terça-feira, agosto 15, 2006

O absurdo estatuto do Banco Central

Nos Estados membros da União Europeia (UE), a alternância dos partidos no governo permite por vezes fazer marcha­‑atrás ou revogar iniciativas e legislações que fracassaram. Na União, em contrapartida, o passado torna­‑se um “acervo” que tem de ser reafirmado em permanência e protegido de toda a crítica, por mais justificada que seja. Um exemplo: o poder total sobre a política monetária atribuído ao Banco Central Europeu (BCE), instituição que se furta a qualquer controlo político.
Muito antes de este regime ter entrado em vigor, as suas disfunções haviam sido expostas por numerosos especialistas de todas as obediências políticas. As suas estruturas eram profundamente antidemocráticas, na medida em que privavam as instâncias eleitas, quer no plano nacional, quer no da União, de toda a capacidade de intervenção nas políticas macro­‑económicas. As suas prioridades e os seus objectivos eram completamente desequilibrados, visto o BCE dever concentrar-se na estabilidade dos preços, fossem quais fossem as consequências no respeitante ao desemprego, às dificuldades financeiras ou à desorganização do sistema produtivo.
Quanto às políticas orçamentais, submetidas ao Pacto de Estabilidade e Crescimento, estas deviam corresponder a critérios de endividamento público, se preciso fosse sacrificando qualquer outro objectivo. Pressupunha­‑se que os métodos do BCE, cópias exactas dos do Banco Central Alemão mas em circunstâncias muito diferentes, tinham todas as garantias de eficácia, apesar de todas as provas em contrário. Por exemplo, a insistência dogmática no valor dos agregados monetários como guias da política a levar a cabo, quando estes indicadores, considerados sem interesse, já tinham sido abandonados há uma dezena de anos pelos outros bancos centrais. Seis anos de experiência da união monetária confirmaram a legitimidade destas críticas, mas apesar disso o conjunto do dispositivo continua a ser sacrossanto para a Europa oficial.
Nos últimos quatro anos, a taxa média de crescimento anual da UE foi de 1,5 por cento, ou seja, inferior ao do fim da década de 1990, e menos elevada que a prevista pela “Estratégia de Lisboa” [1]. O nível de actividade económica nem sequer foi suficiente para estabilizar o desemprego nos Quinze, que entre 2001 e 2004 aumentou de 7,4 para 8,1 por cento. Embora os novos Estados membros apresentem taxas de crescimento um pouco superiores, a sua taxa de desemprego, quanto a ela, é muito mais elevada: 14,4 por cento nos últimos quatro anos [2].
A resposta invariável do BCE a estes problemas tem consistido em pedir mais reformas “estruturais”, mais “flexibilidade dos preços e dos salários”, mais “mobilidade da mão-de-obra”. Mas agora, após os dois referendos perdidos, e como se tornou cada vez mais difícil invocar a ameaça inflacionista, brande­‑se o perigo da “globalização” para justificar as mesmas medidas: desregulamentação, pressões sobre os desempregados, deslocalizações das empresas dos sectores público e privado. No entanto, à escala global, as economias da zona euro portaram-se muito bem. Em 2004, só a dinâmica exportadora apoiou o rápido aumento da produção. Em contrapartida, os mercados internos, em particular os dos bens de equipamento, estagnaram ou contraíram­‑se.
