quinta-feira, setembro 28, 2006

O déspota uzbeque compra para si uma respeitabilidade

Os prisioneiros políticos esquecidos pela NATO


Uma vaga de atentados fez uma quarentena de mortos numa semana, em Taschkent e em Bukhara. Mulheres camicases tentaram vingar os seus maridos torturados nas prisões de Islam Karimov. Esquecendo subitamente as suas denúncias da ditadura, a imprensa e os líderes ocidentais cessaram o seu apoio a esta revolta para [passarem a] denunciar o «terrorismo internacional» e proclamar a sua confiança no déspota. Esta mudança dá seguimento ao acordo Uzbequistão-NATO negociado por Donald Rumsfeld em Taschkent, a 24 de Fevereiro passado, para facilitar projecções de força no Afeganistão e para os campos petrolíferos caspianos.
Tudo começou no Domingo 28 de Março de 2004, quando uma explosão acidental destruiu um ateliê em Bukhara, no sudoeste do Uzbequistão, matando dez pessoas. De acordo com as autoridades, as vítimas fabricavam bombas artesanais que fizeram explodir acidentalmente causando a sua própria morte. No dia seguinte, duas mulheres camicases fizeram explodir as suas cargas entre polícias, matando quatro bem como uma criança. Seguidamente, as Forças Especiais uzbeques deram assalto a um edifício onde se tinham entrincheirado indivíduos que acabavam de atacar uma barragem de polícias. Novos atentados­ suicidas foram relatados nas jornadas de terça-feira e de quarta-feira levando o balanço destas acções a mais de quarenta mortes. Quinta-feira, enquanto uma outra mulher fazia explodir uma bomba, fazendo uma vítima e deixando­‑a [a ela própria] gravemente ferida, o chefe dos serviços anti-terroristas, Ilya Pyagay, acusava formalmente a Al Qaeda de ser responsável por esta vaga de atentados dirigidos contra civis. Muito poucas dúvidas subsistem no entanto sobre o facto de que eram dirigidos exclusivamente contra as forças da ordem e geralmente aprovados por uma população radicalizada pela pobreza, pela repressão e pela corrupção das elites.
O Uzbequistão, o país mais povoado da Ásia central com quase 26 milhões de habitantes, ficou independente em 1991 após o desmoronamento da URSS. Reinando com uma mão de ferro sobre o país desde então, o seu presidente, Islam Karimov, foi reeleito segunda vez em Janeiro de 2000 com 91,9% dos votos. A OSCE e a União Europeia criticaram o desenrolar destas eleições tanto quanto o regime Taschkent tem a reputação de ser um dos mais autoritários do mundo. Apesar dos importantes recursos do país (nomeadamente, jazidas de ouro, de carvão e de gás natural) e da produção de algodão (do qual o Uzbequistão é o segundo exportador mundial), o açambarcamento dos sectores produtores de riquezas pelos grupos no poder e pela corrupção generalizada trouxe o rendimento médio para um dos mais baixos níveis da região, ou seja, cerca de 40 dólares por mês. O PIB per capita caiu mais de 40% desde 1998 [1]. A população, alfabetizada a uma taxa de mais de 99%, é 88% muçulmana, com igualmente uma fraca proporção de cristãos ortodoxos.
Situado no meio das Repúblicas da Ásia central, região ela própria situada no centro da zona geográfica habitualmente chamada Eurásia, que se estende do Leste da Polónia ao Pacífico e englobando a Rússia e a China, o Uzbequistão é o exemplo típico do Estado altamente estratégico. Zbigniew Brzezinski, no seu livro de referência O grande tabuleiro de xadrez, designa-o como a chave da dominação da Eurásia. Não é pois surpreendente que George W. Bush, num discurso perante o Congresso alguns dias após os ataques do 11 de Setembro de 2001, tenha designado este país como o primeiro lugar onde serão mobilizadas as tropas estadunidenses. A estreita cooperação de Islam Karimov, que emprestou instalações militares e autorizou a presença de forças estadunidenses no seu território, foi recompensada