sábado, setembro 02, 2006

O 'renascimento' neoliberal da teoria do desenvolvimento

A teoria do desenvolvimento, um ramo da ciência económica que tenta mostrar como as economias pobres do mundo poderiam desenvolver-se, teve a sua origem nas décadas de 1940 e 1950. Uma das suas ideias iniciais foi a de que as economias dos países menos desenvolvidos estavam presas a um ciclo de pobreza e precisavam de um "forte empurrão" (Big Push) para se desenvolverem. Este empurrão era visto como um grande impulso no investimento, auxiliado por gastos do estado na área social e das infraestruturas, pelo investimento do capital privado estrangeiro assim como pela ajuda de governos dos países desenvolvidos. Grande parte da teoria do desenvolvimento era expressa de forma narrativa; tratava-se
de uma das áreas da ciência económica menos formalizadas e menos modeladas matematicamente. Por estas razões (e outras ainda, como se verá), a teoria do desenvolvimento caiu em desfavor menos de uma geração após a sua emergência. A ciência económica dominante considerava-se uma "ciência" rigorosa, e para os seus economistas tudo aquilo que não era rigorosamente matemático simplesmente não era ciência económica. Entretanto, no fim dos anos 80 a teoria do desenvolvimento retomou a sua ascensão, graças à sua reformulação em termos mais "científicos". De acordo com alguns economistas, a morte da teoria do desenvolvimento teria sido um mal dispensável — não fora a falta de rigor dos seus fundadores. Paul Krugman, reconhecido economista neoclássico e colunista do New York Times, colocava a questão nos seguintes termos: "Quando vislumbro a representação que Murphy e outros [cujo artigo ressuscitou a teoria do desenvolvimento] possuem da ideia do Grande Empurrão, debato-me com a questão de se o longo desmoronamento da teoria do desenvolvimento teria sido efectivamente necessário. O modelo é simples: três páginas, duas equações e um diagrama." [1] É assim que Krugman sintetiza a "ascensão e queda da economia do desenvolvimento," meio século de história do pensamento sobre o desenvolvimento, entre a formulação inicial do "grande empurrão" por Paul Rosenstein-Rodan em 1943 e a sua formalização por Kevin M. Murphy, Andrei Schleifer e Robert W. Vishny em 1989. Devido à ausência de rigor e de acordo com esta versão, os "dias de glória da 'teoria do desenvolvimento'" durariam apenas quinze anos, finalizando com a publicação em 1958 de " The Strategy of Economic Development" da autoria de Albert Hirschman. De acordo com Krugman, a teoria do desenvolvimento era, até à sua reformulação, não mais do que uma literatura de aproximação, com "alguma prosa excepcional, algumas intuições inspiradoras", mas incapaz de modelar matematicamente as suas premissas mais básicas. Por esta razão, veio a tornar-se num "beco sem saída intelectual." Foi apenas nos anos 80 que a economia do desenvolvimento experimentou um renascimento e alcançou estatuto científico, quando Krugman e outros conseguiram integrar conceitos tais como os de rendimentos crescentes ou externalidades (designados em economia por "não-convexidades") no paradigma neoclássico. [2] A tese do desaparecimento-ressurgimento da teoria do desenvolvimento é hoje partilhada por uma larga maioria de especialistas — não apenas pelos neoclássicos mais intransigentes, para os quais não existe ciência fora da tradição e, portanto, nenhum debate viável sobre o desenvolvimento que não inclua uma referência a modelos convencionais, mas igualmente partilhada e em não pouco número por economistas menos ortodoxos. O presente artigo, contudo, opõe-se à interpretação vigente da economia do desenvolvimento. É sua intenção demonstrar como a economia neoclássica, uma vez absorvido o desenvolvimento como um dos seus componentes, é hoje prisioneira de uma crise profunda, e como a preponderância da tradição neste campo teórico é inseparável da hegemonia das políticas de desenvolvimento neoliberais . NEOLIBERALISMO CONTRA O DESENVOLVIMENTO A teoria do desenvolvimento nasceu nas décadas de 40 e 50 de uma dupla diferenciação: (1) no que diz respeito à economia neoclássica convencional, pela rejeição dos dogmas relativos aos benefícios sistemáticos imputáveis ao comércio e ás virtudes do mercado; e (2) no que respeita à economia de feição keynesiana (hegemónica aproximadamente entre 1945 e 1975), através da crítica à inadequação da análise do desemprego e crescimento de curto-prazo, quando aplicada aos problemas estruturais encontrados nos países em desenvolvimento. É pois evidente a presença de um elemento heterodoxo na própria génese da economia do desenvolvimento. E não é de estranhar que esta nova abordagem viesse a encorajar nos mais radicalmente heterodoxos a inclusão do tema do desenvolvimento nas suas análises, tais como marxistas e estruturalistas, e que estes por sua vez viessem a conceber a ciência económica do planeamento, o