Se a busca obstinada da “flexibilidade”, que está no âmago das políticas europeias desde há mais de duas décadas, permitisse resolver o problema do desemprego, este já teria sido resolvido. A persistência de uma alta taxa de desemprego, combinada com as medidas liberais que afectam o mercado do trabalho, reduziram muito a parte dos salários no produto nacional bruto da União: de 73,4 por cento em 1962 para 69,2 por cento na década de 1990, atingindo um nível mínimo de 68 por cento em 2004. O enorme aumento dos lucros que ressalta destes números – de menos de um quarto para quase um terço –, reforçado por uma fiscalidade favorável ao capital, revelou-se incapaz de suscitar os investimentos prometidos; durante os quatro primeiros anos da década, os investimentos nos Vinte e Cinco aumentaram apenas 0,5 por cento, ao mesmo tempo que baixaram na zona euro (menos 0,2 por cento, em média). O ano de 2004 foi o primeiro em que progrediram (mais 3,2 por cento) [3].
Num grande número de questões económicas, os responsáveis da União mostram uma deferência servil para com os Estados Unidos. Toda a Agenda de Lisboa se inspira na crença ingénua numa “nova economia”, cuja emergência além­‑Atlântico teria resultado do boom bolsista. Renovadas tentativas de duplicar mercados do trabalho pretensamente “flexíveis”, promoção do capital de risco, imitação das estruturas empresariais – foi com uma “exuberância irracional” que os dirigentes europeus quiseram imitar os Estados Unidos, tanto ao nível nacional como da União.
Mas o estatuto e as missões do Sistema de Reserva Federal Americano revelam um contraste manifesto com os do BCE, adaptados de olhos fechados pelo Projecto de Tratado Constitucional. A Reserva Federal é apenas uma agência governamental entre outras, submetida à vontade do Congresso. Tem de velar por «manter o crescimento a longo prazo dos agregados monetários e de crédito, favorecendo o potencial de aumento da produção a longo prazo da economia, de forma a promover efectivamente os objectivos de nível de emprego máximo, de estabilidade dos preços e de moderadas taxas de juro a longo prazo».
O contraste entre as duas instituições tem consideráveis implicações nas políticas macro­‑económicas. As que são aplicadas nos Estados unidos não descuram a estabilidade dos preços, mas preocupam­‑se, da mesma maneira, com os níveis da produção e do emprego. Em situações de recessão duradoura ou de aumento do desemprego, os instrumentos macro­‑económicos são utilizados para relançar a actividade: estimulantes orçamentais do presidente Ronald Reagan no início da década de 1980; baixa das taxas de juro da década de 1990; redução dos impostos da presidência Bush. Estas políticas, sem dúvida criticáveis em muitos aspectos, foram eficazes no respeitante às taxas de actividade e de emprego, superiores às da Europa desde há vinte anos.
O mesmo se passa com a política social; poderíamos até dizer que o crescimento faz parte do modelo social norte­‑americano, ou que o crescimento é uma espécie de substituto das políticas sociais. Os americanos podem muito bem viver e morrer no mercado, mas pelo menos exigem que o mercado funcione. A observação da sua experiência leva-nos a tomar consciência da dupla irresponsabilidade dos decisores europeus: exercem uma pressão contínua com vista a reduzir os subsídios de desemprego e restringir os direitos dos desempregados; e, ao mesmo tempo, não tomam nenhuma medida macro­‑económica para criar empregos.
Será difícil encontrar uma questão política em que os britânicos sejam mais unidos do que na rejeição do euro. Mesmo entre a minoria muito empenhada na construção europeia praticamente ninguém defende a entrada na união monetária. Uma simples comparação com os desempenhos macro­‑económicos da zona euro encerra logo o debate. O actual regime macro­‑económico britânico é encarado como muito mais flexível e pragmático nas políticas orçamental e monetária. A Comissão censurou Londres com frequência por esta violar as normas do Pacto de Estabilidade, mas o elevado desemprego existente na Alemanha, em França e na Itália convence os britânicos de que vale mais ficarem fora da zona euro e não estarem ligados a tais normas.

