sábado, setembro 02, 2006

A reconstrução não é ainda uma realidade para Faluja

Um ano e meio depois do assalto militar estadunidense de Novembro de 2004 contra Faluja, os residentes falam­‑nos do sofrimento existente, da falta de trabalho, da escassa reconstrução e da contínua violência.
O exército dos EUA lançou a operação Fúria Fantasmagórica contra a cidade de Faluja – destruindo aproximadamente 70 por cento dos edifícios, casas e lojas, e matando entre 4.000 e 6.000 pessoas, segundo a organização não­‑governamental Centro de Estudos pelos Direitos Humanos e a Democracia, com sede em Faluja (SCHRD [sigla em inglês]).
Descobrimos que a cidade continua submetida a draconianas medidas de segurança biométricas, sendo requerido a qualquer pessoa que entre na cidade scans da retina, registo de impressões digitais e exame de raios­‑X. Faluja continua a ser uma ilha: nem sequer se permite a entrada aos residentes das aldeias e cidades vizinhas, como Karma, Habaniya e Khalidiya, que estão sob a jurisdição administrativa de Faluja.
A qualquer pessoa que queira entrar na cidade é exigido um cartão de segurança. Para conseguir esse cartão é preciso ser originário de Faluja de uma certa classe. Isto é, a quem for de Faluja e funcionário do governo, será emitido um cartão de classe alta de grau G. Os jornalistas com um cartão de grau X serão autorizados. Depois há cartões de grau B para os homens de negócios e de grau C para aqueles que têm contratos com o exército estadunidense na cidade. Por fim, há cartões de grau R, que não serão admitidos para passar no controlo militar principal no lado leste da cidade, e devem procurar entrada através de controlos de “segunda classe” noutros locais.
Depois de entrar na cidade pelo controlo militar principal, a primeira coisa que se vê são as casas destruídas do bairro al-Askari. Praticamente todas as casas desta zona foram complemente destruídas ou seriamente danificadas.
«Não pude reconstruir outra vez a minha casa porque a reconstrução é actualmente muito cara», contou­ Walid, um oficial de 48 anos do antigo exército iraquiano. Com tristeza nos olhos, contou como construíra a casa seis anos antes. Depois da destruição, «Eles [exército dos EUA] pagaram-nos 70 por cento da compensação e, com o desemprego que há na cidade, gastámos a maior parte disso em comida e medicamentos. Agora todos esperamos os restantes 30 por cento».
Versões ligeiramente diferentes desta mesma história poderiam ser contadas por centenas de pessoas que perderam as suas casas nos bombardeamentos de Abril e de Novembro de 2004.
Do outro lado do rio Eufrates está o Hospital Central de Faluja. Construído em 1964, o hospital não pôde funcionar durante ambos os assaltos porque esteve ocupado pelo exército dos EUA.
Os médicos estavam relutantes em falar­‑nos, a menos que lhes prometêssemos o anonimato. «Isto é mais um estábulo do que um hospital e não nos orgulha trabalhar nele», afirmou um médico. «Há uma tremenda falta de material e equipamento médico, e o Ministério da Saúde não faz muito quanto a isso», acrescentou outro médico, também falando sob condição de anonimato.
Quando mencionámos o novo hospital que está a ser construído na cidade, um dos médicos replicou, com ironia, que metade das pessoas de Faluja estarão mortas antes de o hospital projectado ser concluído. Declarou que é essencial um plano de emergência para o hospital existente, sobretudo porque as pessoas têm muito medo de procurar cuidados médicos em qualquer dos hospitais de Bagdade, por receio de serem sequestradas e assassinadas por esquadrões da morte. A situação é ainda mais
complicada pelo facto de o Hospital Central de Ramadi, utilizado amiúde pelos residentes de Faluja, já não estar acessível devido ao actual cerco do exército dos EUA a essa cidade.
Durante a entrevista dos médicos, juntaram-se pacientes e seus companheiros e começaram a queixar-se da “falta de tudo” no hospital. «Vocês, jornalistas, estão sempre a vir aqui e falam connosco, mas não há resultados», disse uma mulher idosa em tom de desafio. «Se me puser na televisão, eu contarei ao mundo inteiro como é má a situação nesta cidade».
No entanto, os médicos entrevistados louvaram o papel de algumas ONG locais e internacionais que ocasionalmente tinham oferecido ajuda ao hospital.
Os habitantes de Faluja estão a lutar para sobreviver no meio de um desemprego galopante, da falta de abastecimentos e da violência existente na cidade. Num mercado de comestíveis, encontrámos outra faceta da história. Haji Majeed Al Jumaily, de 64 anos, era ferreiro até as suas mãos terem perdido a força. Perguntou ao merceeiro uma dúzia de vezes quanto custava um produto, antes de dizer: «Só tenho 2.000 dinares, menos de um dólar e meio, para gastar e não sei o que comprar com eles. É tudo tão caro e tenho de alimentar os nove membros da minha família».
Ele contou-nos como os seus dois filhos foram mortos há dois anos por fogo fortuito do novo exército iraquiano. «Agora tenho de cuidar das duas viúvas e dos seus seis filhos, bem como da minha mulher», disse. O mercado estava cheio de gente, mas a pobreza era patente pela maneira como as pessoas deambulavam de um lado para o outro, sopesando o que comprar com o que tinham no bolso.
«O desemprego em Faluja é um grande problema que deveria ser enfrentado», comentou Jassim Al Muhammadi, um advogado. «A situação económica desmorona-se de dia para dia e as pessoas não sabem o que fazer. O cerco está a agravar muito este problema».
Ali Ahmed, um estudante de 17 anos, interrompeu: «Nesta cidade não precisamos de comunicados de imprensa, senhor. Do que realmente precisamos é de uma solução para o eterno problema desta cidade. […] Os americanos e os iraquianos que estão no poder acusaram-nos de terrorismo, mataram milhares dos nossos e agora limitam-se a falar de reconstrução. Ora, eles são todos ladrões que só se interessam pelo que podem debicar das fortunas iraquianas. Diga-lhes apenas que nos deixem em paz porque não queremos a sua reconstrução fraudulenta».
Ahmed acrescentou que os soldados estadunidenses continuam a assassinar e a prender pessoas por qualquer motivo e, por vezes, sem motivo nenhum.
As infra­‑estruturas em Faluja são simplesmente tão más como em qualquer outra parte
do Iraque. Os serviços de água, electricidade, gás doméstico, gasóleo, telefone e telemóvel são muito fracos. Todos os residentes entrevistados se queixaram da atitude indiferente do governo para com eles. A maioria acreditava que era por razões sectárias, embora alguns pensassem que acontecia o mesmo em todo o Iraque.
O presidente de câmara de Faluja não esteve disponível para ser entrevistado, mas na
sua última aparição na televisão anunciou a sua demissão. Na declaração televisiva de 14 de Junho, declarou com firmeza: «Os americanos não cumpriram as promessas que me fizeram e por isso demito-me».
Relatos semelhantes acerca da situação em Faluja foram emitidos em 21 de Maio pela Rede das Nações Unidas de Informação Regional Integrada (IRIN [sigla em inglês]): « ainda há progressos lentos em assuntos humanitários, segundo funcionários locais».

O relatório afirmou que dois terços dos residentes da cidade regressaram, mas 15 por cento continuam deslocados pelos arredores de Faluja, «vivendo em escolas abandonadas e edifícios do governo».
«Aproximadamente 65.000 estão ainda deslocadas fora de Faluja», informou Bassel Mahmoud, director dos projectos de reconstrução da cidade.
O relatório da IRIN, semelhante ao que nós mesmos averiguámos, afirmou: «Apesar de Bagdade ter destinado 100 milhões de dólares à reconstrução da cidade e 180 milhões de dólares para compensações por habitações [destruídas], muito pouco pode ver­‑se à vista desarmada nas ruas de Faluja em termos de reconstrução. Há edifícios destruídos em quase todas as ruas. As autoridades locais dizem que 60 por cento de todas as casas da cidade ficaram totalmente destruídas ou gravemente danificadas, e até agora foram reparadas menos de 20%. […] Os sistemas eléctrico, de tratamento da água e de esgotos continuam sem funcionar adequadamente e muitos bairros da cidade estão sem água potável».
Os habitantes queixaram-se-nos de que tinham menos de quatro horas diárias de electricidade e de que havia uma grande frustração pelo facto de pelo menos 30 por cento dos fundos destinados à reconstrução terem sido desviados para pagar mais controlos militares e mais patrulhas de segurança na cidade.
E enquanto os cidadãos continuam à espera dos prometidos fundos de compensação, dos 81 projectos de reconstrução aprovados para a cidade, foram concluídos menos de 30 e muitos outros serão muito provavelmente cancelados devido à falta de financiamento, de acordo com um membro da Câmara Municipal de Faluja, que nos falou sob anonimato.
As estimativas actuais da quantia necessária para reconstruir o Iraque situam­‑se entre os 70 e os 100 mil milhões de dólares. Só 33 por cento dos 21 mil milhões de dólares inicialmente destinados pelos Estados Unidos à reconstrução não foram gastos. Segundo um relatório do inspector-geral estadunidense para a reconstrução do Iraque, os funcionários foram incapazes de dizer quantos dos projectos programados concluiriam, nem tão pouco há uma fonte clara [de financiamento] para as centenas de milhões de dólares anualmente necessários para a manutenção dos projectos que foram concluídos.
E quanto a Faluja em particular, a segurança absorveu tanto como 25% dos fundos de reconstrução, mas diz­‑se que ainda mais foi desviado pela corrupção e pelos preços inflacionados dos contratistas.
No ano passado, foi criada uma equipa de inspecção do Congresso dos EUA para monitorar a reconstrução no Iraque. Em 1 de Maio, publicou um relatório mordaz sobre o fracasso dos contratistas estadunidenses em levarem a cabo projectos no valor de centenas de milhões de dólares. O relatório assinalava também que perto de nove mil milhões de dólares em receitas do petróleo iraquiano que tinham sido desembolsados para os ministérios estavam «desaparecidos».

Dahr Jamail
http://infoalternativa.org/autores/jamail/jamail018.htm

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