quarta-feira, setembro 13, 2006

O livro proibido: uma obra profética e surpreendente

[Naguib Mahfuz, o único Prémio Nobel da Literatura egípcio e da língua árabe, morreu hoje aos 94 anos num hospital do Cairo. Começara a publicar com 17 anos, mas ficou famoso no Egipto e todo o mundo árabe com a publicação da Trilogia do Cairo, uma obra em três volumes que descreve a trajectória política, as esperanças e as desilusões de uma família cairota em três gerações, de 1917 a 1944. Mas, apesar da sua importância, teve um livro proibido no próprio país, Os Filhos do Meu Bairro. Foi considerado o percursor do moderno romance egípcio, e um dos mais inovadores e prolixos escritores do Egipto. Alguns dos seus livros, como o Beco dos Milagres, foram levados ao cinema. Conquistou o Prémio Nobel da Literatura em 1988.]

Em Outubro de 1994, Naguib Mahfuz foi esfaqueado em plena luz do dia quando saía de um carro em direcção ao seu café favorito do centro do Cairo. O assassino, membro da Irmandade Muçulmana, queria matᬠlo: a lâmina do punhal que usou para atacar o velho escritor foi directa ao pescoço. Uma quantidade enorme de coincidências, porém, salvou-lhe a vida: instintivamente, ele aparou parcialmente o golpe com a mão. O condutor do carro, seu amigo, era médico e imediatamente fez um tampão no pescoço com um casaco que impediu que o escritor se esvaísse em sangue. E o atentado ocorreu quase na porta de um hospital.
O grande escritor sobreviveu, mas a sua vida mudou completamente. O golpe na mão impediu-o de voltar a escrever, e daí para a frente, para continuar a exercer o seu ofício, teve de se habituar a ditar os seus escritos.
Mas o que explica a sanha assassina contra um escritor que, além de ser uma das grandes glórias do Egipto, era amado por milhares de leitores árabes em todo o mundo e, para mais, é um bom muçulmano? O pecado, para os fanáticos, foi ter escrito Os Filhos do Meu Bairro (infelizmente não traduzido em português; na tradução francesa, Les Fils de la Médina, na tradução inglesa, Children of Gebelawi). O mais incrível é que a obra saíra em folhetim no mais prestigiado diário em língua árabe do mundo, o Al Ahram, em... 1959. Diante dos protestos pelo seu carácter “herético”, o texto foi publicado no jornal até ao fim, mas nunca saiu em livro no Egipto. Uma editora libanesa publicou-o só em 1967. Muitos dos críticos literários egípcios consideram esta a obra máxima de Mahfuz, superior até à famosíssima Trilogia do Cairo.
O livro fora já esquecido, quando ocorreu a famosa fatwa das autoridades religiosas iranianas contra os Versículos Satânicos, de Salman Rushdie. Mahfuz saiu em defesa da liberdade de expressão do escritor indiano, o que atraiu para si também as atenções. Afinal, ele era aquele escritor que também tinha cometido uma enorme heresia. E merecia ser punido. O governo egípcio ofereceu protecção ao escritor, mas este não a aceitou. E sobreviveu, o que mostra que Alá tem mais discernimento que aqueles que supostamente seguem os seus ensinamentos, ou pelo menos aquilo que eles interpretam como seus ensinamentos.
Os Filhos do Meu Bairro é uma obra surpreendente. Como alguns dos mais importantes escritos de Mahfuz, passa¬ se num bairro do Cairo antigo. O que o torna verdadeiramente especial é que, à medida que o vamos lendo, compreendemos que estamos diante de uma grande metáfora: a história bíblica está toda lá, transportada para este cenário de um bairro pobre do Cairo. Deus é Gabalawi, o fundador do bairro, homem severo e caprichoso, capaz de aterrorizar os mais simples com as suas súbitas fúrias e que um dia, sem motivo aparente e sem explicações, decide nomear o filho mais novo, Adão, administrador da fundação. O mais velho, Idris, revolta-se e é expulso da Grande Casa e amaldiçoado pelo pai. Eis o demónio que nasce.
Adão demonstra-se um excelente administrador, mas, um dia, instigado pela mulher, Oumayma, entra furtivamente no quarto do pai para tentar ler um documento fundador. Como era de esperar, é surpreendido e o casal é expulso, por sua vez do Paraíso, isto é, da Casa Grande.
Adão tem dois filhos, Hammam e Qadri e – já adivinharam, não? – Qadri mata Hammam. Depois da morte natural de Hammam e Eva, perdão, Oumayma, Qadri casa com Hind, filha de Idris, e é deles que descende toda a população do bairro.
Seria uma grande maldade contar toda a história deste romance fascinante, retirando ao leitor o prazer de folhear as suas páginas. Apenas deixamos alguns traços: os personagens principais que se seguem são Gabal, um grande líder militar que organiza a primeira revolta contra o administrador do bairro, mas que depois apenas exerce o poder para o seu clã, o “povo escolhido”, e não para todos os habitantes do bairro (Moisés); Rifaa, um verdadeiro hippie que prega o amor e a não-violência, que casa com a prostituta Yasmina para a salvar da fúria do povo mas que não consuma o casamento, e que morre sob os varapaus dos guardas (Jesus); e Qasim, um hábil líder político e militar que cria um poderoso partido/exército, treinado no deserto dos arredores e que finalmente conquista pela força o bairro (Maomé). Este é, obviamente, o favorito de Mahfuz, que o descreve como aquele que «combinava a força e a doçura, a sabedoria e a simplicidade, a majestade e a afabilidade, o poder e a modéstia, a habilidade e a honestidade mais escrupulosa».
Mas nenhum dos grandes profetas consegue trazer de forma duradoura a justiça ao bairro, e Mahfuz tinha uma partida reservada ao leitor: cria um último personagem, Arafa, o mágico e alquimista, que consegue, ele também, tomar o poder. Mas de pouco lhe serve, e o seu mister, o do conhecimento, também não é eficaz para acabar com as injustiças do bairro.
Em todo o romance transparece o clima de ebulição cultural que acompanhou os anos do nasserismo e, aliás, sente¬ se que só nessa época poderia nascer uma obra de tal calibre. No ano em que começou a ser publicado Os Filhos do Meu Bairro, por exemplo, 60 filmes de longa metragem foram produzidos num só ano no Cairo. Nesse mesmo ano, havia no país 850 mil aparelhos de rádio e a emissora Voz dos Árabes emitia para os vizinhos, levando a palavra de Nasser a todo o povo. Os jornais vendiam-se às centenas de milhares e a mais famosa cantora egípcia de sempre, Um Kulthum, fazia sucesso em toda a nação árabe.

Hoje, mais de 40 anos depois, o Egipto marca passo, apesar das capacidades e do carisma de Nasser. Também neste aspecto a obra de Mahfuz é profética.
Luis Leiria

http://infoalternativa.org/cultura/livro014.htm

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