sexta-feira, agosto 11, 2006

Porque quer a Austrália uma “mudança de regime” em Timor Leste

Se alguém acreditasse na versão oficial, a intervenção das tropas australianas em Timor Leste é conduzida pelos mais nobre motivos. Estão ali simplesmente para restaurar a paz e a estabilidade após o colapso da autoridade do governo. Mas esta ficção política foi cada vez mais desmascarada pelos acontecimentos dos últimos dias, à medida que a luta pelo poder que despertou a crise vem à superfície.
A intervenção do governo de Howard nada tem a ver com a protecção dos interesses do povo de Timor Leste. Tem como objectivo proporcionar uma “mudança de regime” – a substituição do governo do primeiro­‑ministro Mari Alkatiri por uma administração mais em consonância com os interesses australianos.
Há uma máxima antiga em política externa que diz que não existem aliados nem alianças permanentes, só interesses permanentes. É este, sem dúvida, o caso em Timor Leste, onde uma das principais preocupações do governo australiano, apoiado pelo Partido Trabalhista da oposição, foi assegurar que outros poderes não pudessem exercer influência no que se refere explicitamente ao “pátio traseiro da Austrália”.
Em 1999 o governo de Howard enviou tropas para liderar a intervenção militar da ONU a fim de assegurar que a Austrália, mais do que o antigo poder colonial, Portugal, exercesse a maior autoridade no Timor Leste pós­‑independência e estivesse na melhor posição para explorar as valiosas reservas de gás e petróleo. Quase sete anos depois, as motivações essenciais permanecem as mesmas.
O conflito latente com Portugal veio à superfície na última sexta­‑feira quando o primeiro-ministro John Howard afirmou numa entrevista que a crise em Timor Leste se devia a uma «pobre governança». Era um ataque claro ao governo de Alkatiri. Suscitou uma resposta imediata do ministro dos Negócios Estrangeiros português, Diogo Freitas do Amaral, que criticou as afirmações de Howard como «uma interferência nos assuntos internos» de Timor Leste. «Não estamos de acordo com este tipo de declarações por parte de países estrangeiros», disse.
Mas Howard não foi dissuadido. De facto, decidiu dizer mais quando teve a oportunidade seguinte.
Numa aparição no programa “Insiders” da televisão ABC no domingo de manhã, perguntaram a Howard “quão mau” havia sido o governo de Timor Leste e se a responsabilidade era de Alkatiri.
Howard afirmou que não queria entrar em «comentários pormenorizados sobre as políticas do país», mas prosseguiu fazendo exactamente isso. Era óbvio, disse, que o país não tinha sido bem governado nos últimos anos. Declarou que não pensava retractar-se dos comentários feitos dois dias antes.
Pressionado sobre os planos australianos a longo prazo – se deveria haver um equivalente em Timor Leste da situação nas Ilhas Salomão, onde responsáveis australianos tomaram conta do Ministério das Finanças, assim como da polícia e das prisões – Howard foi mais além.
«Bem, não descarto nada, mas não quero declarar presuntivamente que é isso que vai suceder ou deveria suceder sem antes discutir o assunto com os timorenses orientais», disse. «Quero dizer, temos um caminho delicado a percorrer. Por um lado, queremos ajudar; somos o poder regional que está em posição de fazê­‑lo. É nossa responsabilidade ajudar, mas quero respeitar a independência dos timorenses orientais. Mas, por outro lado, repito, devem desempenhar essa independência ou as responsabilidades dessa independência com mais eficácia do que o fizeram nos últimos anos».

O «caminho delicado» refere-se às actividades dos rivais da Austrália na região, como indicavam os comentários do ministro dos Negócios Estrangeiros português. Até ao momento, o governo de Howard foi capaz de contrariar estas pressões graças ao apoio de que desfrutou dos Estados Unidos. Tal como a administração Clinton apoiou a intervenção de 1999, a secretária de Estado Condoleezza Rice tornou claro que os EUA apoiam plenamente a última deslocação de tropas. Numa conversação telefónica com o ministro dos Negócios Estrangeiros australiano, Alexander Downer, diz­‑se que ela perguntou: “O que quer que façamos?”.
O foco imediato da mudança de regime é a reunião do Conselho de Estado, de carácter consultivo, que se celebra agora em Dili. Esta entidade, convocada pelo presidente Xanana Gusmão, tem o poder de demitir o governo de Alkatiri e nomear um chamado governo de “unidade nacional” até às eleições que deverão ser celebradas em Maio.
Após uma reunião de 9 horas celebrada ontem, o Conselho não chegou a tomar uma decisão e as negociações continuam hoje. Enquanto não houve decisão oficial, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Timor Leste, José Ramos Horta, deixou claro que, no que a ele e a Xanana Gusmão se refere, Alkatiri deve renunciar.
Em declarações à televisão ABC, Ramos Horta disse: «O que agora é necessário é uma resolução política da actual crise política que envolve, obviamente, em primeiro lugar o primeiro-ministro no sentido em que muita gente quer a renúncia do primeiro­‑ministro».
Quando questionado sobre pôr à disposição a sua própria posição, Ramos Horta recusou­‑se a comentar, explicando que está envolto em negociações com ambas as partes.
Dentro de Timor Leste, a campanha para expulsar Alkatiri, o líder do partido governante, a Fretilin, decorre há algum tempo. Irrompeu à superfície há um ano, após a decisão de Alkatiri de converter em opcional a educação religiosa nas escolas, ao invés de obrigatória.
Este gesto elementar de separar igreja e estado provocou denúncias virulentas da Igreja Católica. Celebraram­‑se manifestações apelando à expulsão de Alkatiri e a um fim do seu “governo extremista”. Numa nota pastoral publicada em Abril de 2005 a hierarquia eclesiástica de Dili dizia que o gabinete continha «marxistas» que punham em perigo a democracia. O governo estava a seguir políticas baseadas no «modelo chinês» e no «terceiro mundo retrógrado».
Segundo uma reportagem do Asia Times, o embaixador dos EUA em Timor Leste apoiava abertamente a igreja nos seus protestos de rua contra o governo no ano passado, chegando inclusive a comparecer pessoalmente a uma das manifestações.
Em Janeiro último, um membro dirigente da Fretilin no parlamento nacional, Francisco Branco, denunciou um conhecido sacerdote por empreender uma campanha para derrubar o governo. Segundo Branco, o sacerdote tinha dito aos paroquianos que a decisão de enviar estudantes para estudar em Cuba converteria Timor Leste num país comunista e que a Fretilin tinha planeado matar padres e freiras se ganhasse as próximas eleições.
Uma vez iniciada a intervenção militar, os media australianos, seguindo o isco do governo de Howard, incrementaram as denúncias contra Alkatiri.
Num comentário publicado sábado passado, o editor internacional do Australian, Greg Sheridan, denunciou Alkatiri como um «primeiro-ministro desastroso», liderando a «chamada camarilha de Moçambique dos ideólogos da Fretilin» – uma referência ao longo período de exílio de Alkatiri em outra antiga colónia portuguesa durante a ocupação indonésia de Timor Leste.