pela discrição de Washington a respeito dos abusos do seu regime. Além disso, em 2003, um aumento de 258% dos empréstimos destinados à compra de equipamentos militares estadunidenses no âmbito do programa Foreign Military Financing elevou a soma total da ajuda atribuída a 25 milhões de dólares. Este programa inclui o treino das Forças Especiais uzbeques para as operações anti­­‑insurreccionais [2]. Exceptuando gestos meramente simbólicos como a libertação de um prisioneiro de opinião aquando da visita de Donald Rumsfeld à região [3], a situação não parece melhorar no plano dos direitos humanos e isso provavelmente durará enquanto Washington apoiar a ditadura de Karimov.
Em Novembro de 2002, o relator das Nações Unidas para a tortura, Theo Van Boven, detalhava num relatório o recurso «sistemático» à tortura pelos serviços de ordem e nas prisões. A ONG Human Rights Watch acaba por seu lado de produzir um relatório de 320 páginas [4] que também dá testemunho de detenções abusivas, de torturas sistemáticas, de humilhações e do aprisionamento de 7.000 pessoas em condições inumanas. A organização coloca o regime de Taschkent entre os mais repressivos do planeta. Os muçulmanos independentes, que não rezam nem pregam nas mesquitas controladas pelo Estado, são particularmente oprimidos.
É de resto uma organização muçulmana independente, Hizb ut-Tahrir (“Partido da Libertação”), proibida no Uzbequistão e da qual os membros enchem as prisões, que é suspeitada pelo governo uzbeque de estar na origem dos atentados destes últimos dias. Este movimento, fundado em 1952 e baseado em Londres, proclama­‑se não­‑violento e nada prova a sua implicação em atentados no passado. Quer instaurar o Califado na região exclusivamente por meio da propaganda, de manifestações e da arregimentação de membros do governo para sua causa. É igualmente activo no Tadjiquistão, país vizinho do Uzbequistão. O seu porta­‑voz, Imran Wahid, nega qualquer implicação e chega até a acusar Karimov de ter organizado ele mesmo estes atentados para ganhar a adesão do Ocidente a uma repressão disfarçada em luta contra o terrorismo [5].
Outro movimento sobre o qual se levantam as suspeitas, o Movimento Islâmico do Uzbequistão ou MIU, que preconiza igualmente a instauração de um Califado, mas pela violência, foi criado no final dos anos 80 no vale de Fergana e imediatamente proibido. Participou na guerra civil no Tadjiquistão nos anos 90 antes de se reorganizar no Afeganistão ao lado do regime talibã. Encontra-se pois actualmente muito enfraquecido.
O regime de Karimov tem por hábito qualificar de «wahhabitas» todos os muçulmanos que praticam a sua religião fora do quadro estabelecido pelo Estado, para os estigmatizar como fundamentalistas, apesar do facto de não praticarem o wahhabismo e de não terem nenhuma relação com a Arábia Saudita. São detidos, sumariamente julgados e aprisionados por «subversão», «transgressão da ordem constitucional» ou «actividades anti­‑governamentais».
É a primeira vez que atentados suicidas são perpetrados na região, ainda mais por mulheres. Em 1999, a dinamitagem de edifícios governamentais em Taschkent foi atribuída ao MIU, sem que nenhum elemento de prova fosse avançado. Foi seguida por uma vaga de repressão nos meios muçulmanos independentes. Assinalemos igualmente que os atentados são dirigidos essencialmente contra as forças da ordem, entendidas a justo título pela população como responsáveis pelo terror que faz reinar o regime de Karimov. Assim, os três atentados suicidas da semana passada tiveram lugar em ou na proximidade de mercados onde polícias corruptos assediam constantemente os comerciantes para os extorquir. O desespero dos comerciantes é tanto maior quanto uma lei acaba de ser promulgada, proibindo a venda de produtos não alimentares nos mercados [6].

