«Ainda é cedo para adivinhar que equipa irá vencer o Mundial, mas para algumas marcas o negócio já é certo. No total, a FIFA vai arrecadar 258 milhões de euros em patrocínios e vão ser investidos mil milhões em publicidade. Fora do relvado, o campeonato é outro, mas nem por isso menos competitivo» [1]. Ninguém ignora a crescente dimensão comercial do mais popular dos desportos. Em época de Campeonato do Mundo o futebol faz a manchete de suplementos económicos. Os números não enganam. A Philips desembolsou 31,3 milhões de euros em patrocínios, a McDonald’s 29,3 milhões de euros. A Adidas, só em publicidade, terá gasto cerca de 35 milhões de euros [2].
Em Portugal, por seu turno, a Central despendeu 2,5 milhões de euros na promoção de um novo produto, com a designação Selecção anexa ao nome. A bandeira humana do Banco Espírito Santo terá custado 1,5 milhões de euros. E a McDonald’s Portugal reservou 20 por cento do seu orçamento de marketing para actividades ligadas ao evento [3]. A selecção de Portugal alcança o 4.º lugar entre as equipas presentes no torneio mais atractivas para os anunciantes [4]. As principais marcas estrangeiras e nacionais são elas próprias promovidas, em artigos de jornal, a vedetas do torneio. As suas disputas comerciais são descritas como uma autêntica «Guerra de Estrelas» [5].
«A grande jogada», exclama-se em título a propósito das movimentações comerciais em torno do maior evento televisivo e desportivo do globo. Ainda agora o torneio começou, «mas há muito que as empresas entraram em campo.» «Marcas de todo o mundo apressaram-se para ganhar um lugar no Mundial de futebol da Alemanha 2006 e as tácticas das 15 convocadas já estão em jogo». Os “jogos” do futebol e da economia parecem confundir‑se por vezes em alguns discursos de análise, como paixão e consumo nos slogans dos publicitários. A vertente comercial não parece ser senão uma faceta mais desse espectáculo que se passa dentro do terreno de jogo. «Muitos confrontos foram disputados fora das quatro linhas, mesmo depois da FIFA ter anunciado a lista de convocados». Mesmo reconhecendo que se trata de «[u]m jogo milionário onde a bola é, no final, um bom pretexto» [6].
“Em directo” e “ao vivo”
De facto, a relação do dinheiro com o futebol tem sido tudo menos emocional. A comercialização do jogo não pode ser compreendida apenas em virtude da sua incontornável popularidade, da paixão pelo jogo. Ela está certamente ligada à componente de massas do evento, mas a dimensão dos estádios, por maiores que tenham sido, não pôde deixar de se constituir como entrave à plena realização do seu potencial comercial. Os próprios clubes, primeiro para fazer face às exigências das competições, terão sido parte interessada nesse processo. Mas a progressiva transformação desse público potencial em consumidores efectivos dependeu sobretudo da criação e popularização de meios tecnológicos que permitiram subtrair o evento aos constrangimentos imediatos do espaço e do tempo. Historicamente, os meios de comunicação social, nomeadamente os jornais desportivos, foram importantes agentes desse processo, não apenas difundindo o futebol jogado em campo mas constituindo-se eles próprios como promotores de jogos e torneios e também de narrativas que o alargaram para lá das ocorrências das quatro linhas [7].
No entanto, o «Cavalo de Tróia» deste processo de mercadorização, de transformação do jogo em produto, terá sido o encontro do futebol com a televisão [8]. Foi ele que permitiu levar o futebol, em “directo” e “ao vivo”, ao maior número possível de espectadores, alargando o público bem para lá do restrito espaço da bancada. Esse processo só se consumou plenamente quando a ele se associaram de forma activa os interesses comerciais das grandes marcas internacionais (concretizados na abertura de novos mercados e nas possibilidades de marketing), que depressa se deram conta do carácter ecuménico do futebol, funcional para a realização do seu próprio ecumenismo mercantil. Os patrocínios oficiais às maiores competições desportivas institucionalizaram‑se no Campeonato do Mundo de 1982, em Espanha.
Este ecumenismo esteve no entanto longe de ser abandonado aos seus próprios desígnios. A mercadorização foi sendo agenciada a vários níveis pelos principais clubes e pelas mais altas instâncias do jogo, extensivamente (alargando o universo de consumidores) e intensivamente (melhorando a rentabilidade do produto). Ainda durante a década de 1970, a FIFA aliou-se a vários parceiros comerciais para alargar a área de influência do jogo às sete partidas do mundo. Em 1977, na Tunísia, a Coca-Cola dava o nome ao Campeonato do Mundo de Juniores que a FIFA passava a organizar desde então, multiplicando a presença do jogo em países árabes, na China ou na União Soviética (onde a marca pôde também penetrar) [9]. Essa lógica universalista estendeu‑se igualmente aos critérios de atribuição da principal prova organizada pela FIFA, o Campeonato do Mundo, e ao aumento do número de equipas no torneio (passou de 24 para 32 em 1998).
“FUTEBOL-ESPECTÁCULO”
Paralelamente, o próprio jogo, na sua dimensão mediática e desportiva, tem sido objecto de um verdadeiro trabalho de recriação. Se desde a primeira transmissão televisiva, em Inglaterra em 1938, o futebol foi sendo sujeito ao brilho dos holofotes e à pixelização dos ecrãs, nos últimos 25 anos acabou por ser decisivamente submetido à intencionalidade estética dos seus principais agentes. A sua omnipresença geográfica, social, mas sobretudo mediática, traduzida não apenas na multiplicação de transmissões, mas também na exponenciação de públicos, conteúdos e suportes, envolveu a produção de um autêntico esforço de cosmética. Magazines televisivos e plataformas informacionais, promovidos pelos promotores ou submetidos às suas regras, constituíram-se, por seu turno, não só como novos produtos anexos ao jogo, veiculando publicidade, mas assumiram-se igualmente como produtores de uma imagem activamente elaborada do espectáculo futebolístico.
A popularidade de jogadores e equipas tem sido criteriosamente lapidada em “perfis” e “radiografias” microscópicas que activam alguns dos seus mais marcados traços e criam e recriam outros. O nome de provas e torneios laboriosamente promovidos a verdadeiras “imagens de marca”, com o consequente ajustamento das denominações e a definição de imagens uniformizadas que emprestam unidade (e valor) ao produto [10]. As próprias realizações televisivas dos jogos deixaram de ser abandonadas ao critério “técnico” das regies. Para quem acompanha o jogo, são hoje famosos, por exemplo, os grandes planos da compenetração oblíqua e transpirada de Ronaldinho ou do visionário e metrossexual semicerrar de olhos de Beckham nos momentos que antecedem a execução de um pontapé-livre. E não é raro ouvir dirigentes dos órgãos internacionais que regem o futebol insurgirem-se contra a “excessiva” racionalização do jogo a que as vitórias (e os contratos) obrigam. As próprias regras do futebol, supostamente imutáveis, moldam-se de ano para ano no sentido de trazer “mais espectáculo ao futebol”: a regulamentação de atrasos para o guarda-redes (que quebravam o “ritmo do jogo”), as sucessivas alterações à já de si complicada regra do fora-de-jogo (na senda de mais golos), as indicações aos árbitros para capricharem nas admoestações aos jogadores violentos (protegendo os mais “técnicos”) representam apenas alguns exemplos desta tendência.
Instrumento determinante desta recriação espectacular do jogo foi o gigantesco esforço de construção (e “reabilitação”) de estádios novos, sobretudo já no limiar do século XXI [11]. Se entre 1982 e 2000, nas dez principais provas futebolísticas de envergadura internacional organizadas pela UEFA e pela FIFA (Campeonato da Europa e Campeonato do Mundo, respectivamente), haviam sido construídos apenas 8 estádios novos (à média grosseira de um por evento, com manifestos objectivos simbólicos), nas três provas subsequentes (Japão/Coreia 2002, Portugal 2004 e Alemanha 2006), nos primeiros anos do século XXI, são já 30 os novos estádios levantados a pretexto da organização destes eventos (descontando as profundas reconstruções operadas em muitos outros estádios) [12]. Louvados à obsessão como consumação da modernidade de cidades e países e como obras de excelência de disciplinas como a engenharia e a arquitectura, representaram antes de mais e sobretudo a pedra angular de um esforço de higienização e de estetização de um espectáculo desportivo cujo valor crescente não se compadecia mais com as incidências e porosidades da vida dos homens.
ESTÁDIOS/ESTÚDIOS
Tratou-se, por um lado, de garantir dignidade social e respeitabilidade cultural a um evento que a custo se tem tentado alcandorar a um estatuto superior ao da “barbárie”. A comparação do arquitecto Souto de Moura, justificando o seu Municipal de Braga por altura do torneio europeu organizado em Portugal, é bastante expressiva a este respeito: «Hoje o futebol é um espectáculo, tal como o cinema, o teatro e a televisão, daí a opção de fazer apenas duas bancadas. Hoje ninguém aguenta ver uma peça do Peter Handke em zoom, atrás das balizas» [13]. Esse efeito, no entanto, foi obtido sobretudo pela introdução de uma renovada organização espacial dos públicos no interior dos estádios, organizando movimentos e permanências e decompondo as massas em unidades cada vez menores, da bancada à cadeira, isolando-as, consoantes as suas especificidades, em segmentos correspondentes [14]. «As regras de circulação num estádio são a coisa mais complicada do mundo: ninguém se pode encontrar mas toda a gente tem de se encontrar (…)» [15], afirma o mesmo arquitecto.
A segurança e o conforto, que de facto assim foram obtidos (pelo menos no interior dos estádios), tiveram menos a ver com os desejos expressos dos espectadores do que com os desígnios mais ou menos ocultos da UEFA. Esses objectivos eram bem patentes, por exemplo, no modo como a norma que regulava um all-seater stadium, que decretava a obrigatoriedade de que os jogos por si organizados fossem jogados diante de audiências sentadas, traía essa aparente preocupação com o público: «Um estádio apenas com lugares sentados é aquele em que todas as áreas da assistência com acesso público oferecem apenas acomodações com assentos, e/ou, de onde os espectadores não têm acesso a qualquer lugar da assistência que não seja sentado. [16]» E de facto, em vários países estas introduções têm levado à resistência organizada de vários grupos de adeptos [17]. Na Alemanha, por exemplo a pressão efectuada por estes levou à criação de um sistema flexível que permite a utilização de certos sectores da bancada por peões, durante as competições locais, que são depois transformados em lugares sentados, de forma a cumprir as determinações da UEFA em partidas sob a sua tutela [18].
Desta nova organização pôde resultar não apenas uma diversificação dos tipos de público no estádio (consubstanciado no crescimento de públicos femininos e familiares) mas sobretudo, nessa diversidade, uma selecção acrescida (consumada no preço dos ingressos) ou, pelo menos, uma efectiva separação e distribuição no interior dos recintos, materializada por sectores arquitectónica e regulamentarmente estanques [19]. Como se afirma no mesmo documento da UEFA: «É possível que uma progressiva mudança de política possa ser introduzida, começando antes de mais pela remoção das vedações, por exemplo, das áreas familiares e das áreas do recinto onde se congregam o tipo de espectadores mais maduros e menos fanáticos». Ou ainda «No interior do estádio, não deve ser possível que os espectadores se possam deslocar de um sector para outro» [20]. Com o objectivo declarado de criar uma atmosfera «mais civilizada e agradável» («a more civilised and pleasant atmosphere») [21].
Mas trata-se sobretudo, e também nessa respeitabilidade e dignidade recém-adquiridas, nessa esterilização, de tornar o jogo adequadamente televisionável. Diz o arquitecto: «(…) [T]oda a informação que eu tinha da FIFA e da UEFA é que, fundamentalmente, o desporto, ou o futebol em particular, é um espectáculo para televisão (…)» [22]. Antes de mais conseguir do recinto as melhores condições técnicas de acompanhamento: «Eu deduzi, não percebendo muito de futebol, que tinha de fazer um palco verde para 22 pessoas mais três árbitros, com 105 câmaras a filmar, para ser transmitido para todo o mundo e cujos direitos são de milhões de contos. O que eu tinha de fazer era um estúdio de televisão» [23]. Logo, também, de conseguir dos espectadores os melhores figurantes. Como afirmou um jornalista pela mesma ocasião, «O “efeito postal”, de que fala Manuel Salgado, arquitecto responsável pelo Estádio do Dragão, arrasta consigo a regra “chegar mais cedo, sair mais tarde”, transformando um simples estádio de futebol num grande estúdio de televisão: o público “ao vivo” será mais um dos actores para o público “à distância” que acompanhará os eventos via transmissão televisiva (…)» [24].
A ESPECULARIZAÇÃO DO JOGO
Os resultados destes esforços estão à vista. Segundo um estudo da NOP World, 40 por cento dos consumidores revelam ter muito mais confiança numa marca que apoie grandes eventos [25]. O grau de reconhecimento como patrocinador das várias empresas associadas ao Mundial de Futebol deste ano atinge valores na casa dos 40 por cento. À frente a Adidas, seguida da Coca-Cola, da Nike, da Mastercard e da McDonald’s (43, 38, 31, 24 e 20 por cento respectivamente) [26]. Em Portugal, os resultados obtidos com o envolvimento comercial no Euro 2004 parecem ter convencido decisivamente as marcas a apostarem no futebol. «Na altura, foram gastos mais de 14,3 milhões de euros em publicidade, mas a recordação genérica dos anúncios publicitários bateu os recordes dos últimos anos e a mediatização do evento chegou às 69 mil notícias. Os resultados da Galp Energia falam por si. Com o patrocínio do Clube Portugal e a consequente criação do hino da selecção, a marca conseguiu ocupar um lugar no Top+ e triplicar o número de visitantes ao seu portal on-line» [27].
Alguns destes valores dão conta de até que ponto as marcas se confundem, de facto, com o próprio evento. Já não se trata pura e simplesmente de patrocinar o futebol, exteriormente, mas de «fazer parte da competição». As acções das várias marcas vão aliás todas elas nesse sentido: «[As] 12 marcas que se associam oficialmente ao Clube Portugal, a designação que a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) escolheu para “representar o produto selecção nacional A”, explica Sebastião Lobo, responsável de marketing da instituição (…) fazem parte deste grupo que, apesar de heterogéneo, partilha um objectivo comum: “associar‑se ao futebol e estar perto dos portugueses numa altura de grandes emoções”». Como se afirma, na peça jornalística, deixando uma vez mais retoricamente sublinhada essa identidade: «Quando se paga para entrar em campo, não basta ter sorte» [28].
Na Alemanha, a Adidas ergueu uma réplica de um estádio «com capacidade para 10 mil adeptos» [29] onde se pretende, segundo comunicado oficial, reproduzir «a energia e euforia que se vive dentro dos estádios» [30]. A marca germânica de pneus Continental levantou um relógio gigante em Hannover para fazer a contagem decrescente para o começo do evento; em vários cartazes espalhados pela cidade dava ainda pessoalmente as boas-vindas a algumas das principais vedetas nas respectiva línguas. A McDonald’s, por seu turno, consegue literalmente entrar em campo, fazendo com que crianças por si seleccionadas, que envergam as suas cores, acompanhem de mãos dadas os jogadores no início dos encontros [31].
Nos seus traços gerais, trata-se de uma estratégia comercial utilizada em diversos media. Os seus objectivos são aliás perfeitamente transparentes. No mesmo suplemento económico onde figuram as peças citadas sobre a economia do jogo, Ana Paula Costa (gestora), acerca do elevado preço dos anúncios do cinema, afirma que se trata de «um preço justo, tendo em conta que é um media de qualidade. Face aos outros meios, o cinema é o que tem a mais alta taxa de recall: 75 por cento. Ou seja, é um meio de qualidade, as pessoas estão cativas numa sala de cinema, sem nenhum factor de distracção, e onde é projectado um suporte publicitário nas melhores condições audiovisuais. Um estudo feito nos Estados Unidos concluiu que consumidores que, na televisão, não toleram publicidade, em cinema consideram-na parte do espectáculo» [32].
Mais do que pneus, hambúrgueres ou sapatilhas é futebol – o espectáculo – que, em época de futebol, se vende em cada unidade de carne ou de borracha adjudicada. São os próprios reclames de televisão que tantas vezes não possuem qualquer referência a produtos concretos comercializados por cada uma das marcas que se associam ao evento. Nada disto é novo, claro, ou sequer restrito ao futebol, mas não deixa de ser assinalável que este processo atinja o seu pico justamente quando, paradoxalmente ou não, o futebol propriamente dito, o jogo, desapareceu; para aparecer no sinal codificado de canais televisivos que emitem em circuito fechado.
Vivemos o Mundial — ele está por toda a parte – mas do torneio nem sombra dele. Para a grande maioria de nós ele não existe senão e justamente nos ímanes e nos cordões humanos virtuais da gasolineira, nas bandeiras do banco, nos hinos da rádio e, apenas marginalmente, nas partidas da selecção portuguesa. Os principais canais de televisão multiplicam-se em subeventos futebolísticos (onde o jogo está na maior parte das vezes ausente) e nas “reportagens que neste telejornal temos ainda para mostrar”. O futebol está em toda a parte e em parte nenhuma. E nesse desaparecimento parece consumar-se finalmente a quimera, a perfeita identidade entre os meios comerciais e os fins que os determinam: nessa especularização o futebol parece transformar-se na imagem sonhada porque, finalmente, apenas e só essa imagem. Sem política, sem hooligans, sem partidas empatadas, festa pura, puro ecumenismo.
Resta talvez saber se a “festa” poderá resistir à privatização do jogo, na televisão e no estádio. Já em pleno Mundial a FIFA terá reconhecido, respondendo aos protestos dos espectadores, «que a música debitada em alto som nas instalações sonoras e o speaker têm “cortado” o ambiente entre o público nas bancadas, sobrepondo-se aos cânticos dos adeptos», justificando-se assim: «[n]os últimos 12 minutos há um programa rigoroso que tem de ser cumprido. Contém anúncios, informações sobre as selecções, os hinos… Mas é verdade que muda a atmosfera no estádio [33]». Não existem grandes razões para optimismos. Mas em breve saberemos em que medida os interesses comerciais dos vários agentes – FIFA, marcas, televisões – terão sido ou não contraditórios entre si. No “retorno” calculado para os investimentos produzidos encontraremos certamente parte da resposta a essa dúvida. Essa resposta vacila também nos motivos daqueles que, alheados do futebol no relvado, na televisão, sob os aparelhos que em cafés difundem o torneio, vão trocando, como em crianças, cromos autocolantes dos jogadores do Mundial.
[1] Raquel Almeida Correia, “A Grande Jogada”, Dia D (suplemento do Público), 5 de Junho de 2006.
[2] Idem.
[3] Blandina Costa e Raquel Almeida Correia, “À Boleia do Mundial”, Dia D (suplemento do Público), 5 de Junho de 2006.
[4] Global Sponsors, citado em idem.
[5] Título de capa do Dia D (suplemento do Público), 5 de Junho de 2006.
[6] Raquel Almeida Correia, “A Grande Jogada”.
[7] Vd. Nuno Domingos e Rahul Kumar, “A Evolução da Notícia Desportiva em Portugal”, em Diogo Ramada Curto (org.), Sociologia da Leitura em Portugal no Século XX (no prelo).
[8] João Rodrigues e José Neves, “Do Amor à Camisola: Notas Críticas da Economia Política do Futebol”, em José Neves e Nuno Domingos (org.), A Época do Futebol. O Jogo Visto pelas Ciências Sociais, Assírio e Alvim, Lisboa, 2004, pp. 165-229.
[9] Cf. idem
[10] O caso mais notório terá sido talvez o das transformações a que foi submetida a antiga Taça dos Clubes Campeões Europeus, com a consequente extinção da Taça das Taças (ambas organizadas pela UEFA), e a criação da Champions League ®.
[11] Frederico Ágoas, “’Que de longe parecem moscas’: contributos para uma arqueologia do estádio de futebol”, em idem, pp. 263-303.
[12] Idem.
[13] Eduardo Souto de Moura, “estádio municipal de braga”, Revista Arquitectura e Vida, Julho de 2003, p. 28.
[14] Frederico Ágoas, op. cit.
[15] Entrevista a Souto de Moura em José Mateus, “O Braga de Souto Moura”, Linha (suplemento do Expresso), 29 de Novembro de 2003.
[16] UEFA, Safety and Security in the Stadium for all UEFA Competition Matches, 2000, (tradução e sublinhado nossos).
[17] Vd., por exemplo, Anthony King, The End of the Terraces. The Transformation of English Football in the 1990s, Leicester University Press, Londres/Nova Iorque, 2002.
[18] Football Licensing Authority, Report on the “Kombi” Seating – VolksparkStadium Hamburg, 23 e 24 de Fevereiro de 2001.
[19] Frederico Ágoas, op. cit.
[20] UEFA, Safety and Security in the Stadium for all UEFA Competition Matches, 2000 (tradução nossa).
[21] Idem.
[22] Em José Mateus, “O Braga de Souto Moura”.
[23] Idem.
[24] Luís Octávio Costa, “O efeito íman do Euro 2004”, Público, 30 de Novembro de 2003.
[25] Citado em Raquel Almeida Correia, “A Grande Jogada”.
[26] GMI – market research, citado em idem.
[27] Blandina Costa e Raquel Almeida Correia, “À Boleia do Mundial”.
[28] Raquel Almeida Correia, “A Grande Jogada”.
[29] Idem.
[30] Citado em idem.
[31] Idem.
[32] Raquel Almeida Correia, “’Somos pequenos mas com grandes ideias’”, entrevista de Ana Paula Costa, Dia D (suplemento do Público), 5 de Junho de 2006.
[33] Público, 14 de Junho de 2006.
Frederico Ágoas
http://resistir.info/
Em Portugal, por seu turno, a Central despendeu 2,5 milhões de euros na promoção de um novo produto, com a designação Selecção anexa ao nome. A bandeira humana do Banco Espírito Santo terá custado 1,5 milhões de euros. E a McDonald’s Portugal reservou 20 por cento do seu orçamento de marketing para actividades ligadas ao evento [3]. A selecção de Portugal alcança o 4.º lugar entre as equipas presentes no torneio mais atractivas para os anunciantes [4]. As principais marcas estrangeiras e nacionais são elas próprias promovidas, em artigos de jornal, a vedetas do torneio. As suas disputas comerciais são descritas como uma autêntica «Guerra de Estrelas» [5].
«A grande jogada», exclama-se em título a propósito das movimentações comerciais em torno do maior evento televisivo e desportivo do globo. Ainda agora o torneio começou, «mas há muito que as empresas entraram em campo.» «Marcas de todo o mundo apressaram-se para ganhar um lugar no Mundial de futebol da Alemanha 2006 e as tácticas das 15 convocadas já estão em jogo». Os “jogos” do futebol e da economia parecem confundir‑se por vezes em alguns discursos de análise, como paixão e consumo nos slogans dos publicitários. A vertente comercial não parece ser senão uma faceta mais desse espectáculo que se passa dentro do terreno de jogo. «Muitos confrontos foram disputados fora das quatro linhas, mesmo depois da FIFA ter anunciado a lista de convocados». Mesmo reconhecendo que se trata de «[u]m jogo milionário onde a bola é, no final, um bom pretexto» [6].
“Em directo” e “ao vivo”
De facto, a relação do dinheiro com o futebol tem sido tudo menos emocional. A comercialização do jogo não pode ser compreendida apenas em virtude da sua incontornável popularidade, da paixão pelo jogo. Ela está certamente ligada à componente de massas do evento, mas a dimensão dos estádios, por maiores que tenham sido, não pôde deixar de se constituir como entrave à plena realização do seu potencial comercial. Os próprios clubes, primeiro para fazer face às exigências das competições, terão sido parte interessada nesse processo. Mas a progressiva transformação desse público potencial em consumidores efectivos dependeu sobretudo da criação e popularização de meios tecnológicos que permitiram subtrair o evento aos constrangimentos imediatos do espaço e do tempo. Historicamente, os meios de comunicação social, nomeadamente os jornais desportivos, foram importantes agentes desse processo, não apenas difundindo o futebol jogado em campo mas constituindo-se eles próprios como promotores de jogos e torneios e também de narrativas que o alargaram para lá das ocorrências das quatro linhas [7].
No entanto, o «Cavalo de Tróia» deste processo de mercadorização, de transformação do jogo em produto, terá sido o encontro do futebol com a televisão [8]. Foi ele que permitiu levar o futebol, em “directo” e “ao vivo”, ao maior número possível de espectadores, alargando o público bem para lá do restrito espaço da bancada. Esse processo só se consumou plenamente quando a ele se associaram de forma activa os interesses comerciais das grandes marcas internacionais (concretizados na abertura de novos mercados e nas possibilidades de marketing), que depressa se deram conta do carácter ecuménico do futebol, funcional para a realização do seu próprio ecumenismo mercantil. Os patrocínios oficiais às maiores competições desportivas institucionalizaram‑se no Campeonato do Mundo de 1982, em Espanha.
Este ecumenismo esteve no entanto longe de ser abandonado aos seus próprios desígnios. A mercadorização foi sendo agenciada a vários níveis pelos principais clubes e pelas mais altas instâncias do jogo, extensivamente (alargando o universo de consumidores) e intensivamente (melhorando a rentabilidade do produto). Ainda durante a década de 1970, a FIFA aliou-se a vários parceiros comerciais para alargar a área de influência do jogo às sete partidas do mundo. Em 1977, na Tunísia, a Coca-Cola dava o nome ao Campeonato do Mundo de Juniores que a FIFA passava a organizar desde então, multiplicando a presença do jogo em países árabes, na China ou na União Soviética (onde a marca pôde também penetrar) [9]. Essa lógica universalista estendeu‑se igualmente aos critérios de atribuição da principal prova organizada pela FIFA, o Campeonato do Mundo, e ao aumento do número de equipas no torneio (passou de 24 para 32 em 1998).
“FUTEBOL-ESPECTÁCULO”
Paralelamente, o próprio jogo, na sua dimensão mediática e desportiva, tem sido objecto de um verdadeiro trabalho de recriação. Se desde a primeira transmissão televisiva, em Inglaterra em 1938, o futebol foi sendo sujeito ao brilho dos holofotes e à pixelização dos ecrãs, nos últimos 25 anos acabou por ser decisivamente submetido à intencionalidade estética dos seus principais agentes. A sua omnipresença geográfica, social, mas sobretudo mediática, traduzida não apenas na multiplicação de transmissões, mas também na exponenciação de públicos, conteúdos e suportes, envolveu a produção de um autêntico esforço de cosmética. Magazines televisivos e plataformas informacionais, promovidos pelos promotores ou submetidos às suas regras, constituíram-se, por seu turno, não só como novos produtos anexos ao jogo, veiculando publicidade, mas assumiram-se igualmente como produtores de uma imagem activamente elaborada do espectáculo futebolístico.
A popularidade de jogadores e equipas tem sido criteriosamente lapidada em “perfis” e “radiografias” microscópicas que activam alguns dos seus mais marcados traços e criam e recriam outros. O nome de provas e torneios laboriosamente promovidos a verdadeiras “imagens de marca”, com o consequente ajustamento das denominações e a definição de imagens uniformizadas que emprestam unidade (e valor) ao produto [10]. As próprias realizações televisivas dos jogos deixaram de ser abandonadas ao critério “técnico” das regies. Para quem acompanha o jogo, são hoje famosos, por exemplo, os grandes planos da compenetração oblíqua e transpirada de Ronaldinho ou do visionário e metrossexual semicerrar de olhos de Beckham nos momentos que antecedem a execução de um pontapé-livre. E não é raro ouvir dirigentes dos órgãos internacionais que regem o futebol insurgirem-se contra a “excessiva” racionalização do jogo a que as vitórias (e os contratos) obrigam. As próprias regras do futebol, supostamente imutáveis, moldam-se de ano para ano no sentido de trazer “mais espectáculo ao futebol”: a regulamentação de atrasos para o guarda-redes (que quebravam o “ritmo do jogo”), as sucessivas alterações à já de si complicada regra do fora-de-jogo (na senda de mais golos), as indicações aos árbitros para capricharem nas admoestações aos jogadores violentos (protegendo os mais “técnicos”) representam apenas alguns exemplos desta tendência.
Instrumento determinante desta recriação espectacular do jogo foi o gigantesco esforço de construção (e “reabilitação”) de estádios novos, sobretudo já no limiar do século XXI [11]. Se entre 1982 e 2000, nas dez principais provas futebolísticas de envergadura internacional organizadas pela UEFA e pela FIFA (Campeonato da Europa e Campeonato do Mundo, respectivamente), haviam sido construídos apenas 8 estádios novos (à média grosseira de um por evento, com manifestos objectivos simbólicos), nas três provas subsequentes (Japão/Coreia 2002, Portugal 2004 e Alemanha 2006), nos primeiros anos do século XXI, são já 30 os novos estádios levantados a pretexto da organização destes eventos (descontando as profundas reconstruções operadas em muitos outros estádios) [12]. Louvados à obsessão como consumação da modernidade de cidades e países e como obras de excelência de disciplinas como a engenharia e a arquitectura, representaram antes de mais e sobretudo a pedra angular de um esforço de higienização e de estetização de um espectáculo desportivo cujo valor crescente não se compadecia mais com as incidências e porosidades da vida dos homens.
ESTÁDIOS/ESTÚDIOS
Tratou-se, por um lado, de garantir dignidade social e respeitabilidade cultural a um evento que a custo se tem tentado alcandorar a um estatuto superior ao da “barbárie”. A comparação do arquitecto Souto de Moura, justificando o seu Municipal de Braga por altura do torneio europeu organizado em Portugal, é bastante expressiva a este respeito: «Hoje o futebol é um espectáculo, tal como o cinema, o teatro e a televisão, daí a opção de fazer apenas duas bancadas. Hoje ninguém aguenta ver uma peça do Peter Handke em zoom, atrás das balizas» [13]. Esse efeito, no entanto, foi obtido sobretudo pela introdução de uma renovada organização espacial dos públicos no interior dos estádios, organizando movimentos e permanências e decompondo as massas em unidades cada vez menores, da bancada à cadeira, isolando-as, consoantes as suas especificidades, em segmentos correspondentes [14]. «As regras de circulação num estádio são a coisa mais complicada do mundo: ninguém se pode encontrar mas toda a gente tem de se encontrar (…)» [15], afirma o mesmo arquitecto.
A segurança e o conforto, que de facto assim foram obtidos (pelo menos no interior dos estádios), tiveram menos a ver com os desejos expressos dos espectadores do que com os desígnios mais ou menos ocultos da UEFA. Esses objectivos eram bem patentes, por exemplo, no modo como a norma que regulava um all-seater stadium, que decretava a obrigatoriedade de que os jogos por si organizados fossem jogados diante de audiências sentadas, traía essa aparente preocupação com o público: «Um estádio apenas com lugares sentados é aquele em que todas as áreas da assistência com acesso público oferecem apenas acomodações com assentos, e/ou, de onde os espectadores não têm acesso a qualquer lugar da assistência que não seja sentado. [16]» E de facto, em vários países estas introduções têm levado à resistência organizada de vários grupos de adeptos [17]. Na Alemanha, por exemplo a pressão efectuada por estes levou à criação de um sistema flexível que permite a utilização de certos sectores da bancada por peões, durante as competições locais, que são depois transformados em lugares sentados, de forma a cumprir as determinações da UEFA em partidas sob a sua tutela [18].
Desta nova organização pôde resultar não apenas uma diversificação dos tipos de público no estádio (consubstanciado no crescimento de públicos femininos e familiares) mas sobretudo, nessa diversidade, uma selecção acrescida (consumada no preço dos ingressos) ou, pelo menos, uma efectiva separação e distribuição no interior dos recintos, materializada por sectores arquitectónica e regulamentarmente estanques [19]. Como se afirma no mesmo documento da UEFA: «É possível que uma progressiva mudança de política possa ser introduzida, começando antes de mais pela remoção das vedações, por exemplo, das áreas familiares e das áreas do recinto onde se congregam o tipo de espectadores mais maduros e menos fanáticos». Ou ainda «No interior do estádio, não deve ser possível que os espectadores se possam deslocar de um sector para outro» [20]. Com o objectivo declarado de criar uma atmosfera «mais civilizada e agradável» («a more civilised and pleasant atmosphere») [21].
Mas trata-se sobretudo, e também nessa respeitabilidade e dignidade recém-adquiridas, nessa esterilização, de tornar o jogo adequadamente televisionável. Diz o arquitecto: «(…) [T]oda a informação que eu tinha da FIFA e da UEFA é que, fundamentalmente, o desporto, ou o futebol em particular, é um espectáculo para televisão (…)» [22]. Antes de mais conseguir do recinto as melhores condições técnicas de acompanhamento: «Eu deduzi, não percebendo muito de futebol, que tinha de fazer um palco verde para 22 pessoas mais três árbitros, com 105 câmaras a filmar, para ser transmitido para todo o mundo e cujos direitos são de milhões de contos. O que eu tinha de fazer era um estúdio de televisão» [23]. Logo, também, de conseguir dos espectadores os melhores figurantes. Como afirmou um jornalista pela mesma ocasião, «O “efeito postal”, de que fala Manuel Salgado, arquitecto responsável pelo Estádio do Dragão, arrasta consigo a regra “chegar mais cedo, sair mais tarde”, transformando um simples estádio de futebol num grande estúdio de televisão: o público “ao vivo” será mais um dos actores para o público “à distância” que acompanhará os eventos via transmissão televisiva (…)» [24].
A ESPECULARIZAÇÃO DO JOGO
Os resultados destes esforços estão à vista. Segundo um estudo da NOP World, 40 por cento dos consumidores revelam ter muito mais confiança numa marca que apoie grandes eventos [25]. O grau de reconhecimento como patrocinador das várias empresas associadas ao Mundial de Futebol deste ano atinge valores na casa dos 40 por cento. À frente a Adidas, seguida da Coca-Cola, da Nike, da Mastercard e da McDonald’s (43, 38, 31, 24 e 20 por cento respectivamente) [26]. Em Portugal, os resultados obtidos com o envolvimento comercial no Euro 2004 parecem ter convencido decisivamente as marcas a apostarem no futebol. «Na altura, foram gastos mais de 14,3 milhões de euros em publicidade, mas a recordação genérica dos anúncios publicitários bateu os recordes dos últimos anos e a mediatização do evento chegou às 69 mil notícias. Os resultados da Galp Energia falam por si. Com o patrocínio do Clube Portugal e a consequente criação do hino da selecção, a marca conseguiu ocupar um lugar no Top+ e triplicar o número de visitantes ao seu portal on-line» [27].
Alguns destes valores dão conta de até que ponto as marcas se confundem, de facto, com o próprio evento. Já não se trata pura e simplesmente de patrocinar o futebol, exteriormente, mas de «fazer parte da competição». As acções das várias marcas vão aliás todas elas nesse sentido: «[As] 12 marcas que se associam oficialmente ao Clube Portugal, a designação que a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) escolheu para “representar o produto selecção nacional A”, explica Sebastião Lobo, responsável de marketing da instituição (…) fazem parte deste grupo que, apesar de heterogéneo, partilha um objectivo comum: “associar‑se ao futebol e estar perto dos portugueses numa altura de grandes emoções”». Como se afirma, na peça jornalística, deixando uma vez mais retoricamente sublinhada essa identidade: «Quando se paga para entrar em campo, não basta ter sorte» [28].
Na Alemanha, a Adidas ergueu uma réplica de um estádio «com capacidade para 10 mil adeptos» [29] onde se pretende, segundo comunicado oficial, reproduzir «a energia e euforia que se vive dentro dos estádios» [30]. A marca germânica de pneus Continental levantou um relógio gigante em Hannover para fazer a contagem decrescente para o começo do evento; em vários cartazes espalhados pela cidade dava ainda pessoalmente as boas-vindas a algumas das principais vedetas nas respectiva línguas. A McDonald’s, por seu turno, consegue literalmente entrar em campo, fazendo com que crianças por si seleccionadas, que envergam as suas cores, acompanhem de mãos dadas os jogadores no início dos encontros [31].
Nos seus traços gerais, trata-se de uma estratégia comercial utilizada em diversos media. Os seus objectivos são aliás perfeitamente transparentes. No mesmo suplemento económico onde figuram as peças citadas sobre a economia do jogo, Ana Paula Costa (gestora), acerca do elevado preço dos anúncios do cinema, afirma que se trata de «um preço justo, tendo em conta que é um media de qualidade. Face aos outros meios, o cinema é o que tem a mais alta taxa de recall: 75 por cento. Ou seja, é um meio de qualidade, as pessoas estão cativas numa sala de cinema, sem nenhum factor de distracção, e onde é projectado um suporte publicitário nas melhores condições audiovisuais. Um estudo feito nos Estados Unidos concluiu que consumidores que, na televisão, não toleram publicidade, em cinema consideram-na parte do espectáculo» [32].
Mais do que pneus, hambúrgueres ou sapatilhas é futebol – o espectáculo – que, em época de futebol, se vende em cada unidade de carne ou de borracha adjudicada. São os próprios reclames de televisão que tantas vezes não possuem qualquer referência a produtos concretos comercializados por cada uma das marcas que se associam ao evento. Nada disto é novo, claro, ou sequer restrito ao futebol, mas não deixa de ser assinalável que este processo atinja o seu pico justamente quando, paradoxalmente ou não, o futebol propriamente dito, o jogo, desapareceu; para aparecer no sinal codificado de canais televisivos que emitem em circuito fechado.
Vivemos o Mundial — ele está por toda a parte – mas do torneio nem sombra dele. Para a grande maioria de nós ele não existe senão e justamente nos ímanes e nos cordões humanos virtuais da gasolineira, nas bandeiras do banco, nos hinos da rádio e, apenas marginalmente, nas partidas da selecção portuguesa. Os principais canais de televisão multiplicam-se em subeventos futebolísticos (onde o jogo está na maior parte das vezes ausente) e nas “reportagens que neste telejornal temos ainda para mostrar”. O futebol está em toda a parte e em parte nenhuma. E nesse desaparecimento parece consumar-se finalmente a quimera, a perfeita identidade entre os meios comerciais e os fins que os determinam: nessa especularização o futebol parece transformar-se na imagem sonhada porque, finalmente, apenas e só essa imagem. Sem política, sem hooligans, sem partidas empatadas, festa pura, puro ecumenismo.
Resta talvez saber se a “festa” poderá resistir à privatização do jogo, na televisão e no estádio. Já em pleno Mundial a FIFA terá reconhecido, respondendo aos protestos dos espectadores, «que a música debitada em alto som nas instalações sonoras e o speaker têm “cortado” o ambiente entre o público nas bancadas, sobrepondo-se aos cânticos dos adeptos», justificando-se assim: «[n]os últimos 12 minutos há um programa rigoroso que tem de ser cumprido. Contém anúncios, informações sobre as selecções, os hinos… Mas é verdade que muda a atmosfera no estádio [33]». Não existem grandes razões para optimismos. Mas em breve saberemos em que medida os interesses comerciais dos vários agentes – FIFA, marcas, televisões – terão sido ou não contraditórios entre si. No “retorno” calculado para os investimentos produzidos encontraremos certamente parte da resposta a essa dúvida. Essa resposta vacila também nos motivos daqueles que, alheados do futebol no relvado, na televisão, sob os aparelhos que em cafés difundem o torneio, vão trocando, como em crianças, cromos autocolantes dos jogadores do Mundial.
[1] Raquel Almeida Correia, “A Grande Jogada”, Dia D (suplemento do Público), 5 de Junho de 2006.
[2] Idem.
[3] Blandina Costa e Raquel Almeida Correia, “À Boleia do Mundial”, Dia D (suplemento do Público), 5 de Junho de 2006.
[4] Global Sponsors, citado em idem.
[5] Título de capa do Dia D (suplemento do Público), 5 de Junho de 2006.
[6] Raquel Almeida Correia, “A Grande Jogada”.
[7] Vd. Nuno Domingos e Rahul Kumar, “A Evolução da Notícia Desportiva em Portugal”, em Diogo Ramada Curto (org.), Sociologia da Leitura em Portugal no Século XX (no prelo).
[8] João Rodrigues e José Neves, “Do Amor à Camisola: Notas Críticas da Economia Política do Futebol”, em José Neves e Nuno Domingos (org.), A Época do Futebol. O Jogo Visto pelas Ciências Sociais, Assírio e Alvim, Lisboa, 2004, pp. 165-229.
[9] Cf. idem
[10] O caso mais notório terá sido talvez o das transformações a que foi submetida a antiga Taça dos Clubes Campeões Europeus, com a consequente extinção da Taça das Taças (ambas organizadas pela UEFA), e a criação da Champions League ®.
[11] Frederico Ágoas, “’Que de longe parecem moscas’: contributos para uma arqueologia do estádio de futebol”, em idem, pp. 263-303.
[12] Idem.
[13] Eduardo Souto de Moura, “estádio municipal de braga”, Revista Arquitectura e Vida, Julho de 2003, p. 28.
[14] Frederico Ágoas, op. cit.
[15] Entrevista a Souto de Moura em José Mateus, “O Braga de Souto Moura”, Linha (suplemento do Expresso), 29 de Novembro de 2003.
[16] UEFA, Safety and Security in the Stadium for all UEFA Competition Matches, 2000, (tradução e sublinhado nossos).
[17] Vd., por exemplo, Anthony King, The End of the Terraces. The Transformation of English Football in the 1990s, Leicester University Press, Londres/Nova Iorque, 2002.
[18] Football Licensing Authority, Report on the “Kombi” Seating – VolksparkStadium Hamburg, 23 e 24 de Fevereiro de 2001.
[19] Frederico Ágoas, op. cit.
[20] UEFA, Safety and Security in the Stadium for all UEFA Competition Matches, 2000 (tradução nossa).
[21] Idem.
[22] Em José Mateus, “O Braga de Souto Moura”.
[23] Idem.
[24] Luís Octávio Costa, “O efeito íman do Euro 2004”, Público, 30 de Novembro de 2003.
[25] Citado em Raquel Almeida Correia, “A Grande Jogada”.
[26] GMI – market research, citado em idem.
[27] Blandina Costa e Raquel Almeida Correia, “À Boleia do Mundial”.
[28] Raquel Almeida Correia, “A Grande Jogada”.
[29] Idem.
[30] Citado em idem.
[31] Idem.
[32] Raquel Almeida Correia, “’Somos pequenos mas com grandes ideias’”, entrevista de Ana Paula Costa, Dia D (suplemento do Público), 5 de Junho de 2006.
[33] Público, 14 de Junho de 2006.
Frederico Ágoas
http://resistir.info/
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