«A catastrófica decisão em fazer do português a língua nacional de Timor Leste ilustra perfeitamente o dogmatismo e o grau de irrealidade da abordagem de Alkatiri. Esta decisão privou de direitos civis os jovens timorenses que falam tetun, indonésio ou inglês. Entrincheirou a camarilha de velhos e dogmáticos marxistas­‑leninistas no interior da Fretilin e exacerbou todas as divisões no seio da sociedade de Timor Leste. E não ajudou em nada Timor Leste a ganhar uma posição na comunidade internacional».
Alkatiri e os seus partidários não são “marxistas” nem “comunistas”. Nem estão o governo de Howard e os seus porta-vozes dos media preocupados com as políticas do governo para o povo de Timor Leste. A sua oposição a Alkatiri centra-se no facto de que a sua facção procurou ganhar apoio de outras grandes potências, principalmente Portugal, e crescentemente no período recente, a China, como contrapeso ao imperialismo australiano.
Alkatiri, em particular, suscitou a ira de Canberra durante as prolongadas negociações sobre a exploração das reservas de petróleo e de gás quando denunciou o governo australiano pelas suas tácticas insolentes.
Após quatro anos de intransigência de Howard e Downer, o governo de Dili foi obrigado no ano passado a adiar o acordo final sobre fronteiras marítimas entre os dois países por 50 a 60 anos. Segundo o direito internacional de fronteiras – que a Austrália se recusou a reconhecer – Timor Leste tem direito à maioria dos proventos do gás e do petróleo. Mas Canberra teve finalmente êxito em conseguir que Dili deixasse cair as suas pretensões de soberania sobre áreas chave do mar de Timor ricas em recursos durante duas gerações; altura em que os principais campos de gás e petróleo estarão comercialmente exaustos.
Se Alkatiri fosse encarado como um aliado da Austrália em Timor Leste, e não como um obstáculo, a atitude do governo Howard, e consequentemente os comentários dos mass media, teriam sido muito diferentes.
Para começar, os chamados soldados dissidentes, cuja rebelião acendeu a crise, não seriam retratados como tendo legítimas razões de queixa. Ao invés disso, a decisão de despedi-los depois de terem feito greve teria sido apoiada. Os comandantes do exército australiano, ao invés de manter conversações com os “rebeldes”, tê­‑los­‑iam denunciado por organizar um motim, tomando as leis nas suas próprias mãos e criando as condições para o “terrorismo”. A sua campanha para expulsar o governo de Alkatiri, no entanto, ajusta-se perfeitamente aos interesses australianos.
Esses interesses centram-se em assegurar a posição australiana numa região onde estão a crescer grandes conflitos de poder. Como assinalava ontem um comentário na Australian Financial Review, a rivalidade emergente entre o Japão e a China está a estender-se pelo Pacífico, colocando um «desafio real a um governo que está sempre a afirmar manter tão boas relações com Tóquio e com Pequim».
Apontando as questões económicas de longo prazo que sempre motivaram a política externa australiana nesta região, o comentário prosseguia: «É útil recordar que em 1920 os planificadores estratégicos australianos estavam preocupados porque o Japão tentava pôr as suas mãos nos supostos recursos petrolíferos do Timor português, e em 1975 havia o medo de que a China manipulasse um Timor independente de esquerda a fim de obter vantagem territorial».
Agora que a existência de recursos em gás e petróleo foi claramente estabelecida, a rivalidade entre o Japão e a China pela energia apresentaria desafios crescentes à Austrália, notava o comentário.

Uma das maneiras de responder a estes desafios é assegurar que um regime “fiável” se estabeleça em Dili. Este é um factor importante subjacente à luta pelo poder que actualmente se desenrola na capital de Timor Leste.

Nick Beams
http://www.infoalternativa.org/asia/timor005.htm

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