Numa intervenção emitida por televisão, a 29 de Março, Islam Karimov apontou implicitamente o dedo à Al Qaeda imputando­ a responsabilidade das violências a islamitas radicais «coordenados a partir do estrangeiro». Acrescentou que estes atentados estavam em preparação há oito meses, o que está no entanto em aparente contradição com a logística rudimentar e o alvo destas acções. Apesar da censura da imprensa e de múltiplas contradições e zonas de sombra nos relatos das operações destes últimos dias, a imprensa ocidental apressou-se a retransmitir a tese segundo a qual os atentados foram fomentados a partir do estrangeiro por grupos próximos da Al Qaeda. Guardando embora as suas distâncias em relação às declarações do governo uzbeque, evita mencionar que as vítimas eram na maior parte polícias, o que tem por efeito vincular, no espírito do leitor, estes atentados aos de Madrid em Março e de Nova Iorque em 2001 (Le Monde de 31 de Março). Encontra-se assim um pouco por todo o lado o ponto de vista conspirativo de um analista da Fundação Carnegie de Moscovo, Alexeï Malachenko, segundo o qual os atentados «mostram a Karimov que não controla inteiramente a situação. Eles estão ligados a uma rede terrorista islâmica mais vasta, ao que aconteceu em Madrid, ao que se passa no Iraque e no Afeganistão. Jogam em dois planos e é muito perigoso» (Le Figaro de 31 de Março). A frase tem tanto mais impacto quanto conclui o artigo. Le Progrès de Lyon, por seu lado, intitula sem rodeios “Le MOI lié avec Ben Laden” [“O MIU ligado a Bin Laden”] na sua edição de 31 de Março.
As contradições da imprensa ocidental, que um dia tomam a defesa do povo uzbeque oprimido pelo regime de Karimov para no dia seguinte qualificar qualquer resistência de «terrorismo islamita», reflectem a mudança de posição de Washington. Desde a chegada da administração Bush à Casa Branca, o vice-presidente Dick Cheney negociara a instalação de uma base militar dos EUA no Uzbequistão. No dia 5 de Outubro de 2001, o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, deslocara­‑se a Taschkent para negociar o uso desta base na guerra do Afeganistão, que se iniciará dois dias mais tarde. Karimov era um aliado seguro contra os talibãs que sempre tinha querido combater. Facilitou a coordenação com o general uzbeque­ afegão Dostun e deixou o Pentágono fazer uso total da base que ele tinha concedido. Em Março de 2002, os Estados Unidos e o Uzbequistão assinaram uma Declaração de parceria estratégica supostamente para incentivar reformas económicas e políticas, mas realmente exclusivamente destinada a adaptar os armamentos uzbeques às normas da NATO. No dia 24 de Fevereiro de 2004, ou seja, um mês antes da vaga de atentados, Donald Rumsfeld deslocou­‑se de novo a Taschkent para finalizar a entrada do Uzbequistão na Parceria para a Paz da NATO. Tratava­‑se de garantir a interoperacionalidade das forças, de construir uma base permanente utilizável para qualquer mobilização de logística na região para projectar comandos tanto no teatro de operações afegão (onde a NATO já está instalada) como no caspiano. Uma vez este passo dado, Karimov passou subitamente do estatuto de déspota infrequentável ao de defensor da civilização perante o terrorismo islâmico.
Assim, a 15 de Fevereiro de 2004, o Comissário Europeu das Relações Externas, Chris Patten, declarava «A tortura e outras violações dos direitos do Homem, as restrições que reduzem as liberdades fundamentais não ajudam e não ajudarão a erradicar o terrorismo. (...) Elas são, pelo contrário, os factores que alimentam o ódio e a amargura que fazem a cama do terrorismo». Mas a 30 de Março, uma vez negociado o acordo NATO, afirmava sem temor de contradizer-se: «Não tenho nenhuma dúvida sobre o facto de estes acontecimentos [os atentados e a sua repressão] só reforçarão o papel activo do Uzbequistão no combate conduzido pela comunidade internacional contra o terrorismo». Reunido a 2 de Abril por ocasião da adesão de sete novos Estados, o Conselho do Atlântico-Norte publicou uma Declaração sobre o terrorismo [7] na qual assimila os atentados cometidos em Nova Iorque com os de Istambul, do Iraque... e do Uzbequistão.
A santificação de Karimov permite às agências de imprensa ocidentais reescrever a história e enganar os seus actores: doravante mulheres que se suicidam para vingar os seus maridos torturados nas prisões do regime tornam-se «terroristas internacionais», enquanto os polícias que elas atacam tornam-se inocentes vítimas civis. Assim, comentando os atentados, o secretário geral da ONU, Kofi Annan, exprimia a sua consternação e lamentava as vítimas «na maior parte civis».

[1] International Crisis Group, Central Asia Report N.° 76, Março de 2004.
[2] Amnistia Internacional, Maio de 2003.
[3] Associated Press, 24 de Fevereiro de 2003.
[4] Resumo em francês disponível no servidor de Human Rights Watch: Os inimigos imaginários do Estado: perseguições religiosas no Uzbequistão (pdf), Março de 2004.
[5] Le Temps, n.° 1907, 31 de Março de 2004.
[6] Pacific News Service, 30 de Março de 2004.
[7] http://www.voltairenet.org/article13184.html

Arthur Lepic
http://www.infoalternativa.org/asia/uzbequistao001.htm

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