É a primeira vez que vejo realmente um míssil nesta guerra. Voam demasiado rápido – ou a pessoa está demasiado ocupada a tentar fugir para olhar para eles – mas esta manhã Abed e eu vimos realmente um perfurar a fumaça acima de nós. «Habibi (meu amigo)», grita, e eu começo a gritar: «Dê a volta ao carro, dê a volta!», e afastámo‑nos pelas nossas vidas dos subúrbios do sul. Ao dar a volta na esquina há uma explosão devastadora e uma montanha de fumo cinzento desponta da rua que acabamos de deixar. O que aconteceu aos homens e mulheres que vimos correr pelas suas vidas do foguete israelita? Não sabemos. Nos ataques aéreos, tudo o que se vê são os poucos metros quadrados em nosso redor. Sai‑se e sobrevive‑se e isso é suficiente.
Chego a casa ao meu apartamento na Corniche e descubro que a electricidade está cortada. Em breve, sem dúvida, a água será cortada. Mas sento-me na minha varanda e penso que não estou atafulhado num sujo hotel de Kandahar ou Bassora, mas a viver na minha própria casa e a acordar cada manhã na minha própria cama. Os cortes de energia, o medo e a falta de gasolina, agora que Israel está a bombardear postos de gasolina, significam que desapareceram as filas de tráfego que rugem e buzinam perto de minha casa até às duas horas da manhã. Quando desperto de noite, ouço os pássaros, as ondas do Mar Mediterrâneo e o suave movimento das folhas das palmeiras.
Esta tarde fui comprar mantimentos. Já não há leite, mas há suficiente água, pão, queijo e peixe. Quando Abed estaciona para que eu saia do carro, o homem da 4x4 atrás de nós gruda a mão na buzina e, quando saio do carro de Abed, lança‑me as palavras «Kess uchtak». «Que se foda a tua irmã». É a primeira vez que sou amaldiçoado nesta guerra. Os libaneses habitualmente não insultam os estrangeiros. São pessoas corteses. Estendo a minha mão com a palma para baixo e reviro‑a com a palma para cima na forma que os libaneses usam para perguntar: “qual é o problema?”. Mas ele afasta‑se. Seja como for, não tenho irmã.
Segunda-feira, 17 de Julho.
O telefone ainda funciona e meu telemóvel canta como um passarinho. Muitas das chamadas são de amigos que querem saber se devem fugir de Beirute ou do Líbano, ou de libaneses que estão fora do Líbano e querem saber se devem regressar. Posso ouvir as bombas ribombando através da zona do Hezbolá nos subúrbios do sul, mas não posso responder a estas perguntas. Se aconselho amigos a ficarem, e eles são mortos, serei responsável. Se lhes disser para partirem e eles forem mortos nos seus automóveis, serei responsável. Se lhes digo para voltarem e eles morrerem, serei responsável. Assim, digo‑lhes o quão perigoso o Líbano se tornou e digo‑lhes que a decisão é deles. Mas sinto muita pena deles. Muitos foram refugiados quatro vezes em 24 anos. Hoje, telefonou‑me uma mulher libanesa com cidadania libanesa e iraniana, e um filho com passaporte estadunidense e outro só com passaporte libanês. A sua situação é desesperada. Sugiro que parta para as montanhas cristãs dos arredores de Faraya e trate de encontrar um chalé. Ali estará segura. Espero.
Regresso de Kfar Chim, onde um pedaço de um míssil israelita ou da asa de um avião acabou de decapitar parcialmente o condutor de um carro. Parecia tão trágico: a cabeça estendida para a frente no assento do condutor, simplesmente olhando todo o sangue que escorria pelo seu corpo no chão. Abed estava a ficar nervoso porque passei demasiado tempo no local. Os israelitas voltam sempre. «Habibi, demorou demais. Nunca mais fique tanto tempo!» Ele tem razão. Os israelitas voltaram e bombardearam o exército libanês.
Agora é Fidele, a minha empregada, quem está nervosa. Ela pensa que é demasiado perigoso ir do distrito cristão de Beirute até minha casa desde que os israelitas fizeram voar o topo do farol local, a 400 metros da minha porta. A Fidele é do Togo e faz umas pizzas fantásticas (recomendo a sua Pizza Togolesa a qualquer um), por isso enviei Abed para ir buscá-la e trazê‑la a minha casa por uma hora. Ela põe a minha roupa suja na máquina de lavar, e cinco minutos depois a luz vai abaixo e temos que tirá-la toda para fora e tentar outra vez amanhã.
Terça-feira, 18 de Julho.
Às 3:45 da manhã, desperto ao som do carril de um tanque e de um grande motor militar que avança na escuridão. Desço para descobrir que o exército libanês postou um veículo blindado de transporte de pessoal (APC) de fabrico norte-americano no parque de estacionamento em frente à minha casa. Foi colocado estrategicamente sob umas palmeiras, como se isso fosse impedir a aviação israelita de o avistar. A ideia não me agrada de todo, nem ao meu senhorio, Mustafá, que vive no andar de baixo. O exército libanês é agora um alvo ocasional dos israelitas e esse pequeno monstro tem todo o aspecto de uma palmeira disfarçada de tanque. Mais tarde, de manhã, telefono a um general do exército que é meu amigo e o sector de operações do exército telefona‑me de volta para verificar a localização. Passa uma hora antes de encontrem o parque de estacionamento nos seus mapas. Então recebo outra chamada para me dizer que o APC está próximo da minha casa para evitar que o Hezbolá use o parque de estacionamento para lançar outro míssil contra um navio israelita. A vazia Escola da Comunidade Americana está um pouco acima na minha rua. O exército libanês está a proteger‑nos.
O primeiro navio de guerra francês chega para recolher cidadãos franceses que fogem do Líbano. Passa com orgulho em frente à minha varanda. Muitos navios franceses portam o nome de grandes chefes militares, e esta fragata anti-submarino, em particular, chama-se Jean-de-Vienne. Recolho‑me para consultar a minha pequena biblioteca de livros de história da França. Resulta que Jean-de-Vienne era um almirante francês do século XIV que invadiu a povoação de Rye, em Sussex, e a ilha de Wight, e que morreu – oh, céus – combatendo nas Cruzadas contra os turcos muçulmanos. Um barco apropriado para iniciar a evacuação francesa do antigo porto Cruzado de Beirute.
Quarta-feira, 19 de Julho.
Agora que os israelitas estão a destruir blocos inteiros de apartamentos nos subúrbios xiitas do sul – há um permanente guarda‑chuva de fumo sobre a costa, que se estende adentrando‑se para longe no Mediterrâneo – dezenas de milhares de muçulmanos xiitas buscam santuário na parte ilesa de Beirute, nos parques e escolas e junto ao mar. Caminham para trás e para a frente à porta de minha casa, as mulheres em chadores, os seus maridos e irmãos barbudos olhando o mar em silêncio, as crianças brincando alegremente em redor das palmeiras. Falam‑me com raiva acerca de Israel, mas optam por não comentar o profundo cinismo do Hezbolá xiita, que provocou a brutalidade israelita ao capturar dois dos seus soldados. Tal como o Hezbolá, os israelitas estão agora a alvejar fábricas de alimentos, camiões e autocarros – sem mencionar 46 pontes – e os homens que recolhem o lixo estão agora relutantes em recolher os sacos de lixo todas as noites com medo de que os seus inocentes camiões do lixo sejam confundidos com um lançador de mísseis. Assim, não houve recolha do lixo esta manhã.
Os jornais locais de Beirute estão cheios de fotografias que jamais seriam vistas nas páginas de um jornal britânico: de bebés decapitados e mulheres sem pernas ou braços, ou idosos despedaçados. Os ataques aéreos israelitas são promíscuos e – quando se vêem os resultados como nós agora vemos com os nossos próprios olhos – obscenos. Sem dúvida, as vítimas igualmente inocentes do Hezbolá em Israel têm o mesmo aspecto, mas a matança no Líbano é de uma magnitude infinitamente mais terrível. Os libaneses olham para estas imagens e vêem‑nas na televisão – tal como o resto do mundo árabe – e pergunto‑me quantos deles são induzidos a pensar em outro 11/Set ou 7/Jul ou seja qual for a próxima data.
O que faz a guerra às pessoas? Mais tarde, estou a conversar com uma jornalista austríaca e pergunto‑lhe indolentemente a que se dedica o seu pai. «Ele bebe», diz. Porquê? «Porque o pai dele foi morto em Stalingrado».
Cruzo a rua para levar chá aos soldados que estão no APC no parque de estacionamento. São todos muçulmanos xiitas de Baalbek. Jamais abririam fogo contra uma tripulação com mísseis do Hezbolá. Depois volto para casa de outra visita aos subúrbios do sul e descubro que eles foram embora, juntamente com o seu monstro. A primeira boa notícia do dia.
O ministro das Finanças realiza hoje uma conferência de imprensa para falar dos milhares de milhões de dólares de danos causados ao Líbano pelos ataques aéreos israelitas. «Recebemos promessas de ajuda da Arábia Saudita, Kuwait e Qatar», anuncia com orgulho. «E da Síria e do Irão?», pergunta o homem da rádio irlandesa, nomeando os dois principais patrocinadores do Hezbolá no mundo árabe. «Nada», responde o ministro de forma cortante.
Quinta-feira, 20 de Julho.
Um mau dia para as mensagens. Telefonam‑me dos Estados Unidos para me dizerem que sou um anti-semita por criticar Israel. Aqui vamos de novo. Chamar de anti-semitas pessoas decentes logo acabará tornando o anti‑semitismo respeitável, respondo aos que telefonaram, e peço que digam à força aérea israelita que pare de matar civis. Depois um fax de um amigo judeu, da Califórnia, para me dizer que um tipo chamado Lee Kaplan – «um colunista do Noticiário Nacional de Israel», seja isso o que for – me condenou preto no branco por desenvolver uma «carreira de orador altamente lucrativa entre anti-semitas». Ao contrário de Benjamin Netanyahu e muitos outros que me vêm à mente, nunca cobro dinheiro para dar uma conferência – nunca – mas tachar de anti-semitas os milhares de norte-americanos comuns que me escutam é escandaloso.
Outro fax do editor da próxima edição do meu livro, desculpando‑se por me incomodar num «momento tão difícil (sic)», mas prometendo enviar-me provas de impressão pela DHL, que ainda opera em Beirute. Vou ao centro para confirmar isso com a DHL. Sim, diz‑me o homem, os pacotes com destino ao Líbano são enviados para a Jordânia e dali seguem de camião para Beirute via Damasco. Um camião, digo para mim mesmo. Céus.
Sexta-feira, 21 de Julho.
Os israelitas acabam de bombardear a prisão de Khiam. Um alvo interessante, porque esta foi a prisão na qual a antiga milícia aliada de Israel, o Exército do Sul do Líbano, costumava torturar os prisioneiros masculinos prendendo‑lhes eléctrodos nos pénis e as prisioneiras femininas electrocutando‑lhes os seios. Quando o exército de Israel se retirou, em 2000, o Hezbolá transformou a prisão num museu. Agora a evidência da crueldade do ESL foi apagada. Outro alvo “terrorista”.
A energia eléctrica volta a casa às 11 da noite e vejo o cônsul geral israelita, Arye Mekel, declarar à BBC que Israel está «a fazer um favor ao Líbano» ao bombardear o Hezbolá, insistindo que «a maioria dos libaneses aprecia o que estamos a fazer». Agora entendo. Os libaneses devem agradecer aos israelitas por destruírem as suas vidas e as suas infra-estruturas. Devem estar gratos por todos os ataques aéreos e crianças mortas. É como se o Hezbolá alegasse que os israelitas deveriam sentir‑se agradecidos em relação a eles por atacarem o sionismo. Até onde pode chegar o auto-engano?
Sábado, 22 de Julho.
Tomo café no jardim do meu senhorio, e ele sobe à sua figueira com uma velha escada de madeira e traz‑me um prato de fruta. «Todos os dias nos dá figos», diz‑me. «Sentamo‑nos à sua sombra à tarde e com a brisa do mar é como ar condicionado». Contemplo o seu pequeno paraíso de plantas de vazo e sorvo o meu café árabe de uma pequena caneca azul. Observamos os barcos de guerra deslizando para o porto de Beirute. «O que acontecerá quando todos os estrangeiros tiverem ido embora?», pergunta. Isso é o que todos nós perguntamos. Saberemos na próxima semana.
Domingo, 16 de Julho
Robert Fisk
http://infoalternativa.org/autores/fisk/fisk089.htm
Chego a casa ao meu apartamento na Corniche e descubro que a electricidade está cortada. Em breve, sem dúvida, a água será cortada. Mas sento-me na minha varanda e penso que não estou atafulhado num sujo hotel de Kandahar ou Bassora, mas a viver na minha própria casa e a acordar cada manhã na minha própria cama. Os cortes de energia, o medo e a falta de gasolina, agora que Israel está a bombardear postos de gasolina, significam que desapareceram as filas de tráfego que rugem e buzinam perto de minha casa até às duas horas da manhã. Quando desperto de noite, ouço os pássaros, as ondas do Mar Mediterrâneo e o suave movimento das folhas das palmeiras.
Esta tarde fui comprar mantimentos. Já não há leite, mas há suficiente água, pão, queijo e peixe. Quando Abed estaciona para que eu saia do carro, o homem da 4x4 atrás de nós gruda a mão na buzina e, quando saio do carro de Abed, lança‑me as palavras «Kess uchtak». «Que se foda a tua irmã». É a primeira vez que sou amaldiçoado nesta guerra. Os libaneses habitualmente não insultam os estrangeiros. São pessoas corteses. Estendo a minha mão com a palma para baixo e reviro‑a com a palma para cima na forma que os libaneses usam para perguntar: “qual é o problema?”. Mas ele afasta‑se. Seja como for, não tenho irmã.
Segunda-feira, 17 de Julho.
O telefone ainda funciona e meu telemóvel canta como um passarinho. Muitas das chamadas são de amigos que querem saber se devem fugir de Beirute ou do Líbano, ou de libaneses que estão fora do Líbano e querem saber se devem regressar. Posso ouvir as bombas ribombando através da zona do Hezbolá nos subúrbios do sul, mas não posso responder a estas perguntas. Se aconselho amigos a ficarem, e eles são mortos, serei responsável. Se lhes disser para partirem e eles forem mortos nos seus automóveis, serei responsável. Se lhes digo para voltarem e eles morrerem, serei responsável. Assim, digo‑lhes o quão perigoso o Líbano se tornou e digo‑lhes que a decisão é deles. Mas sinto muita pena deles. Muitos foram refugiados quatro vezes em 24 anos. Hoje, telefonou‑me uma mulher libanesa com cidadania libanesa e iraniana, e um filho com passaporte estadunidense e outro só com passaporte libanês. A sua situação é desesperada. Sugiro que parta para as montanhas cristãs dos arredores de Faraya e trate de encontrar um chalé. Ali estará segura. Espero.
Regresso de Kfar Chim, onde um pedaço de um míssil israelita ou da asa de um avião acabou de decapitar parcialmente o condutor de um carro. Parecia tão trágico: a cabeça estendida para a frente no assento do condutor, simplesmente olhando todo o sangue que escorria pelo seu corpo no chão. Abed estava a ficar nervoso porque passei demasiado tempo no local. Os israelitas voltam sempre. «Habibi, demorou demais. Nunca mais fique tanto tempo!» Ele tem razão. Os israelitas voltaram e bombardearam o exército libanês.
Agora é Fidele, a minha empregada, quem está nervosa. Ela pensa que é demasiado perigoso ir do distrito cristão de Beirute até minha casa desde que os israelitas fizeram voar o topo do farol local, a 400 metros da minha porta. A Fidele é do Togo e faz umas pizzas fantásticas (recomendo a sua Pizza Togolesa a qualquer um), por isso enviei Abed para ir buscá-la e trazê‑la a minha casa por uma hora. Ela põe a minha roupa suja na máquina de lavar, e cinco minutos depois a luz vai abaixo e temos que tirá-la toda para fora e tentar outra vez amanhã.
Terça-feira, 18 de Julho.
Às 3:45 da manhã, desperto ao som do carril de um tanque e de um grande motor militar que avança na escuridão. Desço para descobrir que o exército libanês postou um veículo blindado de transporte de pessoal (APC) de fabrico norte-americano no parque de estacionamento em frente à minha casa. Foi colocado estrategicamente sob umas palmeiras, como se isso fosse impedir a aviação israelita de o avistar. A ideia não me agrada de todo, nem ao meu senhorio, Mustafá, que vive no andar de baixo. O exército libanês é agora um alvo ocasional dos israelitas e esse pequeno monstro tem todo o aspecto de uma palmeira disfarçada de tanque. Mais tarde, de manhã, telefono a um general do exército que é meu amigo e o sector de operações do exército telefona‑me de volta para verificar a localização. Passa uma hora antes de encontrem o parque de estacionamento nos seus mapas. Então recebo outra chamada para me dizer que o APC está próximo da minha casa para evitar que o Hezbolá use o parque de estacionamento para lançar outro míssil contra um navio israelita. A vazia Escola da Comunidade Americana está um pouco acima na minha rua. O exército libanês está a proteger‑nos.
O primeiro navio de guerra francês chega para recolher cidadãos franceses que fogem do Líbano. Passa com orgulho em frente à minha varanda. Muitos navios franceses portam o nome de grandes chefes militares, e esta fragata anti-submarino, em particular, chama-se Jean-de-Vienne. Recolho‑me para consultar a minha pequena biblioteca de livros de história da França. Resulta que Jean-de-Vienne era um almirante francês do século XIV que invadiu a povoação de Rye, em Sussex, e a ilha de Wight, e que morreu – oh, céus – combatendo nas Cruzadas contra os turcos muçulmanos. Um barco apropriado para iniciar a evacuação francesa do antigo porto Cruzado de Beirute.
Quarta-feira, 19 de Julho.
Agora que os israelitas estão a destruir blocos inteiros de apartamentos nos subúrbios xiitas do sul – há um permanente guarda‑chuva de fumo sobre a costa, que se estende adentrando‑se para longe no Mediterrâneo – dezenas de milhares de muçulmanos xiitas buscam santuário na parte ilesa de Beirute, nos parques e escolas e junto ao mar. Caminham para trás e para a frente à porta de minha casa, as mulheres em chadores, os seus maridos e irmãos barbudos olhando o mar em silêncio, as crianças brincando alegremente em redor das palmeiras. Falam‑me com raiva acerca de Israel, mas optam por não comentar o profundo cinismo do Hezbolá xiita, que provocou a brutalidade israelita ao capturar dois dos seus soldados. Tal como o Hezbolá, os israelitas estão agora a alvejar fábricas de alimentos, camiões e autocarros – sem mencionar 46 pontes – e os homens que recolhem o lixo estão agora relutantes em recolher os sacos de lixo todas as noites com medo de que os seus inocentes camiões do lixo sejam confundidos com um lançador de mísseis. Assim, não houve recolha do lixo esta manhã.
Os jornais locais de Beirute estão cheios de fotografias que jamais seriam vistas nas páginas de um jornal britânico: de bebés decapitados e mulheres sem pernas ou braços, ou idosos despedaçados. Os ataques aéreos israelitas são promíscuos e – quando se vêem os resultados como nós agora vemos com os nossos próprios olhos – obscenos. Sem dúvida, as vítimas igualmente inocentes do Hezbolá em Israel têm o mesmo aspecto, mas a matança no Líbano é de uma magnitude infinitamente mais terrível. Os libaneses olham para estas imagens e vêem‑nas na televisão – tal como o resto do mundo árabe – e pergunto‑me quantos deles são induzidos a pensar em outro 11/Set ou 7/Jul ou seja qual for a próxima data.
O que faz a guerra às pessoas? Mais tarde, estou a conversar com uma jornalista austríaca e pergunto‑lhe indolentemente a que se dedica o seu pai. «Ele bebe», diz. Porquê? «Porque o pai dele foi morto em Stalingrado».
Cruzo a rua para levar chá aos soldados que estão no APC no parque de estacionamento. São todos muçulmanos xiitas de Baalbek. Jamais abririam fogo contra uma tripulação com mísseis do Hezbolá. Depois volto para casa de outra visita aos subúrbios do sul e descubro que eles foram embora, juntamente com o seu monstro. A primeira boa notícia do dia.
O ministro das Finanças realiza hoje uma conferência de imprensa para falar dos milhares de milhões de dólares de danos causados ao Líbano pelos ataques aéreos israelitas. «Recebemos promessas de ajuda da Arábia Saudita, Kuwait e Qatar», anuncia com orgulho. «E da Síria e do Irão?», pergunta o homem da rádio irlandesa, nomeando os dois principais patrocinadores do Hezbolá no mundo árabe. «Nada», responde o ministro de forma cortante.
Quinta-feira, 20 de Julho.
Um mau dia para as mensagens. Telefonam‑me dos Estados Unidos para me dizerem que sou um anti-semita por criticar Israel. Aqui vamos de novo. Chamar de anti-semitas pessoas decentes logo acabará tornando o anti‑semitismo respeitável, respondo aos que telefonaram, e peço que digam à força aérea israelita que pare de matar civis. Depois um fax de um amigo judeu, da Califórnia, para me dizer que um tipo chamado Lee Kaplan – «um colunista do Noticiário Nacional de Israel», seja isso o que for – me condenou preto no branco por desenvolver uma «carreira de orador altamente lucrativa entre anti-semitas». Ao contrário de Benjamin Netanyahu e muitos outros que me vêm à mente, nunca cobro dinheiro para dar uma conferência – nunca – mas tachar de anti-semitas os milhares de norte-americanos comuns que me escutam é escandaloso.
Outro fax do editor da próxima edição do meu livro, desculpando‑se por me incomodar num «momento tão difícil (sic)», mas prometendo enviar-me provas de impressão pela DHL, que ainda opera em Beirute. Vou ao centro para confirmar isso com a DHL. Sim, diz‑me o homem, os pacotes com destino ao Líbano são enviados para a Jordânia e dali seguem de camião para Beirute via Damasco. Um camião, digo para mim mesmo. Céus.
Sexta-feira, 21 de Julho.
Os israelitas acabam de bombardear a prisão de Khiam. Um alvo interessante, porque esta foi a prisão na qual a antiga milícia aliada de Israel, o Exército do Sul do Líbano, costumava torturar os prisioneiros masculinos prendendo‑lhes eléctrodos nos pénis e as prisioneiras femininas electrocutando‑lhes os seios. Quando o exército de Israel se retirou, em 2000, o Hezbolá transformou a prisão num museu. Agora a evidência da crueldade do ESL foi apagada. Outro alvo “terrorista”.
A energia eléctrica volta a casa às 11 da noite e vejo o cônsul geral israelita, Arye Mekel, declarar à BBC que Israel está «a fazer um favor ao Líbano» ao bombardear o Hezbolá, insistindo que «a maioria dos libaneses aprecia o que estamos a fazer». Agora entendo. Os libaneses devem agradecer aos israelitas por destruírem as suas vidas e as suas infra-estruturas. Devem estar gratos por todos os ataques aéreos e crianças mortas. É como se o Hezbolá alegasse que os israelitas deveriam sentir‑se agradecidos em relação a eles por atacarem o sionismo. Até onde pode chegar o auto-engano?
Sábado, 22 de Julho.
Tomo café no jardim do meu senhorio, e ele sobe à sua figueira com uma velha escada de madeira e traz‑me um prato de fruta. «Todos os dias nos dá figos», diz‑me. «Sentamo‑nos à sua sombra à tarde e com a brisa do mar é como ar condicionado». Contemplo o seu pequeno paraíso de plantas de vazo e sorvo o meu café árabe de uma pequena caneca azul. Observamos os barcos de guerra deslizando para o porto de Beirute. «O que acontecerá quando todos os estrangeiros tiverem ido embora?», pergunta. Isso é o que todos nós perguntamos. Saberemos na próxima semana.
Domingo, 16 de Julho
Robert Fisk
http://infoalternativa.org/autores/fisk/fisk089.htm
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