cepalismo estrutural, [3] a teoria da dependência, assim como as teorias do sistema capitalista mundial. Estas evoluções na história do pensamento estão intimamente relacionadas com aquelas que se deram na própria história dos factos: as grandes revoluções do século XX (Rússia, China, Vietname e Cuba), os movimentos de libertação nacional (Índia, o mundo árabe e a África) ou mesmo as necessidades de reconstrução do pós-guerra (o plano Marshall no Ocidente). O aparecimento de autores vindos do Sul, tais como Raul Prebisch e Celso Furtado na América Latina, P. C. Mahalanobis na Ásia e Samir Amin em África, mostrou-nos a todos que a teoria do desenvolvimento, nascida na Europa, tal como a economia política antes desta, não constituía um monopólio do Norte. A economia do desenvolvimento emergia assim no espaço intelectual subsequente ás transformações sociais proporcionadas pela pressão das lutas populares a nível planetário, das tentativas mais ou menos radicais de emancipação relativamente à ordem mundial. O estado era colocado no coração de todas as estratégias de transformação estrutural, pugnando pela autonomia, por levar mais longe quanto possível a convergência das condições de acumulação: planeamento e industrialização no Leste e nos países socialistas a Sul ou, no resto do mundo, o modelo desenvolvimentista dos nacionalismos burgueses. Bem entendido, o único país não-europeu de entre todo o bloco capitalista a sofrer um crescimento económico brusco, o Japão, mostrava o exemplo de um processo de industrialização totalmente dirigido pelo estado (o período Meiji). É esta a área, produto dos factos e das ideias, que foi retomada nos anos 70 e 80 não só pelo neoliberalismo vigente mas também pela doutrina neoclássica reinante na teoria económica. O neoliberalismo traduz-se no regresso da finança ao poder, isto é, dos detentores de capital mais poderosos no planeta (em larga medida, norte-americanos). Tudo principiou no final dos anos 70 — precisamente por altura da subida das taxas de juro nos Estados Unidos (1979), agravada que foi por sua vez a crise na dívida do terceiro-mundo. Este regresso teve lugar sobre as ruínas da ordem mundial edificada imediatamente após a II Grande Guerra (por exemplo, as taxas de câmbio fixas). O declínio das margens de lucro nos países do centro agravava-se no final dos anos 60, para na década seguinte ampliar-se a uma crise aberta do capitalismo, caracterizada pela oscilação incerta de todo o sistema no caos monetário e financeiro, o aumento exponencial das desigualdades e o desemprego em massa. A conjugação da crítica ao modelo keynesiano de regulação capitalista no Norte (decorrente da estagflação, o aumento simultâneo dos preços e do desemprego), a falência dos projectos nacionalistas burgueses de desenvolvimento no Sul (a crise da dívida nos anos 80) e o colapso do bloco Soviético ao Leste (no início dos anos 90), motivou uma alteração profunda nas relações capital-trabalho à escala planetária. Dificilmente coincidentes com os da corrente dominante os caminhos trilhados pelos seus precursores e uma vez enfraquecidas as forças sociais que a sustentavam, a teoria do desenvolvimento no período pós-guerra só podia ser vista pela ortodoxia neoclássica como uma região estagnada, marcada pelo declínio científico. A falência das políticas de desenvolvimento, em particular das indústrias de substituição, tornou-se óbvia a partir dos anos 80 em pleno advento do neoliberalismo. É no contexto da debandada de trabalhadores e populações da periferia que a ofensiva da ideologia neoliberal na gestão da crise expansionista do capital deve ser entendida. Os seus dogmas são bem conhecidos. Ao nível nacional, trata-se de prosseguir uma estratégia hostil contra o estado através da: (1) deformação da estrutura de controlo sobre o capital de modo a beneficiar os sectores privados, (2) redução da despesa pública nas áreas sociais e (3) imposição da austeridade salarial como medida prioritária na luta contra a inflação. Ao nível global, os objectivos são os de perpetuar a supremacia do dólar norte-americano sobre o sistema monetário internacional e promover o comércio livre, desarticulando o proteccionismo e liberalizando as transferências de capital. A difusão desta estratégia desreguladora à escala planetária é uma das funções das principais organizações internacionais (em primeiro lugar, o Fundo Monetário Internacional [FMI], o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio [OMC]), mas também das instituições monetárias e financeiras locais (os bancos centrais "independentes"). A gestão de todo este edifício é assim feita convergir nos Estados Unidos, cujo poderio militar assegura por sua vez o funcionamento global do sistema. Como consequência, qualquer ideia de desenvolvimento extrínseca ao capitalismo neoliberal é interdita, como o é qualquer possibilidade de autonomia da teoria do desenvolvimento enquanto disciplina relativamente ao corpus neoclássico dominante. Desde o início dos anos 90, certas organizações internacionais e em particular o FMI, têm vindo a consagrar copiosas recomendações aos "países clientes" no sentido de uma "boa governação." [4] Esta organização procura promover a boa governação em "todos os aspectos respeitantes à condução da vida pública," procurando tornar mais transparentes as decisões políticas, disponibilizando o máximo de informação respeitante ás finanças públicas e aos procedimentos de auditoria, ou mais recentemente, "combater o financiamento do terrorismo." [5] O que está verdadeiramente em causa é o afeiçoar das políticas nacionais por forma a criar nestas instituições um ambiente mais favorável a uma abertura do Sul aos mercados globalizados. Como reflexo das necessidades da finança no contexto do neoliberalismo, a boa governação pode muito bem ser vista como uma inversão daquilo que poderia ser objectivamente designado por "bom governo." O objectivo não é tanto a promoção da participação democrática dos indivíduos nos processos de decisão, ou o respeito pelo seu direito ao desenvolvimento, mas antes a desregulamentação dos mercados patrocinada pelo estado, isto é, uma nova regulamentação levada a cabo pelas forças dominantes do capital. Confrontada com a inépcia do neoliberalismo na gestão da crise ou a recusa do FMI, Banco Mundial e OMC em reconhecer a urgência de se procurarem alternativas que imponham limites dinâmicos à expansão do capital, independentes dos seus anseios pelo máximo lucro, a boa governação nada mais pode fazer do que intensificar o criticismo relativamente aos casos de insolvência estatal. Os funcionários públicos não são apenas acusados de "caça aos rendimentos"; já se começa a pôr em causa a sua capacidade para gerir a coisa pública, em particular no Sul endividado, a sua capacidade para erguer e conservar instituições "decentes" não tanto para as pessoas mas mais propriamente para o capital. Assiste uma retórica moralizante acerca da responsabilidade dos estados (aos quais e tão só a estes são imputados todos os erros) assim como os discursos sobre a irresponsabilidade dos seus agentes (quando não é a sua dignidade mais básica que é questionada), mas esta não mais faz do que legitimar aquilo que poderíamos designar como as opções "ultraliberais" de abandono daquilo que seriam as prerrogativas normais do estado, chegando mesmo nalguns casos ao ponto de subcontratar a defesa nacional, substituir a moeda nacional por moeda estrangeira ou privatizar o processo de colecta dos impostos. Somos assim confrontados com um paradoxo gritante, inerente à "boa governação": as organizações internacionais reclamam dos governos nacionais que estes adoptem políticas económicas neoliberais impostas do exterior, enquanto os mercados financeiros globalizados despem os estados da sua soberania e o núcleo do capital estrangeiro insinua-se na estrutura capitalista dos países periféricos. Administrando os aparelhos de estado dos países do sul directamente a partir do centro do sistema mundial de dominação, as organizações internacionais neutralizam o poder destes estados desnudando-os de todas as prerrogativas, reduzindo ao mínimo a sua margem de manobra. Não será este, afinal, o segredo da governação exemplar? A que democracia podem as autoridades públicas pretender aderir quando o exercício da soberania nacional é limitado à liberalização dos mercados, ao pagamento de dividendos sobre o investimento estrangeiro, à liquidação redobrada da dívida externa? A ABSORÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PELA ECONOMIA NEOCLÁSSICA Durante mais de vinte anos e quase por si só, os neoclássicos dominaram a teoria económica, incluindo a teoria do desenvolvimento. É sua ambição a de analisar todos os factos socio-económicos a partir do comportamento maximizado dos indivíduos. O âmago da economia neoclássica e fonte da sua exibição enquanto ciência baseia-se na teoria do equilíbrio geral. Esta teoria defende que, dado um determinado mercado e sempre que um comprador e um vendedor agem em seu próprio interesse, a competição que daí advém produz um conjunto único de preços e quantidades geradoras por sua vez de uma equivalência perfeita entre a oferta e a procura de serviços e mercadorias, incluindo todo e qualquer esforço utilizado na produção. Defende ainda esta teoria que nunca o bem-estar social será maior uma vez atingido este conjunto "equilibrado" de preços e quantidades, no sentido de que nenhum indivíduo poderá alguma vez obter ganhos sem que para isso alguém os perca. Fortemente matemática e normativa, alicerçada num conjunto absurdo de postulados pouco realistas, a teoria do equilíbrio geral é a pedra de toque de toda a microeconomia convencional. O principal objectivo consistiria em determinar a forma pela qual as escolhas dos diversos agentes (compradores e vendedores) podem ser coordenadas de forma a integrar numa só estrutura o conjunto das interdependências respeitantes ás transacções que têm lugar entre si. Assumida como livre, racional e impulsionada pelo interesse pessoal, estas decisões dependem não só das características próprias dos agentes (factores de produção acumulados, gostos e preferências, conjecturas e funções de produção), assim como da forma de organização social na qual estas relações têm lugar. O exemplo acabado seria uma estrutura de mercado na qual existisse uma situação de competição perfeita o que a acontecer permitiria ao modelo fornecer, dados os postulados de Arrow-Debreu (assim designados depois de Kenneth Arrow e Gérard Debreu, ambos laureados com o Prémio Nobel), [6] uma solução de equilíbrio na qual a disposição das escolhas individuais e a distribuição dos recursos "optimizada" seria possível (no sentido descrito mais abaixo, elaborado originalmente pelo economista Vilfredo Pareto). Ainda que o modelo procure processar informação respeitante a uma grande quantidade de indivíduos, as dificuldades técnicas encontradas pelos neoclássicos faz com que estes venham a desenvolvê-lo na maior parte dos casos com um número muito restrito de agentes, na assumpção de que estes seriam "representativos" da sua totalidade. Em casos extremos, mas não raras vezes visto que se permitem a simplificações matemáticas, é considerado apenas um único agente; é assim assumido que a análise pode ser exercitada em toda a sua plenitude e com total sucesso no caso de um agente apenas, por exemplo, Robinson Crusoe na sua ilha. Sendo que a teoria do equilíbrio geral representa uma referência teórica decisiva em todos os modelos neoclássicos, o seu conhecimento é também crucial para os autores críticos heterodoxos. A partir de 1970, a teoria do equilíbrio geral tem vindo a ser amplamente aplicada na área do desenvolvimento, graças à utilização de modelos computacionais. Estes modelos calculam as variáveis de equilíbrio na economia com base em comportamentos individuais, como é o caso de efeitos de preço e quantidade devidas a alterações nos parâmetros relativos à política económica, tais como impostos e subsídios. Por exemplo, estabelecesse uma nação um salário mínimo para os trabalhadores, estaríamos nós perante um aumento no desemprego? Efectivamente, é o próprio Banco Mundial o primeiro a empregar estes instrumentos como forma a justificar teoricamente e tornar politicamente credíveis as medidas anti-sociais de ajustamento estrutural impostas ao Sul, contribuindo assim para a sua difusão no seio das esferas académicas. O próprio estudo do papel das instituições no crescimento (tais como os sindicatos, o estado, as forças armadas, as organizações religiosas, as leis e tudo o mais) levou os teóricos neoclássicos a tomar em consideração assuntos relativos ao desenvolvimento. De acordo com a teoria da competição perfeita mais convencional e durante um longo período, os coeficientes relativos ás instituições eram tidos como exógenos, isto é, eram encarados como dados adquiridos e portanto não havia estudo económico que lhes pudesse ser aplicado. Era assim excluída da investigação económica a análise das instituições, deixada como objecto de estudo para outras ciências sociais já mais habituadas a lidar com o colectivo como categoria, tais como a sociologia e as ciências políticas. Mais recentemente contudo, os economistas têm vindo a incluir as instituições no interior dos seus modelos de equilíbrio geral, aplicando o género de análise económica mais convencional ao estudo dos seus comportamentos. Mas por forma a conseguir tal façanha, os economistas clássicos simplesmente assumem que o comportamento individual maximizado pode explicar unicamente e por si só aquilo que fazem e aquilo que são as próprias instituições. Por exemplo, quando George Akerlof utilizou a teoria dos jogos para estudar as castas indianas, começou por adoptar a ideia de que existe um modelo convencional do comportamento económico passível de ser aplicado a qualquer época e a qualquer situação, nomeadamente, o modelo de competição perfeita e equilíbrio geral de Arrow-Debreu. [7] Para favorecer o argumento, um economista assume mesmo que "no princípio" existiam os mercados. [8] Em macroeconomia, a economia do desenvolvimento tem sido em larga medida influenciada pela teoria do crescimento neoclássica, designada por "crescimento endógeno". Estes modelos (por exemplo, os de Paul Romer e Robert Lucas) procuram explicar o crescimento do produto interno bruto pelo próprio processo de acumulação ou, internamente (i.e., atendendo aos factores de produção), sem recorrer a mecanismos exógenos como é o caso do famoso modelo de Solow de 1956. A essência deste modelo reside na ideia de que, havendo total confiança nos mercados competitivos, o crescimento de qualquer economia em estado estacionário, rica ou pobre, deverá ocorrer mais tarde ou mais cedo. Desnecessário pois o tal "Grande Empurrão", apenas e tão só uma estrutura institucional propiciadora da competição entre os interesses privados dos agentes. Uma das previsões da nova teoria de crescimento endógeno reporta-se à inexistência de convergência no crescimento entre os vários países, em particular a conclusão chave de que nas economias de mercado o estado deve intervir por forma a acelerar a acumulação de capital, o que significa crescimento a longo prazo. Graças a estes modelos, a posição dominante no que respeita à modelação do crescimento a longo prazo é assim ocupada pelos teóricos neoclássicos. Pelo contrário, exasperados com a tese anti-estado neoliberal, a grande maioria dos economistas heterodoxos insurge-se precisamente contra os encantos mais recentes da teoria neoclássica. A CRISE DA ECONOMIA NEOCLÁSSICA A economia neoclássica convencional encontra assim os economistas heterodoxos numa posição defensiva, atacando-os em todas as frentes, na micro e macroeconomia, mas também no que respeita ás instituições. No entanto, é importante compreender que a investida neoclássica não se deve à sua superioridade teórica, bem pelo contrário, ela atravessa uma grave crise teórica. Por exemplo, em microeconomia é-lhes (matematicamente) impossível demonstrar o que há de distinto no equilíbrio geral — discutido anteriormente — e no comportamento maximizado dos agentes. [9] Estes problemas teóricos nunca são mencionados nos estudos neoclássicos consagrados ao desenvolvimento, em particular nos modelos computacionais de equilíbrio geral, mas eles constituem o desafio mais sério que a ciência económica dominante tem de enfrentar. E a verdade é que a ciência económica neoclássica não tem respostas para este problema. Em macroeconomia, o uso frequente do postulado do agente representativo [10] levanta a questão de fazer ou não sentido falar num "mercado", numa "transacção", num "preço" quando existe apenas e tão só um agente isolado. Como se isto não bastasse, a teoria neoclássica de crescimento é incapaz de explicar conceitos tão fundamentais como o "capital", visto como um motor de crescimento (de que forma está relacionado com o conhecimento, o capital humano ou infraestrutura?), ou mesmo o estado (como deve ser este distinguido do agente individual?). No campo neo-institucional, a ideologia das escolhas livres individuais conduz a verdadeiras catástrofes intelectuais, tais como a explicação do feudalismo levada a cabo por C. Douglass North [11] , ou a exposição de Joseph Stiglitz sobre o ressurgimento recente da partilha de colheitas no Sul. [12] Não foi Oliver E. Williamson que nos ensinou a todos que qualquer "contrato privado" resultante de transacções inter-individuais é necessariamente racional e eficiente em cada período histórico? [13] Como podemos então surpreender-nos ao vê-lo reclamar a paternidade e validade das "reformas institucionais" do Consenso de Washington? Na verdade, o que os teóricos neoclássicos nos apresentam como progressos não são nada mais do que regressões intelectuais, evoluções de uma ciência cada vez mais parecida com a ficção científica. Devem ser compreendida a função ideológica das teorias neoclássicas [14] Elas conferem um verniz científico ás políticas neoliberais. E não é de forma alguma um acaso o sincronismo entre o que a teoria preconiza e o que o neoliberalismo pratica: colocando o estado ao serviço do capital privado e, em boa verdade, tudo aquilo que uma vez foi bem público na calha da privatização. Tudo deve ser "mercantilizado," incluindo a produção do conhecimento ou a educação. E não é tanto o caso de ao estado não lhe ser permitido imiscuir-se — neste ponto, não podia ser maior a distância que separa os neoclássicos da velha escola anti-estatal ou mesmo das posições libertárias de economistas tais como Friedrich Hayek. De facto, ao estado cabe apenas o papel de garante da hegemonia do capital privado e transnacional. Qualquer dissimulação de objectividade por parte dos teóricos neoclássicos terá sido entretanto desmascarada quando os prémios Nobel da economia Milton Friedman, Gary Becker e Robert Lucas vieram juntos a público para "apoiar entusiasticamente o programa económico de George W. Bush". A CRISE DO NEOLIBERALISMO As políticas neoliberais têm vindo a ser empregues vai para mais de três décadas na gestão da crise capitalista. Muito tem sido oferecido aos detentores do grande capital, isto é, à alta finança e em particular à dos Estados Unidos, na forma de oportunidades de investimento especulativo. De forma a compensar a ausência de canais de investimento para os lucros fenomenais conseguidos através da exploração dos trabalhadores, camponeses e população em geral, as políticas neoliberais procuram desimpedir esses canais por forma a evitar uma desvalorização do capital. Estas políticas têm sido prejudiciais para a grande maioria da humanidade. Em particular, o Sul globalizado tem sofrido os pagamentos odiosos da dívida, a fuga do capital e o repatriamento dos lucros provenientes do investimento estrangeiro. O neoliberalismo não é um modelo de desenvolvimento; é antes a estratégia colocada em prática pela alta finança por forma a espoliar o Sul enquanto acumula lentamente capital a Norte. Apesar da sua falência em todas as áreas (e por implicação, o equívoco de toda uma legião de especialistas [15] ), continua a ser aplicada de forma unilateral e antidemocrática. Entretanto, as desigualdades a nível intra e internacional explodem. Até mesmo os mecanismos de regulação do capitalismo global encontram-se em crise. A militarização é hoje a característica fundamental do poder da finança global sob a égide da hegemonia norte-americana. É significativo neste aspecto não tanto o aumento do "peso militar" — percentagem do PIB relativamente ás despesas militares — mas antes a disseminação agressiva de bases militares norte-americanas por esse mundo fora, assim como a crescente presença de corporações transnacionais no interior do complexo industrial e militar. O nome correcto para a globalização é imperialismo, e um imperialismo cada vez mais visivelmente imposto pela via da força. Já as finanças encontram-se em pé de guerra contra quem quer que ensaie processos de desenvolvimento autónomo ou declare sequer intenções nesse sentido, e é essa a lógica basilar que relaciona guerras imperialistas à alta finança. No Iraque por exemplo, existem sem dúvida desejos do capital em controlar o petróleo. Mas há uma realidade mais decisiva: o que está em causa e o que faz esta ou outras guerras essenciais para a alta finança é a reprodução das condições que permitam ao capital manter-se ou mesmo expandir-se ainda mais. A classe capitalista já não consegue garantir o poder que detém de outra forma senão através da guerra. E é interessante observar como os economistas neoclássicos se empenham de corpo e alma na elaboração de uma ciência económica da defesa, contudo os seus esforços não tiveram êxito. A razão deste fracasso é a incapacidade da economia neoclássica para lidar com o conflito, um elemento incontornável em qualquer análise sobre a guerra! DA GUERRA CONTRA A POBREZA À GUERRA CONTRA OS POBRES
A prossecução de políticas neoliberais tem vindo a tornar-se cada vez mais uma guerra contra os pobres, mesmo sendo uma das suas bases ideológicas a intenção de reduzir essa mesma pobreza. Nesta guerra, a maioria dos economistas dispensa-se do esforço de propor alternativas aos vastos desdobramentos do neoliberalismo, nem mesmo aqueles que são habitualmente retratados como especialmente sensíveis aos aspectos sociais do desenvolvimento — ou aqueloutros tidos como críticos do neoliberalismo, tais como Joseph Stiglitz e Amartya Sen. Em boa verdade, os criticismos erguidos pelos "grandes" economistas (galardoados com o Prémio Nobel em ciências económicas, atribuído pelo Banco da Suécia) são engenhosos, particularmente no que toca aos assuntos abordados pelos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio das Nações Unidas. Thomas Schelling, laureado Nobel pelas suas "descobertas" relativas à teoria dos jogos (sem esquecer que, enquanto funcionário da Rand Corporation, o seu trabalho influenciou Robert McNamara aquando das suas decisões durante a escalada da violência no Vietname), fez parte do "grupo de peritos" do "Consenso de Copenhaga" instituído em 2003 para avaliar os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. (o chamado "Consenso de Copenhaga" foi convocado pelo anti-ambientalista Bjørn Lomborg, autor do conhecido livro The Skeptical Environmentalist — com o apoio do Instituto Nacional Dinamarquês para a Avaliação do Ambiente). Schelling recomendava então os seguintes pontos: (1) corte nas prioridades das Nações Unidas relativamente à redução dos gases de estufa (já anteriormente havia apoiado a rejeição do Protocolo de Quioto pelos Estados Unidos); (2) maior promoção por parte das Nações Unidas no que respeita à liberalização do comércio; (3) uma maior protecção das patentes da Sida detidas pelas corporações; (4) promoção dos organismos geneticamente modificados com o pretexto da luta contra a desnutrição. Não é difícil ter Schelling como excepcional nas suas perspectivas, sobretudo quando comparado com outros economistas igualmente agraciados com o Prémio Nobel. Mas dificilmente será este o caso. Fogel (galardoado com o Prémio Nobel em 1993), cujas interpretações da escravatura nos Estados Unidos mais não fazem do que racionalizá-la como um tipo de relação de livre escolha entre escravo e senhor! Também Fogel fez parte do Consenso de Copenhaga e não foram muito diferentes das de Schelling as exortações que fez nessa ocasião — a liberalização do comércio no topo das prioridades e a desnutrição, a fome assim como o