quarta-feira, agosto 02, 2006

O que estou a ver todos os dias no Líbano é um ultraje

O bonito viaduto que serpenteia entre as montanhas tornou­‑se um alvo “terrorista”. Os israelitas atacaram a auto­‑estrada internacional que vai de Beirute a Damasco, ontem logo após o anoitecer, e deixaram cair uma bomba sobre o trecho central da ponte de construção italiana – símbolo da cooperação libanesa com a União Europeia –, lançando destroços de betão para o vale que se estende centenas de metros abaixo. Era o orgulho do antigo primeiro­‑ministro assassinado Rafiq Hariri, o rosto do novo e emergente Líbano. E agora é um alvo “terrorista”.
Assim, ontem conduzi com cautela pelo velho caminho montanhoso que vai para Bekaa – os jactos israelitas zumbiam no céu por cima de mim –, dei a volta logo que cheguei à auto­‑estrada, e encontrei uma cratera de 15 metros com uma idosa que trepava com dificuldade pela borda sobre as mãos e os joelhos, tratando de chegar à sua casa no vale que resplandecia a leste. Também se tinha tornado um alvo “terrorista”.
Tiraram um homem que tremia de dor, coberto de sangue. Outro alvo “terrorista”. Por todo o caminho para o aeroporto havia pontes destroçadas, estradas esburacadas. Tudo isto eram alvos “terroristas”. No aeroporto, línguas de fogo elevavam-se para o céu dos depósitos de armazenamento de combustível para aviões, escurecendo a parte ocidental de Beirute. Também eram alvos “terroristas”.
Em Jiyeh, os israelitas atacaram a estação de energia eléctrica. Também um alvo “terrorista”.
No entanto, quando me dirigi à verdadeira sede do Hezbollah, um alto edifício em Haret Hreik, estava totalmente ileso. Só ontem à noite os israelitas conseguiram atingi­‑lo.
Pode-se, então, perdoar aos libaneses – pode­‑se perdoar a qualquer pessoa – por acreditarem que os israelitas têm mais interesse em destruir o Líbano do que aquele que têm pelos seus dois soldados?
Não surpreende que a Middle East Airlines, a companhia aérea nacional libanesa, ontem cedo pusesse tripulações nos seus quatro aviões Airbus que estavam no aeroporto de Beirute e os tirassem do país para Amã, antes que os israelitas se dessem conta de que estavam abastecidos de combustível e partiam.
Os políticos europeus falaram da “desproporcionada” resposta israelita à captura dos seus soldados na quarta­‑feira. Estão errados. O que observo agora no Líbano é um ultraje. Como pode haver uma desculpa para os 73 libaneses mortos feitos em pedaços nestes últimos três dias?
O mesmo se aplica, claro, aos quatro civis israelitas mortos pelos foguetes do Hezbollah. Mas – notem, se faz favor, que a razão entre as vidas de civis israelitas e as vidas de civis libaneses está agora em 1 para mais de 15. Isto não inclui as duas crianças que foram pulverizadas em sua casa, em Dweir, na quinta-feira, cujos corpos não podem ser encontrados. Os seus seis irmãos e irmãs foram sepultados ontem, juntamente com a sua mãe e o seu pai. Outro alvo “terrorista”. O mesmo se passou com uma família vizinha com cinco filhos, que também foram enterrados ontem. Outro alvo “terrorista”.
Terrorista, terrorista, terrorista. Há algo perverso em tudo isto, a matança e a destruição em massa e o uso hipócrita, constante, canceroso da palavra “terrorista”. Não, não esqueçamos que o Hezbollah violou o direito internacional, cruzou a fronteira de Israel, matou três soldados israelitas, capturou outros dois e regressou arrastando-os através da vedação da fronteira. Foi um acto de calculada crueldade que jamais deveria permitir ao líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, sorrir com tanta amplitude na sua conferência de imprensa. Trouxe uma tragédia sem paralelo a inúmeros inocentes no Líbano. E, claro, levou o Hezbollah a lançar pelo menos 170 foguetes Katiucha para Israel.
Mas o que aconteceria se o impotente governo libanês tivesse lançado ataques aéreos por todo Israel da última vez que as tropas de Israel entraram no Líbano? E se a força aérea libanesa tivesse matado 73 civis israelitas em ataques com bombas em Ashkelon, Telavive e Jerusalém ocidental? E se um caça libanês tivesse bombardeado o aeroporto Ben Gurion? E se um avião libanês tivesse destruído 26 pontes viárias em todo Israel? Não seria chamado “terrorismo”? Eu penso que sim. Mas se Israel fosse a vítima, provavelmente seria também a terceira guerra mundial.
Evidentemente, o Líbano não pode atacar Telavive. A sua força aérea consta de três velhos Hawker Hunters e de uma igualmente velha frota de helicópteros Huey da era do Vietname. A Síria, no entanto, tem mísseis que podem chegar a Telavive. Assim, a Síria – que Israel crê com razão estar por trás do ataque de quarta­‑feira do Hezbollah – não será bombardeada. É o Líbano que deve ser punido.
A liderança israelita tenciona “quebrar” o Hezbollah e destruir o seu “cancro terrorista”. Deveras? Será que os israelitas realmente acreditam que podem “quebrar” um dos exércitos guerrilheiros mais duros do mundo? E como?
Aqui há verdadeiras questões. Sob a Resolução 1559 do Conselho de Segurança da ONU – a mesma resolução que tirou o exército sírio do Líbano –, a milícia muçulmana xiita Hezbollah deveria ter sido desarmada. Não o foi porque, se o primeiro­‑ministro libanês, Fouad Siniora, o tivesse tentado, o exército libanês teria de enfrentá­‑la e o exército quase certamente se teria dividido, porque muitos soldados libaneses são muçulmanos xiitas. Poderíamos ver o reinício da guerra civil no Líbano – um facto do qual Nasrallah está cinicamente consciente - mas as tentativas de Siniora e do seu novo governo para encontrar um novo papel para o Hezbollah, que tem um ministro no governo (é ministro do Trabalho) caíram por terra. E o maior perigo agora é que o governo libanês entre em colapso e seja substituído por um regime pró­‑sírio que poderia tornar a convidar os sírios para voltar ao país.
Assim, há um verdadeiro enigma para resolver. Mas não se vai conseguir com o bombardeamento em massa do país por Israel. Nem com a obsessão pelos terroristas, terroristas, terroristas.

Robert Fisk
http://infoalternativa.org/autores/fisk/fisk084.htm

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