sexta-feira, setembro 01, 2006

Da mania à depressão

Trinta e três dias de guerra. A mais longa das nossas guerras desde 1949.
Do lado israelita: 154 mortos – 117 deles soldados. 3970 rockets disparados contra nós, 37 civis mortos, mais de 422 civis feridos.
Do lado libanês: cerca de mil mortos civis, milhares de feridos. Um número desconhecido de combatentes do Hezbollah mortos ou feridos.
Mais de um milhão de refugiados dos dois lados.
E o que foi conseguido a este terrível preço?
«Sombrio, humilde, abatido», eis como o jornalista Yossef Werter descreveu Ehud Olmert, poucas horas depois de o cessar-fogo ter entrado em vigor.
Olmert? Humilde? É este o mesmo Olmert que conhecemos? O mesmo Olmert que bateu na mesa e gritou: «Basta!» Que disse: «Depois da guerra, a situação será completamente diferente de antes!» Que prometeu um “Novo Médio Oriente” como resultado da guerra?
Os resultados da guerra são óbvios:
– Os prisioneiros, que serviram de casus belli (ou pretexto) para a guerra, não foram libertados. Eles só vão voltar como resultado de uma troca de prisioneiros, exactamente como Hassan Nasrallah propôs antes da guerra.
– O Hezbollah manteve-se como era. Não foi destruído, nem desarmado, nem mesmo afastado de onde estava. Os seus combatentes deram provas na batalha e até conquistaram cumprimentos dos soldados israelitas. A sua estrutura de comando e comunicações continuou a funcionar até o fim. A sua estação de TV continua a emitir.
– Hassan Nasrallah está vivo e recomenda-se. As persistentes tentativas de matá-lo fracassaram. O seu prestígio está nos píncaros. Em todo o mundo árabe, de Marrocos ao Iraque, compõem-se músicas em sua honra e o seu retrato ornamenta as paredes.
– O exército libanês será deslocado para a fronteira, ao lado de uma grande força internacional. Esta é a única mudança material que foi conseguida.
Mas não vão substituir o Hezbollah. O Hezbollah vai continuar na área, em cada aldeia e cidade. O exército israelita não conseguiu expulsá-lo de uma única aldeia. Era simplesmente impossível, sem remover permanentemente a população à qual o Hezbollah pertence.
O exército libanês e a força internacional não podem e não vão confrontar o Hezbollah. A sua própria presença lá depende do consentimento do Hezbollah. Na prática, vai acontecer uma espécie de coexistência das três forças, cada qual sabendo que tem de chegar a um acordo com as outras duas.
Talvez a força internacional consiga evitar incursões do Hezbollah, como a que precedeu esta guerra. Mas também vai ter de evitar acções israelitas, tais como os voos de reconhecimento da nossa força aérea sobre o Líbano. É por isso que o exército israelita no início se opôs tão energicamente à introdução desta força.
Em Israel, existe agora uma atmosfera geral de desilusão e abatimento. Da mania à depressão. Não é só que os políticos e os generais estejam a disparar acusações uns contra os outros, como previmos, mas o público em geral está a dar voz a críticas feitas de todos os ângulos possíveis. Os soldados criticam a conduta da guerra, os reservistas insurgem-se em relação ao caos e ao falhanço do abastecimento.
Em todos os partidos, há novos agrupamentos de oposição e ameaças de cisões. No Kadima. No Partido Trabalhista. Parece que também no Meretz há muita fermentação, porque muitos dos seus líderes apoiaram o dragão da guerra quase até ao último momento, quando apanharam a sua cauda e a trespassaram com a sua pequena lança.