combate contra o aquecimento global na base dos problemas considerados por ele prioritários. [16] E como poderíamos nós esquecer Milton Friedman (Prémio Nobel em 1976), convencido de que a intervenção do estado para além dos serviços de educação providenciados pelo mercado "não é necessária", que a acontecer tal intervenção teríamos um sistema bem pior do que aquele que se teria desenvolvido caso o mercado tivesse desempenhado um papel mais saliente. Ou Hayek (Prémio Nobel em 1974), cujas posições são por demais conhecidas e não carecem aqui de explicação. Gary Becker (Prémio Nobel em 1992), que declarou um dia que as diligências dos "Rapazes de Chicago" [economistas da Universidade de Chicago] para com o General Pinochet terão sido "uma das melhores coisas que alguma vez aconteceram ao Chile." [17] Sendo como era uma das fontes de inspiração da Universidade de Chicago, terá ainda demonstrado o seu apreço quando afirmou que estava "orgulhoso da mais do que merecida glória dos seus discípulos". No mesmo espírito, Robert Barro (promissor Prémio Nobel) escreve sobre a actual performance económica positiva do Chile, afirmando que tal deve-se sem sombra de dúvidas ás reformas neoliberais implementadas por Pinochet em 1973–1989, visto que ninguém fez mais do que ele para demonstrar a "superioridade" do capitalismo em relação ao socialismo. OS 'GRANDES ECONOMISTAS' MAIS BRANDOS E GENEROSOS A ideologia reaccionária de alguns dos "grandes" economistas é relativamente bem conhecida e foi já muitas vezes denunciada. Mas os argumentos intrinsecamente pró-neoliberais dos mais moderados de entre os galardoados com o Prémio Nobel, tidos não raras vezes como críticos do sistema, como Stiglitz e Sen por exemplo, provocam menos olhares críticos. Estes dois autores da moda sabem muito bem como "surfar" na onda dos protestos contra o neoliberalismo selvagem assim como sobre a necessidade de uma regulação de mercado que promova um capitalismo com "uma face humana". É contudo um sério equívoco este, visto que nenhum deles alguma vez recomenda o restabelecimento do estado-providência (wellfare state), a modificação da estrutura de propriedade a favor do sector público, a aplicação de uma política de redistribuição dos recursos, ou a promoção dos serviços públicos — muito menos a argumentação a favor de um desenvolvimento planeado e conduzido pelo próprio estado. Muito embora algumas nuances e subtilezas, os seus argumentos sempre pressupõem a enunciação de que o estado deve submeter-se às forças dominantes do capital global e mesmo auxiliar no seu processo de acumulação. Stiglitz (Prémio Nobel em 2000) era ainda economista-chefe no Banco Mundial quando o relatório de 1998-99 sobre "O conhecimento para o Desenvolvimento" [19] foi publicado. Este relatório ensina-nos o que significa "cooperação" entre o sector privado e as áreas da informação e telecomunicações: privatização, desmantelamento da investigação pública (incluindo a transformação de institutos de investigação em sociedades anónimas) e mercantilização da educação (até mesmo no auxílio aos pobres no pagamento dos seus estudos). Harmoniza toda uma série de relatórios a favor das transnacionais publicados previamente pelo Banco Mundial sobre o ambiente, infraestrutura, saúde ou dividendos de paz: protegendo-as contra qualquer risco de nacionalização; providenciando ás transnacionais a possibilidade de acumulação de capital através da construção de infraestruturas com dinheiros públicos; promovendo a exploração dos recursos florestais para a exportação; no corte das despesas públicas e nos programas sociais; ou a abertura de apetecíveis mercados de escoamento para os complexos militares e industriais (não sem antes aconselhar o desarmamento por forma a continuar o financiamento da dívida do terceiro mundo). Sen (Prémio Nobel em 2004) é tradicionalmente apresentado como uma "voz alternativa" na luta contra a pobreza. As suas análises concentram-se na escassez de recursos dos mais pobres (em particular, capital humano), situação que não lhes permite superar a sua penúria através da participação activa nos mercados. As ideias de Sen têm influenciado consideravelmente as organizações internacionais empenhadas no desenvolvimento humano. O seu pensamento é contudo e em larga medida, uma cópia perfeitamente compatível da teoria neoclássica (incluindo a teoria do equilíbrio geral e o seu individualismo metódico). E as propostas que advoga nas suas palestras eticamente "pluralistas" — não raras vezes bastante confusas — aproximam-no da multidão em favor da boa governação do Banco Mundial e do FMI. Obcecado pelo indivíduo solitário e as suas oportunidades (e capacidades) de escolha, a redistribuição de recursos entre grupos sociais é quase sistematicamente esquecida por Sen, e em particular a questão da desigualdade na distribuição do capital. Tal como Stiglitz e muitos outros (de Krugman a Jeffrey Sachs), Sen perde-se na fantasia da escolha livre e individual dos agentes. Não estamos longe do conceito ideológico de "democracia" baseado na simples escolha individual, dissimulando os efeitos da dominação de classe e/ou subjugação nacional, assim como as relações de força entre exploradores e oprimidos — isto é, as contradições essenciais presentes no capitalismo desde a sua própria origem. Actualmente, o domínio da economia neoclássica sobre a teoria do desenvolvimento está a par com aqueloutro do poder financeiro neoliberal sobre as políticas de desenvolvimento. Isto não significa que todos os neoclássicos sejam neoliberais. Uma das complexidades do momento actual advém precisamente da esquizofrenia de um certo número de economistas, neoclássicos no escritório mas pseudo-populistas durante o fim-de-semana. Significa tão somente que existem complementaridades importantes entre as duas formas de dominação ideológica, interdependentes entre si e reforçando-se mutuamente. É assim que, na minha opinião, não são apenas a ausência de uma base cientifica ou a existência de inconsistências lógicas que desqualificam estas abordagens, mas antes o papel ideológico e o projecto anti-social sustentado pelas metodologias empregues ou as conclusões aportadas, em tudo aquilo que autorizam ao capital mundial. Aos autores heterodoxos não lhes é mais permitido o luxo de se perderem em polémicas inúteis, reproduzindo divisões antigas. Em qualquer dos casos, a solução não passa pela elaboração de novas "sínteses", nem tão-pouco na submissão ao impulso neoclássico dominante, não será certamente assim que os autores heterodoxos conseguirão mobilizar forças para reconstruir uma alternativa genuinamente crítica. Hoje, mais do que nunca, a questão subsiste: Como poderemos nós superar os erros do passado por forma a edificar um projecto de desenvolvimento autêntico, numa alternativa pós-capitalista — uma alternativa social, ou melhor, socialista? É esta a questão que tem animado desde o início as heterodoxias empenhadas na economia do desenvolvimento.
1- Paul Krugman, "The Fall and Rise of Development Economics" (1993), http://www.wws.princeton.edu/pkrugman/dishpan.html
2- Paul Krugman, "Increasing Returns and Economic Geography," National Bureau of Economics Research Working Papers 3275 (Cambridge, Massachusetts, 1990).
3- A partir de CEPAL, acrónimo para Comisión Económica para América Latina y el Caribe.
4- Rémy Herrera, "Good Governance against Good Government," Report for the 60th Session of the UN Commission of Human Rights, E/CN.4/2004/NGO/124 (Geneva, July 2004).
5- Fundo Monetário Internacional, Good Governance: The IMF Role (Washington D.C.: International Monetary Fund, 2003).
6- Alan P. Kirman, "The Intrinsic Limits of Modern Economic Theory: The Emperor Has No Clothes," Economic Journal 99, no. 395, (1998).
7- George A. Akerlof, "The Economics of Caste and of the Rat Race and Other Woeful Tales," Quarterly Journal of Economics 90, no. 4 (November 1976).
8- Oliver E. Williamson, Markets and Hierarchies (New York: Free Press, MacMillan, 1975).
9- Hugo F. Sonnenschein, "Do Walras' Identity and Continuity Characterize a Class of Community Excess Demand Functions?," Journal of Economic Theory 6 (1973).
10- Para um exemplo de teoria do ciclo de negócios real ver Finn E. Kydland and Edward C. Prescott 1982 (2004 Nobel prize-winners).
11- O senhor providenciaria bens públicos para os quais não existe qualquer mercado (por exemplo, a defesa) e, em contrapartida, a remuneração pelos seus serviços assumiria formas institucionais adequadas (servidão, "contrato implícito") por forma a prevenir comportamentos "free-riding" no interesse dos seus subordinados.
12- Um contrato de partilha de colheitas racional e eficiente seria aquele em cujos termos o proprietário veria assegurado um equilíbrio entre os riscos da insegurança associados ás flutuações das receitas provenientes da terra e os incentivos ao trabalho dos seus cooperantes. Ver Joseph Stiglitz, "Incentives and Risk Sharing in Sharecropping", Review of Economic Studies 41 (1974).
13- Oliver E. Williamson, Markets and Hierarchies (New York: Free Press, MacMillan, 1975).
14- Rémy Herrera, "The Hidden Face of Endogenous Growth Theory: Analytical and Ideological Perspectives in the Era of Neoliberal Globalization," Review of Radical Political Economics 38, no. 2 (2006).
15- A título de exemplo ver Jeffrey Sachs, The End of Poverty (London: Penguin Press, 2005).
16- Bjørn Lomborg, ed., Global Crises, Global Solutions (Cambridge: Cambridge University Press, 2004).
17- Gary S. Becker, "Latin America Owes a Lot to Its 'Chicago Boys,'" Business Week (June 9, 1997). 18- Robert J. Barro, Nothing Is Sacred (Cambridge: MIT Press, 2002). 19- World Bank, World Development Report 1998–99 (Washington D.C.: World Bank, 1999).
Rémy Herrera
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