terça-feira, agosto 15, 2006

O ataque de Israel foi premeditado

A captura de soldados israelitas pelo Hezbollah providenciou
a desculpa para um assalto planeado durante meses

Seja o que for que pensemos sobre o assalto de Israel contra o Líbano, parece que todos nós concordamos num facto: que se tratou de uma resposta, ainda que desproporcionada, a um ataque não­­‑provocado do Hezbollah. Repeti este “facto” na minha última coluna quando escrevi que o «Hezbollah disparou os primeiros tiros». Assim sendo, os partidários do governo israelita perguntam aos pacifistas como eu: o que terias feito tu? É uma pergunta importante. Mas a sua premissa, segundo acabo de descobrir, é incorrecta.
Desde que Israel se retirou do sul do Líbano, em Maio de 2000, houve centenas de violações da “linha azul” entre os dois países. A Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL) informa que a aviação israelita cruzou a linha «numa base quase diária» entre 2001 e 2003, e «persistentemente» até 2006 [1]. Estas incursões «causaram grande preocupação na população civil, especialmente os voos a baixa altitude que rompem a barreira do som sobre áreas habitadas». Em algumas ocasiões, o Hezbollah tentou derrubá­‑los com armas antiaéreas.
Em Outubro de 2000, as Forças de Defesa de Israel (IDF) dispararam contra manifestantes palestinianos desarmados na fronteira, matando três e ferindo 20. Em resposta, o Hezbollah cruzou a linha e sequestrou três soldados israelitas. Em várias ocasiões, o Hezbollah disparou salvas de mísseis e morteiros contra posições das IDF, e as IDF responderam com artilharia pesada e por vezes com bombardeamentos aéreos. Incidentes deste tipo mataram três israelitas e três libaneses em 2003; um soldado israelita e dois combatentes do Hezbollah em 2005 e dois libaneses e três soldados israelitas em Fevereiro de 2006. Foguetes foram disparados do Líbano contra Israel várias vezes em 2004, 2005 e 2006, em algumas ocasiões pelo Hezbollah. Mas, regista a ONU, «nenhum dos incidentes resultou numa escalada militar» [2].
Em 26 de Maio deste ano, dois oficiais da Jihad Islâmica — Nidal e Mahmoud Majzoub — morreram pela explosão de um carro bomba na cidade libanesa de Sidon. Foi amplamente assumido no Líbano e em Israel como sendo trabalho da Mossad, o serviço secreto israelita [3]. Em Junho, um homem chamado Mahmoud Rafeh confessou a autoria dos crimes e admitiu que trabalhava para a Mossad desde 1994 [4]. Militantes no sul do Líbano responderam, no dia do atentado, lançando oito foguetes contra Israel. Um soldado ficou ligeiramente ferido. Houve uma grande agitação na fronteira, durante a qual um membro do Hezbollah foi morto e vários feridos, e um soldado israelita ficou ferido. Mas porquanto a zona fronteiriça «permaneceu tensa e volátil», a UNIFIL afirma que esteve «em geral calma» até 12 de Julho [5].
Tem havido um acalorado debate na Internet sobre se os dois soldados israelitas sequestrados nesse dia pelo Hezbollah foram capturados em Israel ou no Líbano [6], mas parece agora bastante claro que foram capturados em Israel. Isso é o que diz a ONU, e até o Hezbollah parece ter­‑se esquecido de que era suposto terem sido encontrados introduzindo­­‑se furtivamente nos arredores da aldeia libanesa de Aitaa al­‑Chaab. Agora afirma simplesmente que «a resistência islâmica capturou dois soldados israelitas na fronteira com a Palestina ocupada» [7]. Outros três soldados israelitas foram mortos pelos militantes. Também se discute sobre quando, no dia 12 de Julho, Hezbollah disparou os seus primeiros foguetes; mas a UNIFIL deixa claro que os disparos tiveram lugar ao mesmo tempo que a incursão, às 9 da manhã. O seu propósito parece ter sido criar uma diversão. Ninguém foi atingido.
Mas não há debate sério sobre por que motivo foram capturados os dois soldados: o Hezbollah procurava trocá­‑los pelos 15 prisioneiros de guerra tomados pelos israelitas durante a ocupação do Líbano [8] e (em violação do artigo 118 da Terceira Convenção de Genebra [9]) nunca libertados. Parece claro que se Israel tivesse entregue os prisioneiros, teria – sem derramar mais sangue – recuperado os seus homens e reduzido a probabilidade de futuros sequestros. Mas o governo israelita recusou-se a negociar. Em vez disso – bem, todos nós sabemos o que aconteceu em vez disso. Até agora morreram quase 1.000 civis libaneses e 33 civis israelitas, e um milhão de libaneses estão deslocados das suas casas.
Por outras palavras, no dia 12 de Julho, o Hezbollah disparou os primeiros tiros. Mas esse acto de agressão foi simplesmente uma instância numa longa sucessão de pequenas incursões e ataques levados a cabo por ambas as partes ao longo dos últimos seis anos. Assim, por que motivo a resposta israelita foi tão diferente de todas as anteriores? A resposta é que não se tratou de uma reacção aos acontecimentos desse dia. O assalto tinha sido planeado durante meses.
O San Francisco Chronicle informa que «Há mais de um ano, um alto oficial do exército israelita começou a oferecer apresentações de PowerPoint, com carácter oficioso, a diplomatas, jornalistas e think tanks, estadunidenses e de outras nacionalidades, mostrando o plano da actual operação em significativo detalhe» [10]. O ataque, disse ele, duraria três semanas. Começaria com bombardeamentos e culminaria com uma invasão terrestre. Gerald Steinberg, professor de ciência política na Universidade Bar-Ilan, declarou ao jornal que «de todas as guerras de Israel desde 1948, esta é aquela para a qual Israel estava melhor preparada... Por volta de 2004, a campanha militar agendada para durar cerca de três semanas que estamos a ver agora já tinha sido desbloqueada e, no último ano ou dois, foi simulada e ensaiada no tabuleiro» [11].
Um «alto funcionário israelita» disse ao Washington Post que a incursão do Hezbollah providenciou a Israel uma «ocasião única» para limpar o Hezbollah [12]. O editor do New Statesman, John Kampfner, afirma que mais do que uma fonte oficial lhe disse que o governo dos Estados Unidos conhecia de antemão a intenção de Israel de empreender uma acção militar no Líbano [13]. A administração Bush contou ao governo britânico [14].
O assalto de Israel foi, então, premeditado: estava simplesmente à espera de uma desculpa apropriada. Foi igualmente desnecessário. É verdade que o Hezbollah tinha vindo a acumular munições perto da fronteira, como demonstram os seus actuais ataques com foguetes. Mas o mesmo fazia Israel. Tal como Israel podia afirmar que procurava dissuadir incursões do Hezbollah, o Hezbollah podia alegar – também com justificação – que tentava dissuadir incursões de Israel. O exército libanês é, certamente, incapaz de fazê-lo. Sim, o Hezbollah devia ter sido afastado da fronteira israelita pelo governo libanês e desarmado. Sim, a incursão e o ataque com foguetes no dia 12 de Julho foram injustificados, estúpidos e provocadores, exactamente como tudo o que aconteceu em torno da fronteira nos últimos seis anos. Mas a sugestão de que o Hezbollah poderia lançar uma invasão de Israel ou que constitui uma ameaça existencial para o Estado é absurda. Desde que finalizou a ocupação, todos os seus actos de guerra foram menores, e quase todos eles reactivos.
Assim, não é difícil responder à pergunta sobre o que teríamos nós feito. Primeiro, deixar de recrutar inimigos, retirando dos territórios ocupados na Palestina e na Síria. Segundo, deixar de provocar os grupos armados no Líbano com violações da linha azul – em particular os voos transfronteiriços persistentes. Terceiro, libertar os prisioneiros de guerra que permanecem ilegalmente encarcerados em Israel. Quarto, continuar a defender a fronteira, mantendo simultaneamente a pressão sobre o Líbano para que desarme o Hezbollah (como qualquer um pode ver, isto seria muito mais exequível se as ocupações terminassem). Aqui está pois o meu desafio aos partidários do governo israelita: atrever-vos-íeis a sustentar que este programa teria causado mais morte e destruição do que a aventura actual provocou?

[1] UNIFIL, Lebanon – UNIFIL – Background, Agosto de 2006.
[2] Ibid.
[3] Ver FAIR (Fairness and Accuracy in Reporting), Down the Memory Hole: Israeli contribution to conflict is forgotten by leading papers. 28/07/2006.
[4] Nicholas Blanford, “Lebanon exposes deadly Israeli spy ring”. The Times, 15/06/2006.
[5] Report of the Secretary-General on the United Nations Interim Force in Lebanon (For the period from 21 January 2006 to 18 July 2006) (pdf, 2,08 Mb). UN Security Council, 21/07/2006.
[6] Ver, por exemplo: Joshua Frank, Kidnapped in Israel; Captured in Lebanon?, Antiwar.com, 25/07/2006; e http://www.whatreallyhappened.com/israeli_solders.html.
[7] Hezbollah, citado em Hezbollah not to blame for war, reports show. BigNewsNetwork.com, 04/08/2006.
[8] http://www.unhchr.ch/html/menu3/b/91.htm
[9] Eles estão listados pelo Khiam Center, em:
http://www.khiamcenter.org/names%20of%20leb%20detainees%20and%20missing.doc
[10] Matthew Kalman, “Israel set war plan more than a year ago: Strategy was put in motion as Hezbollah began gaining military strength in Lebanon”. San Francisco Chronicle, 21/07/2006.
[11] Citado por Matthew Kalman, ibid.
[12] Robin Wright, Strikes Are Called Part of Broad Strategy: U.S., Israel Aim to Weaken Hezbollah, Region's Militants. Washington Post, 16/07/2006. A minha atenção foi guiada para este artigo por Tanya Reinhart, Israel’s “New Middle East”, 28/07/2006.
[13] John Kampfner, pers comm.
[14] John Kampfner, “Blood on his hands”. New Statesman, 07/08/2006.
George Monbiot

http://infoalternativa.org/autores/monbiot/monbiot046.htm

Sem comentários: