos – circundando as crateras das bombas e atravessando os rios. Por isso, qual foi o propósito de rebentar com 46 das pontes rodoviárias do Líbano?
Um idoso aproximou­‑se de nós trazendo um tabuleiro prateado de copos e um bule de chá a escaldar. Generosos até ao fim, sob constante ataque aéreo, estes libaneses dignos de respeito estavam a oferecer­‑nos a sua tradicional hospitalidade mesmo agora, enquanto os jactos davam voltas no céu acima de nós.
Mas antes de abandonarmos a nossa viagem e antes de Sylvie, a sua equipa e eu partirmos de volta para a sua base no longínquo e perigoso sul do Líbano, um homem que trazia um saco de verduras caminhou para Beshara Hanna. «Por favor, afastem os vossos carros da minha casa», disse. «Tornam isto perigoso para todos nós».
E a vergonha disto abalou­‑me imediatamente. O ataque israelita sobre as ambulâncias de Qana – os seus mísseis trespassando as cruzes vermelhas dos tectos – tinha contaminado até os nossos próprios veículos. Ele era só um homem. Mas para ele, os israelitas tinham transformado a Cruz Vermelha – o símbolo da esperança nos tectos e nas partes laterais dos nossos veículos – num símbolo de perigo e temor.
(...)
Robert Fisk
http://infoalternativa.org/autores/fisk/fisk090.htm

Sem comentários: