quarta-feira, agosto 02, 2006

Robert Kurz e o declínio da classe média

Em recente artigo, o sociólogo Robert Kurz analisa um dos fenômenos característicos de nossa época: O inexorável declínio da classe média, causado principalmente pelo novo paradigma tecnológico.
Em artigo publicado no caderno “Mais!”, da Folha de S. Paulo de 19/9/04, intitulado “O declínio da classe média”, Robert Kurz começa por confirmar a idéia de que os antigos conceitos de “classes” marxista, como sendo apenas o binômio “capitalista-operário” , está superada.
Em suas palavras: “No entendimento tradicional, a ‘classe operária’, que produz a mais-valia, era explorada pela ‘classe dos capitalistas’ por meio da ‘propriedade privada dos meios de produção’. Nenhum desses conceitos pode expor com exatidão os problemas atuais”.
A seguir, em minha opinião, vem a sua mais importante conclusão: “A nova pobreza não surge por conta da exploração na produção, mas pela exclusão da produção. Quem ainda está empregado na produção capitalista regular já figura entre os relativamente privilegiados”.
Isso é muito importante porque coloca o problema dentro de sua perspectiva real. Finalmente os pós-marxistas parecem aceitar a realidade do novo “paradigma informacional”, segundo o qual, a economia não está mais centrada na capacidade industrial e sim no domínio da informação. Em outras palavras, o novo fator decisivo no equilíbrio entre “classes”, é a tecnologia, que pode simplesmente substituir o trabalhador.
Mais adiante, Kurz admite que a “classe dos capitalistas” também passou a ser um conceito muito vago. Ele afirma que nas condições atuais, “o capital aparece de certo modo socializado e anonimizado; ele se revelou abstrato, deixando a forma personalizável da sociedade inteira”.
A partir daí, Kurz conclui, na minha opinião erradamente, que com a redução cada vez maior da classe operária industrial, cria-se cada vez menos “mais-valia”, o que faria com que os capitais monetários fossem desviados para os mercados financeiros especulativos. Isso porque segundo ele “os investimentos em novas fábricas se tornaram não rentáveis”.
Essa é uma afirmação completamente contraditória, porque implicaria em que os lucros só podem ser realizados caso o “capital” possa explorar a mão-de-obra humana, gerando “mais-valia”. Nesse caso as grandes corporações estariam agindo contra seus próprios interesses ao trocar homens por máquinas? Isso porque nesse caso, robôs e computadores não gerariam “mais-valia”?
Está claro que Kurz apesar de concordar em que o cenário é completamente diferente, não consegue se “descolar” do conceito que parece ser parte do “fundamentalismo” econômico, tanto liberal quanto marxista: O de que só o trabalho humano é fonte de produção e lucro (ou mais valia). O fato é que nenhuma dessas teorias considerava a sério, a possibilidade de um “proletariado de silício”, capaz de concorrer com os trabalhadores humanos.
Isso explica que Kurz não consegue justificar os lucros das corporações em meio a uma onda irresistível de desemprego entre operários especializados, funcionários burocráticos, profissionais liberais, etc. Para ele tem de haver uma série de “bolhas financeiras”, onde se realiza uma acumulação “simulatória” do capital. Isso lembra um bocado a teoria dos epiciclos, que tentavam resolver as disparidades nas órbitas dos planetas, mantendo a teoria geocêntrica de Aristóteles.

Na prática, Kurz chega relativamente perto do que me parece ser a realidade. A “bolha” das empresas “pontocom”, por exemplo foi causada não por uma acumulação “simulatória” de capital, e sim pela expectativa de que a Internet poderia propiciar um imenso e rendoso comércio, sem os inconvenientes causados pela necessidade de trabalho humano.
A explosão da mesma “bolha”, ocorreu quando as projeções, com números “astrofísicos”, para dimensionar o crescimento desses mercados, esbarrou no verdadeiro limite de sua expansão: O poder aquisitivo declinante das classes médias no mundo todo.
Em seguida Kurz passa a definir o que vem a ser essa tal classe média, que segundo ele, “não é peixe nem carne”. Aqui ele recorre ao debate entre Eduard Bernestein e Karl Kautsky, ocorrido no início do século 20 sobre a “nova classe média”. Poderia citar também John Kenneth Galbraith e sua “sociedade afluente”, onde fica claro o porque da dificuldade de se definir as novas sociedades, onde ao contrário das do tempo de Marx, o que ele próprio chamava de “oficiais e suboficiais”, eram numericamente irrelevantes.
De qualquer forma a conclusão é mais ou menos a mesma, a classe média é formada por pessoas cujo “status social se baseia antes na formação do que na posse de capital ou de valores materiais” conforme Kurz cita Bárbara Ehrenreich. Podemos assim concluir que a classe média é formada por pessoas que detêm conhecimento, “capital humano” ou, prefiro a expressão: “capital na forma de informação”.
Kurtz ainda segue na direção errada quando associa o desemprego da classe média a crise dos estados nacionais. Ele afirma que “De repente, muitos domínios que antes eram considerados conquistas soberbas começaram a parecer luxo desnecessário e peso morto”, e que o declínio da classe média se deve ao “mote do estado enxuto”, com cortes de verbas públicas e a demolição do Estado social, ao qual estaria ligada.
Na realidade o desmanche do “welfare state” só começou muito depois que as políticas de racionalização da produção, todas baseadas nas novas tecnologias de informação, de telecomunicações e nos novos métodos gerenciais, foram adotadas na iniciativa privada.
A ascensão de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan, de fato criou nas grandes empresas o ambiente ideológico ideal para uma “liberação geral” das possibilidades apresentadas pelas novas tecnologias de substituição de mão-de-obra em massa, incluindo as funções típicas da classe média. Mas as burocracias estatais resistiram muito mais, e em muitos países ainda resistem, aos processos de modernização e racionalização.
Kurz também erra ao afirmar que “Hoje não se pode ignorar que a ascensão da nova classe média não tinha base capitalista autônoma, pelo contrário, ela dependia da redistribuição social da mais-valia oriunda dos setores industriais”.
Ele provavelmente chega a essa conclusão a partir das teorias da “terceira revolução industrial”. Assim o desemprego tecnológico na indústria obrigatoriamente se espalha pelo comércio e pelos serviços. Esse raciocínio não leva em conta que a atual revolução tecnológica não se restringe a industria. Afeta todos os setores ao mesmo tempo com intensidade mais ou menos uniforme.
A tecnologia de informação por exemplo, com seus computadores e redes de tele-processamento, afeta muito mais os setores de comércio e serviços do que a indústria em geral. O fato de considerarmos como setor de serviços, muito de que já foi a burocracia industrial e comercial, não muda esse fato.
Visto por esse ângulo, a decadência da classe média é conseqüência direta da desvalorização do “capital em forma de informação”, já que conhecimentos técnicos e científicos se tornaram disponíveis, por preços ínfimos, a partir do paradigma informacional. Em outras palavras, os robôs e os computadores na indústria, não concorrem com os “ajudantes gerais” e os demais trabalhadores sem qualificação e sim com o operário especializado, que detém conhecimentos específicos para executar seu trabalho.
Nos demais setores, os computadores conectados em rede não eliminam empregos entre recepcionistas, garçonetes, seguranças e manobristas. Eles concorrem com os gerentes, engenheiros, advogados, administradores e economistas. Pois podem disponibilizar informações fundamentais diretamente para os encarregados de executar as tarefas mais simples.
É esse extrato que perde a condição de classe média ao se tornar como Kurz define, “diaristas intelectuais”, “trabalhadores baratos” ou “empresários da miséria”. No desespero de conseguir sobreviver com seu “capital humano”, na verdade esses profissionais apenas o tornam cada vez mais sem valor.
Kurz acerta quando afirma que “De forma paradoxal, a ‘proletarização’ das camadas qualificadas está ligada a uma ‘desprolatarização’ da produção”. De fato assistimos ao mesmo tempo a conversão de médicos e terapeutas, advogados e cientistas antes as profissões liberais por excelência, em meros “operários do conhecimento”, enquanto a produção em vários setores, depende cada vez mais de “autônomos”, “microempresários”, “contratados por projeto”, etc.
O artigo termina de forma brilhante quando Kurz afirma que “Um Bill Gates é tão pequeno-burguês quanto um empresário da miséria, ambos têm a mesma atitude para com o mundo e utilizam as mesmas frases. Com essas frases sobre o mercado universal e a ‘autovalorização’ na ponta da língua, eles atravessam solenemente, juntos, o portão para a barbárie”.
http://lauromonteclaro.sites.uol.com.br/

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