A ausência do Reino Unido da zona euro põe um problema à união monetária, porque isso significa que os vastos e muito líquidos mercados financeiros britânicos recorrem pouco à moeda europeia. Ora, a autonomia de qualquer sistema monetário depende grandemente da dimensão e da eficácia do seu sistema financeiro. A enorme expansão da zona euro que decorreria da participação de Londres facilitaria grandemente a condução duma política monetária europeia e afrontaria ou limitaria o impacte de perturbações vindas do exterior, por exemplo, de alterações da política norte-americana. Se os dirigentes da zona euro se preocupassem de facto com o futuro, tratariam de rever inteiramente os procedimentos e o conteúdo das decisões do BCE, de maneira a promoverem o emprego e a actividade económica.
O longo período de “preparação” entre o Tratado de Maastricht de 1992 e a introdução da moeda única em 1999 causou sérios danos em vários países, e de um modo mais geral na zona euro: o respeito pelos critérios de “convergência” perfeitamente arbitrários adaptados para as finanças públicas e para as taxas de juro e de câmbio provocou políticas macro­‑económicas restritivas e um aumento do desemprego. A razão de ser de tais sacrifícios nunca foi clara, porque ela correspondia a impor uma estabilização dolorosa a moedas destinadas a ser retiradas da circulação.
O tratamento reservado aos novos Estados membros da União é ainda mais ilógico; contrariamente ao franco e ao marco, absorvidos no euro através do ecu, o zloty polaco, o forint húngaro, etc. vão pura e simplesmente desaparecer. O peso monetário combinado destes países é tão fraco que a sua situação económica pouca influência terá na zona euro quando dela fizerem parte.
Na realidade, a integração técnica dos mercados do crédito a curto prazo, necessária à sua participação na união monetária, já está feita. Um longo período de tutela é-lhes todavia imposto, tal como os critérios arbitrários de taxa de inflação, de taxa de câmbio e de endividamento público. A pertença à união monetária é subordinada ao masoquismo macro­‑económico. Ao mesmo tempo, é negligenciado o problema de fundo da integração monetária dos novos membros – a fixação da taxa de conversão com o euro que favorece altos níveis de exportações e de criação de empregos.
Lançado em 1999 a uma taxa de câmbio de 1,16 dólares, o euro tinha caído para 82 centavos em 2001 devido aos fluxos de capitais para os Estados Unidos ligados à “bolha” bolsista que estimulava a nota verde. Depois disso, a explosão dessa bolha e os enormes escândalos financeiros como o da Enron fizeram o dólar descer muito e o euro subir para níveis sem precedentes. Na economia mundial, o crescimento e o desenvolvimento são elementos tão importantes para a determinação das paridades cambiais como a estabilidade dos preços e o equilíbrio orçamental. Um dólar fraco contribui para isolar a Europa das perturbações externas, nomeadamente do aumento das cotações do petróleo, e para alargar significativamente as possibilidades de expansão do emprego e da actividade.
No mundo inteiro, um pouco por todo o lado, os investidores gostariam muito de possuir activos em euros. Não utilizar essas oportunidades tem um custo elevado. A persistência da estagnação e a obsessão doentia dos “grandes equilíbrios” contribuem para enfraquecer o euro, na medida em que há cada vez menos novos activos europeus disponíveis e, portanto, menos razões para investir nas economias europeias.
A união monetária, tal como foi concebida há quase quarenta anos, constituía um projecto inovador e optimista: uma moeda comum ia diminuir os constrangimentos, em particular os resultantes da supremacia do dólar. A concretização deste projecto na sua forma conservadora, dogmática e antidemocrática origina constrangimentos, é uma ameaça auto­‑imposta às economias da zona euro, em primeiro lugar à Alemanha, o paralisado gigante da União. Se a rejeição do Tratado Constitucional permitir pôr em causa o actual regime macro­‑económico, ela constituirá um desenvolvimento positivo para a construção europeia.

[1] A “Estratégia de Lisboa”, adoptada no Conselho Europeu realizado em Março de 2000 na capital portuguesa, tinha como objectivo tornar a União Europeia «a economia do conhecimento mais competitiva do mundo».
[2] Euromemorandum Group, Beyond Lisbon: Economic and Social Policy Orientations and Constitutional Cornerstones for the European Social Model: Euromemorandum 2004 .
[3] Beyond Lisbon, op. cit.

John Grahl
http://infoalternativa.org/ue/ue095.htm

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