À cabeça dos críticos marcham – surpresa, surpresa – os média. A horda completa de entrevistadores e comentadores, correspondentes e presstitutes [1], que (com muitas poucas excepções) se entusiasmaram com guerra, que enganaram, iludiram, falsificaram, ignoraram, ludibriaram e mentiram pela pátria, que sufocaram todas as críticas e acusaram de traição todos os que se opuseram à guerra - agora correm na dianteira da multidão de linchadores. Que previsível, que feio. Subitamente lembram-se do que temos vindo a dizer desde o início da guerra.
Esta fase é simbolizada por Dan Halutz, o Chefe do Estado-Maior. Ainda ontem era o herói das massas, era proibido pronunciar uma palavra contra ele. Agora está a ser descrito como um aproveitador da guerra. Um momento antes de enviar os seus soldados para a batalha, ele arranjou tempo para vender as suas acções, na expectativa de uma queda da bolsa. (Esperemos que um momento antes do fim tenha arranjado tempo para comprá­‑las outra vez).
A vitória, como se sabe muito bem, tem muitos pais, e a derrota na guerra é órfã.
Do dilúvio de acusações e de queixas, destaca-se uma frase, uma frase que deve provocar um arrepio na espinha de qualquer pessoa com boa memória: «os políticos não deixaram o exército vencer».
Tal como escrevi há duas semanas, vemos perante os nossos próprios olhos a ressurreição do velho grito “eles apunhalaram o exército pelas costas!”
Funciona assim: No máximo dois dias antes do fim, começou a ofensiva terrestre. Graças aos nossos heróicos soldados, aos homens da reserva, foi um sucesso arrasador. E então, quando estávamos na eminência de uma grande vitória, o cessar-fogo entrou em vigor.
Não há uma única palavra de verdade nisto. Esta operação, que foi planeada e para a qual o exército treinou durante anos, não foi desencadeada antes porque era claro que não traria quaisquer ganhos significativos, mas seria custosa em vidas. O exército conseguiria, realmente, ocupar amplas áreas, mas sem ser capaz de desalojar delas os combatentes do Hezbollah.
A cidade de Bint Jbeil, por exemplo, mesmo junto à fronteira, foi tomada pelo exército três vezes, e os combatentes do Hezbollah permaneceram lá até o fim. Se tivéssemos ocupado 20 cidades e aldeias como esta, os soldados e os tanques estariam expostos em vinte lugares aos ataques mortais dos guerrilheiros com suas eficazes armas anti­‑tanque.
Se é assim, porque é que se decidiu, no último momento, desencadear esta operação – bem depois de a ONU ter apelado ao fim das hostilidades? A horrível resposta: era um cínico – para não dizer vil – exercício do fracassado trio. Olmert, Peretz e Halutz queriam criar uma “imagem de vitória”, como foi dito abertamente nos média. Neste altar, as vidas de 33 soldados (incluindo uma mulher jovem) foram sacrificadas.
O objectivo era fotografar os vitoriosos soldados na margem do Litani. A operação só podia durar 48 horas, até o cessar-fogo entrar em vigor. Apesar do facto de o exército ter usado helicópteros para levar as tropas, o objectivo não foi atingido. Em nenhum momento o exército chegou ao Litani.
Só para comparar: na primeira guerra do Líbano, a de Sharon em 1982, o exército atravessou o Litani nas primeiras horas. (O Litani, por falar nisso, já não é um verdadeiro rio, mas apenas um riacho pouco profundo. A maior parte das suas águas são drenadas longe dali, no norte. O seu último trecho fica a cerca de 25 quilómetros de distância da fronteira; perto de Metulla a distância é apenas de quatro quilómetros.)
Desta vez, quando o cessar-fogo entrou em vigor, todas as unidades tinham chegado a aldeias a caminho do rio. Lá ficaram encravadas, cercadas por combatentes do Hezbollah, sem linhas de abastecimento seguras. Daquele momento em diante, o exército só tinha um objectivo: tirá-los de lá o mais rápido possível, independentemente de quem fosse tomar o seu lugar.
Se for formada uma comissão de inquérito – como deve ser – e investigar todas as movimentações desta guerra, começando pela forma como foi tomada a decisão de começá-la, também terá de investigar a decisão de dar início a esta última operação. A morte de 33 soldados (incluindo o filho do escritor David Grossman, que tinha apoiado a guerra) e a dor que isto causou às famílias exige-o!
Mas estes factos ainda não são claros para o público em geral. A lavagem cerebral feita pelos comentadores militares e pelos ex­‑generais, que dominaram os média nessa altura, tornou a louca – quase diria “criminosa” – operação numa vibrante parada da vitória. A decisão de detê-la, tomada pela liderança política, está agora a ser vista por muitos como um acto de políticos derrotistas, fracos, corruptos e mesmo traidores.
E é esse exactamente o novo lema da direita fascista que agora levanta a sua feia cabeça.
Depois da I Guerra Mundial, em circunstâncias semelhantes, a lenda da “facada nas costas do exército vitorioso” cresceu. Adolf Hitler usou-a para ascender ao poder – e para a II Guerra Mundial.
Agora, ainda antes de o último soldado caído ter sido enterrado, os generais incompetentes estão a começar a falar desavergonhadamente de “outro round”, da próxima guerra que vai certamente vir “num mês ou num ano”, se Deus quiser. Afinal, não podemos acabar o assunto assim, em fracasso. Onde está o nosso orgulho?
O público israelita está hoje em estado de choque e de desorientação. Lançam-se acusações – justificadas ou não – em todas as direcções, e não se pode prever como as coisas evoluirão.
Talvez, no fim, acabe por vencer a lógica. A lógica diz: o que ficou completamente demonstrado é que não há solução militar. Isso é verdade no Norte. Também é verdade no Sul, onde nos confrontamos com um povo inteiro que já nada tem a perder. O sucesso da guerrilha libanesa vai encorajar a guerrilha palestiniana.
Para que a lógica vença, temos de ser honestos connosco mesmos: apontar os fracassos, investigar as suas causas profundas, tirar as conclusões apropriadas.
Alguns querem evitar isso a qualquer preço. O presidente Bush declara de forma vociferante que nós vencemos a guerra. Uma gloriosa vitória sobre os Maus. Como a sua própria vitória no Iraque.
Quando uma equipa de futebol consegue escolher o árbitro, não surpreende que seja declarada vencedora.

[1] Expressão intraduzível que combina press (imprensa) e prostitutes (prostitutas) (NT).
Uri Avnery
http://infoalternativa.org/autores/avnery/avnery062.htm

Sem comentários: