A maior parte dos outros países europeus viu da revolta da juventude francesa contra o contrato primeiro emprego (CPE) apenas a violência de algumas manifestações. Na Itália, esta mobilização contra um símbolo de precariedade coincidiu no entanto com a campanha eleitoral. Mas a coligação conduzida por Romano Prodi, ele próprio partidário da “flexibilidade”, evitou fazer da revolta francesa um cavalo de batalha…
Na Itália, o movimento francês contra o Contrato Primeiro Emprego (CPE) surpreendeu. A imprensa – com excepção de diários explicitamente de esquerda como Il Manifesto e Liberazione –, se não o ocultou, em todo o caso subestimou‑o. Situados no centro esquerda, La Repubblica e Corriere della Sera preferiram, como o canal de televisão RAI 1, falar de uma revolta geracional, pondo em destaque os aspectos mais violentos – pelo menos até o movimento desestabilizar o governo francês.
Não só as imagens de chamas são mais fotogénicas, como permitem não se interrogar sobre o essencial. Desencadeada por jovens estudantes de liceu e universitários em luta contra a precariedade do trabalho que obstrui o seu futuro, esta revolta também arrastou, por um lado professores e mesmo presidentes de universidade, por outro os sindicatos por uma vez todos unidos. Quer dizer que envolveu diversas gerações.
Na Itália, todos estavam estupefactos, mas poucos se mostravam entusiastas. A coligação de centro‑esquerda teria podido servir-se do caso como um cavalo de batalha nas últimas semanas de uma campanha eleitoral difícil, mas não o fez. Tratava-se de uma questão escaldante, como todas as que dividem este agrupamento muito heteróclito [1]. Decidida a vencer a Casa das Liberdades de Silvio Berlusconi, Gianfranco Fini e Umberto Bossi, ela própria dividida entre um centro democrata‑cristão e a extrema direita (Liga do Norte e neofascistas), a União só podia agrupar‑se com base num programa moderado. E, consequentemente, não teve a coragem de dizer que na Itália a precariedade é já tão extensa como o teria sido na França se o CPE tivesse avançado. Visto de Roma, o erro do governo de Dominique de Villepin é ter chamado as coisas pelo seu nome, ter dito aos jovens que, até aos 26 anos, o seu contrato de trabalho seria instável e que poderia mesmo ser interrompido sem motivo.
Os autores da tristemente célebre “lei 30” italiana evitaram tal franqueza. Esta lei introduziu dissimuladamente uma quarentena de “formas” de trabalho “atípico” sem levantar protesto. Não tinha necessidade de exibir as pretensões do artigo 8 do CPE: para a grande maioria dos empregos em questão, não se prevê despedimento porque não existe sequer contratação formal. Aqui, é‑se contratado de maneira vaga e limitada, nas condições fixadas pela empresa ou pela agência intermediária e que é necessário aceitar. De facto, aceita‑se, na esperança de que, na competição com os outros, e se a conjuntura melhorar, o emprego, um dia, se tornará fixo.
UMA LEI AUREOLADA PELO MARTÍRIO
Tudo isso vale tanto para os jovens como para os quadragenários despedidos após vinte anos de trabalho ou mais, devido a uma crise da empresa, uma reestruturação ou uma deslocalização. Também eles se encontram, mas com os cabelos grisalhos e menos possibilidades de serem bem sucedidos, na mesma situação que um jovem à procura de um primeiro emprego...
Esta “reforma do mercado de trabalho” foi definida pelo primeiro governo de centro‑esquerda (1996‑2001) sob o nome de “pacote Treu”, do nome – Tiziano Treu – de um economista e sindicalista do movimento católico democrático que se tornou ministro do trabalho de Romano Prodi e Massimo D’Alema. Marco Biagi tinha apurado seguidamente os detalhes como consultor dos ministros (de centro-esquerda) do Trabalho Antonio Bassolino e Cesare Salvi, depois, após 2001, com o ministro dos Assuntos Sociais procedente da Liga, Roberto Maroni. Biagi foi abatido por sobreviventes das Brigadas Vermelhas, em Bolonha. É por isso que a “reforma” passou a ser a lei Biagi, assim aureolada pelo martírio, antes de levar o nome, doravante mais conhecido, de “lei 30”.
Numa dezena de anos e sob dois governos de orientação oposta, esta lei multiplicou as formas de trabalho de duração determinada, da «colaboração coordenada contínua» [2] a toda uma série de prestações temporárias e de teletrabalho. Como sempre, esta abundante tipologia releva da casuística. O trabalho precário diz respeito na Itália a cerca de 2,5 milhões de pessoas. Pouco disseminado nas médias e grandes empresas produtoras de bens materiais, é muito frequente na maior parte das pequenas e médias empresas, e mais ainda nos serviços, dos mais clássicos (comércio e hotelaria) aos mais modernos (comunicação). Constitui enfim a quase totalidade dessa espécie de trabalho em cadeia, digna de Tempos modernos de Charlie Chaplin, representado pelos centros de chamadas.
Quando Berlusconi se jactou de ter aumentado o número de empregos, aí incluindo este conjunto instável, não provocou nenhuma reacção, nem social nem política. E por que haveria? Se a Refundação Comunista e a Confederação Geral Italiana do Trabalho (CGIL) exigem a abolição da “lei 30”, o programa do futuro governo Prodi só prevê a sua alteração – no sentido onde a «flexibilidade» do trabalho preconizada por Treu, em conformidade com os imperativos europeus da “estratégia de Lisboa”, se teria transformado de facto em «precariedade». Isso quereria dizer, por exemplo, tornar o trabalho flexível «mais caro» ou compensá-lo, em período de desemprego, através de «amortizações sociais».
Independentemente da questão crucial, tendo em conta o desastre das contas públicas, de saber quem as pagará, estas “compensações” monetárias não alterarão nada à situação de mais de 2,5 milhões de trabalhadores a tempo parcial, intermitente ou interrompido: uma ausência total de perspectiva de mercado estável, e por conseguinte uma terrível incerteza profissional e pessoal. Como ter, nestas condições, uma casa e crianças?
Na Itália também, o mal‑estar é perceptível. Mas porque não deu lugar a uma revolta comparável àquela que a França conheceu? E porque é que este movimento não fez escola entre nós, no momento em que trazia uma grande vitória, forçando o governo a fazer marcha atrás? Várias razões o podem explicar.
Uma é estrutural: o trabalhador precário está, por definição, isolado. Dispersado no espaço e no tempo, tem poucas ocasiões de encontrar o seu semelhante. Sente-se ameaçado pelos imigrantes, quer clandestinos e prontos a aceitar tudo, quer regularizados mas dispostos a satisfazer-se com um salário menor ou horários mais pesados. Estando a licença de estadia dependente do facto de terem um contrato de trabalho, estes últimos são com efeito submetidos a uma chantagem permanente.
Quem diz isolamento diz também dificuldade para os sindicatos em contactar os precários, dar-lhes uma organização e uma identidade – excepto em alguns sectores industriais, de mão-de-obra geralmente masculina, nomeadamente no norte, e graças a certos trabalhadores corajosos que aderiram ao CGIL e dispõem da confiança dos seus camaradas. Esta tendência afirmar-se-á sem dúvida nas cidades de forte actividade industrial, material e imaterial: Brescia, por exemplo, conta agora com cento e quarenta mil imigrantes em um milhão de habitantes, o que – mesmo num Norte dominado pela Liga – acarreta uma mutação antropológica e social, que, com o apoio da câmara local do trabalho, permite aos trabalhadores reconhecer‑se e agrupar-se. É um dos raros casos onde a etnia se torna um “factor virtuoso”.
Promove‑se muito pouco na nossa sociedade pós‑fordista, que empurra pelo contrário para a desagregação. Imigrantes ou não, os precários, sobretudo nos serviços à pessoa – incluindo no comércio e numa grande parte do sector privado da saúde –, permanecem isolados e não‑organizados. Dir-se‑á: trata-se de pessoas profissionalmente frágeis. Não é verdade. Salvo se é procedente de uma grande faculdade que assegura um emprego aos melhores dos seus estudantes, todo aquele que terminou os seus estudos superiores deve desencantar como pode, pelos seus próprios meios ou com a ajuda de relações bem colocadas, postos instáveis nos quais estagnará – frequentemente até bem mais do que os 26 anos do CPE caro ao Sr. de Villepin –, para adquirir finalmente, passo a passo, um modesto “valor” no mercado de trabalho. Mesmo a faculdade e a universidade, que deveriam em teoria contratar sob concurso para contratos de duração indeterminada, mantêm um leque de professores precários, cujos interesses convergem menos com os dos professores que com os dos estudantes, como se viu também em França...
Aqui intervêm outros factores. A curto prazo, o facto de a “flexibilidade” ter adquirido lugar de palavra de ordem na esquerda moderada baralhou‑lhe o sentido: a ideia não provinha da burguesia mais moderna e de homens independentes da direita apoiados por ministros ex‑comunistas? Mesmo a esquerda o trata como conservador se não assume o risco de aceitar passar de um trabalho para outro, se permanece ligado a um emprego “do berço ao caixão”. As gerações do pós‑68 não consideravam o trabalho fixo como a face mais alienante do salariado?
Mas não é aí que reside a diferença entre a França e a Itália. É suficiente ter participado nas manifestações de Paris para sentir que esta consciência de ser cidadãos, e não mais seres adaptáveis e exploráveis à vontade, já não é própria de uma minoria de iluminados. Participa de um bom sentido colectivo que faz mexer as pessoas se são demasiado provocadas. Porquê em França, e não em Itália? Talvez resulte da formação tardia do nosso Estado‑nação (em 1860), da influência de uma classe dirigente conservadora laica ou conservadora simplesmente, da ausência de uma revolução do tipo da de 1789, da nossa transformação em território de passagem para as grandes potências (Espanha, França, Áustria), fragmentado em pequenos reinos e ducados. Além disso, a tradição de autonomia comunal enraizou-se entre a Idade Média e a Renascença. A extensão do poder temporal da Igreja marcou-nos de maneira indelével; interrompido pelo antifascismo e pela Resistência, impôs-se com uma roupagem mais bela, e nomeadamente desde 1989.
Em suma, tudo isso tornou o povo italiano mais especializado na arte de obedecer e de se desenrascar do que na de conquistar liberdades e direitos. A direita sabe que pode contar com este fundo obscuro da sociedade. A França dorme ou constrói barricadas. A Itália não dorme, grunhe de boa vontade, mas só muito raramente recorre às barricadas. E ainda menos após a queda do nosso curioso comunismo, que lhe ensinava contudo a bater‑se pelos seus direitos. Esta tradição perdeu até o seu nome, e o país parece já nem sequer ter consciência desta fronteira antifascista que, em França, leva a dizer “não” a Jean-Marie Le Pen.
COMPLEXO DE CULPABILIDADE
Há mais: a esquerda interiorizou um complexo de culpabilidade em relação ao balanço do comunismo e uma espécie de crença na fatalidade das “leis superiores da economia”, que a fez derivar – e não apenas no nosso país – até às margens do neoliberalismo. Quem ainda resiste? O sindicato afirma-o, mas deve fazer jus. Os partidos não o fazem de maneira explícita, excepto os de extrema esquerda; mas, para eles como para os altermundialistas, é um grande inimigo simbólico, que lhes parece impossível enfrentar no seu próprio país. É assim que só minorias muito politizadas se apropriaram da batalha contra o trabalho precário, inventando santo Precário como a festa do “May Day”, alternativa ao 1º de Maio dos sindicatos, e protestando por ocasião de eventos que contudo só atraem raros precários e que não incomodam os governos existentes.
Para lá destas mobilizações, reside uma incerteza – mesmo no movimento francês – sobre o mecanismo que produz a precariedade. Uma coisa é denunciá‑la como um efeito do pós‑fordismo e da globalização, outra coisa é jogar com as próprias contradições dos governos que se fixam como objectivo a redução dos direitos e do custo do trabalho, outra coisa é ainda, e sobretudo, produzir uma alternativa não fictícia e agir neste sentido.
Aconteceu o mesmo com o “não” à Constituição europeia: bloqueou esta, mas não foi capaz de desembocar numa solução de substituição. A maior parte dos meios de comunicação social do Hexágono – mas também italianos – viram nisso o resultado de um encontro nefasto entre “soberanismo” e populismo. Ora tratava‑se de uma rebelião contra a redução da França, em nome da competitividade, a um puro mercado, e do trabalho a uma simples mercadoria. Uma mesma reacção bloqueou a directiva Bolkestein.
Mas a flexibilidade de trabalho, que destrói o que se chama as “rigidezes” deste, enraíza-se profundamente na globalização e na exigência de sobrevivência das empresas. Não apenas face à ofensiva dos grandes produtores asiáticos, mas também dentro do próprio Ocidente. Como responder? É difícil crer no sonho do crescimento zero, que só teria sentido num planeta relativamente homogéneo ou unificado por um sopro de solidariedade actualmente inexistente. É igualmente difícil imaginar que o nacionalismo progressista da América Latina seja suficiente, mesmo se provoca uma primeira grande brecha no “consenso de Washington” e altera assim o cenário político mundial. Mas o cenário social? Quais são os eixos portadores do modo de viver e de produzir do qual decorre a redução do trabalho a uma mercadoria e – teria dito Kant – do homem a um instrumento? Aí está um terreno a esclarecer, incluindo nos nossos países.
[1] Ler Andrea Colombo, Porque tem a esquerda dificuldade em encarnar uma outra Itália, Le Monde diplomatique, Abril de 2006.
[2] Dita “co-co-co”, esta instituía uma verdadeira modalidade de emprego por intervalos. O seu título será completado por “a projecto”, sem mudar de natureza.
Rossana Rossanda
http://infoalternativa.org/europa/e043.htm
Na Itália, o movimento francês contra o Contrato Primeiro Emprego (CPE) surpreendeu. A imprensa – com excepção de diários explicitamente de esquerda como Il Manifesto e Liberazione –, se não o ocultou, em todo o caso subestimou‑o. Situados no centro esquerda, La Repubblica e Corriere della Sera preferiram, como o canal de televisão RAI 1, falar de uma revolta geracional, pondo em destaque os aspectos mais violentos – pelo menos até o movimento desestabilizar o governo francês.
Não só as imagens de chamas são mais fotogénicas, como permitem não se interrogar sobre o essencial. Desencadeada por jovens estudantes de liceu e universitários em luta contra a precariedade do trabalho que obstrui o seu futuro, esta revolta também arrastou, por um lado professores e mesmo presidentes de universidade, por outro os sindicatos por uma vez todos unidos. Quer dizer que envolveu diversas gerações.
Na Itália, todos estavam estupefactos, mas poucos se mostravam entusiastas. A coligação de centro‑esquerda teria podido servir-se do caso como um cavalo de batalha nas últimas semanas de uma campanha eleitoral difícil, mas não o fez. Tratava-se de uma questão escaldante, como todas as que dividem este agrupamento muito heteróclito [1]. Decidida a vencer a Casa das Liberdades de Silvio Berlusconi, Gianfranco Fini e Umberto Bossi, ela própria dividida entre um centro democrata‑cristão e a extrema direita (Liga do Norte e neofascistas), a União só podia agrupar‑se com base num programa moderado. E, consequentemente, não teve a coragem de dizer que na Itália a precariedade é já tão extensa como o teria sido na França se o CPE tivesse avançado. Visto de Roma, o erro do governo de Dominique de Villepin é ter chamado as coisas pelo seu nome, ter dito aos jovens que, até aos 26 anos, o seu contrato de trabalho seria instável e que poderia mesmo ser interrompido sem motivo.
Os autores da tristemente célebre “lei 30” italiana evitaram tal franqueza. Esta lei introduziu dissimuladamente uma quarentena de “formas” de trabalho “atípico” sem levantar protesto. Não tinha necessidade de exibir as pretensões do artigo 8 do CPE: para a grande maioria dos empregos em questão, não se prevê despedimento porque não existe sequer contratação formal. Aqui, é‑se contratado de maneira vaga e limitada, nas condições fixadas pela empresa ou pela agência intermediária e que é necessário aceitar. De facto, aceita‑se, na esperança de que, na competição com os outros, e se a conjuntura melhorar, o emprego, um dia, se tornará fixo.
UMA LEI AUREOLADA PELO MARTÍRIO
Tudo isso vale tanto para os jovens como para os quadragenários despedidos após vinte anos de trabalho ou mais, devido a uma crise da empresa, uma reestruturação ou uma deslocalização. Também eles se encontram, mas com os cabelos grisalhos e menos possibilidades de serem bem sucedidos, na mesma situação que um jovem à procura de um primeiro emprego...
Esta “reforma do mercado de trabalho” foi definida pelo primeiro governo de centro‑esquerda (1996‑2001) sob o nome de “pacote Treu”, do nome – Tiziano Treu – de um economista e sindicalista do movimento católico democrático que se tornou ministro do trabalho de Romano Prodi e Massimo D’Alema. Marco Biagi tinha apurado seguidamente os detalhes como consultor dos ministros (de centro-esquerda) do Trabalho Antonio Bassolino e Cesare Salvi, depois, após 2001, com o ministro dos Assuntos Sociais procedente da Liga, Roberto Maroni. Biagi foi abatido por sobreviventes das Brigadas Vermelhas, em Bolonha. É por isso que a “reforma” passou a ser a lei Biagi, assim aureolada pelo martírio, antes de levar o nome, doravante mais conhecido, de “lei 30”.
Numa dezena de anos e sob dois governos de orientação oposta, esta lei multiplicou as formas de trabalho de duração determinada, da «colaboração coordenada contínua» [2] a toda uma série de prestações temporárias e de teletrabalho. Como sempre, esta abundante tipologia releva da casuística. O trabalho precário diz respeito na Itália a cerca de 2,5 milhões de pessoas. Pouco disseminado nas médias e grandes empresas produtoras de bens materiais, é muito frequente na maior parte das pequenas e médias empresas, e mais ainda nos serviços, dos mais clássicos (comércio e hotelaria) aos mais modernos (comunicação). Constitui enfim a quase totalidade dessa espécie de trabalho em cadeia, digna de Tempos modernos de Charlie Chaplin, representado pelos centros de chamadas.
Quando Berlusconi se jactou de ter aumentado o número de empregos, aí incluindo este conjunto instável, não provocou nenhuma reacção, nem social nem política. E por que haveria? Se a Refundação Comunista e a Confederação Geral Italiana do Trabalho (CGIL) exigem a abolição da “lei 30”, o programa do futuro governo Prodi só prevê a sua alteração – no sentido onde a «flexibilidade» do trabalho preconizada por Treu, em conformidade com os imperativos europeus da “estratégia de Lisboa”, se teria transformado de facto em «precariedade». Isso quereria dizer, por exemplo, tornar o trabalho flexível «mais caro» ou compensá-lo, em período de desemprego, através de «amortizações sociais».
Independentemente da questão crucial, tendo em conta o desastre das contas públicas, de saber quem as pagará, estas “compensações” monetárias não alterarão nada à situação de mais de 2,5 milhões de trabalhadores a tempo parcial, intermitente ou interrompido: uma ausência total de perspectiva de mercado estável, e por conseguinte uma terrível incerteza profissional e pessoal. Como ter, nestas condições, uma casa e crianças?
Na Itália também, o mal‑estar é perceptível. Mas porque não deu lugar a uma revolta comparável àquela que a França conheceu? E porque é que este movimento não fez escola entre nós, no momento em que trazia uma grande vitória, forçando o governo a fazer marcha atrás? Várias razões o podem explicar.
Uma é estrutural: o trabalhador precário está, por definição, isolado. Dispersado no espaço e no tempo, tem poucas ocasiões de encontrar o seu semelhante. Sente-se ameaçado pelos imigrantes, quer clandestinos e prontos a aceitar tudo, quer regularizados mas dispostos a satisfazer-se com um salário menor ou horários mais pesados. Estando a licença de estadia dependente do facto de terem um contrato de trabalho, estes últimos são com efeito submetidos a uma chantagem permanente.
Quem diz isolamento diz também dificuldade para os sindicatos em contactar os precários, dar-lhes uma organização e uma identidade – excepto em alguns sectores industriais, de mão-de-obra geralmente masculina, nomeadamente no norte, e graças a certos trabalhadores corajosos que aderiram ao CGIL e dispõem da confiança dos seus camaradas. Esta tendência afirmar-se-á sem dúvida nas cidades de forte actividade industrial, material e imaterial: Brescia, por exemplo, conta agora com cento e quarenta mil imigrantes em um milhão de habitantes, o que – mesmo num Norte dominado pela Liga – acarreta uma mutação antropológica e social, que, com o apoio da câmara local do trabalho, permite aos trabalhadores reconhecer‑se e agrupar-se. É um dos raros casos onde a etnia se torna um “factor virtuoso”.
Promove‑se muito pouco na nossa sociedade pós‑fordista, que empurra pelo contrário para a desagregação. Imigrantes ou não, os precários, sobretudo nos serviços à pessoa – incluindo no comércio e numa grande parte do sector privado da saúde –, permanecem isolados e não‑organizados. Dir-se‑á: trata-se de pessoas profissionalmente frágeis. Não é verdade. Salvo se é procedente de uma grande faculdade que assegura um emprego aos melhores dos seus estudantes, todo aquele que terminou os seus estudos superiores deve desencantar como pode, pelos seus próprios meios ou com a ajuda de relações bem colocadas, postos instáveis nos quais estagnará – frequentemente até bem mais do que os 26 anos do CPE caro ao Sr. de Villepin –, para adquirir finalmente, passo a passo, um modesto “valor” no mercado de trabalho. Mesmo a faculdade e a universidade, que deveriam em teoria contratar sob concurso para contratos de duração indeterminada, mantêm um leque de professores precários, cujos interesses convergem menos com os dos professores que com os dos estudantes, como se viu também em França...
Aqui intervêm outros factores. A curto prazo, o facto de a “flexibilidade” ter adquirido lugar de palavra de ordem na esquerda moderada baralhou‑lhe o sentido: a ideia não provinha da burguesia mais moderna e de homens independentes da direita apoiados por ministros ex‑comunistas? Mesmo a esquerda o trata como conservador se não assume o risco de aceitar passar de um trabalho para outro, se permanece ligado a um emprego “do berço ao caixão”. As gerações do pós‑68 não consideravam o trabalho fixo como a face mais alienante do salariado?
Mas não é aí que reside a diferença entre a França e a Itália. É suficiente ter participado nas manifestações de Paris para sentir que esta consciência de ser cidadãos, e não mais seres adaptáveis e exploráveis à vontade, já não é própria de uma minoria de iluminados. Participa de um bom sentido colectivo que faz mexer as pessoas se são demasiado provocadas. Porquê em França, e não em Itália? Talvez resulte da formação tardia do nosso Estado‑nação (em 1860), da influência de uma classe dirigente conservadora laica ou conservadora simplesmente, da ausência de uma revolução do tipo da de 1789, da nossa transformação em território de passagem para as grandes potências (Espanha, França, Áustria), fragmentado em pequenos reinos e ducados. Além disso, a tradição de autonomia comunal enraizou-se entre a Idade Média e a Renascença. A extensão do poder temporal da Igreja marcou-nos de maneira indelével; interrompido pelo antifascismo e pela Resistência, impôs-se com uma roupagem mais bela, e nomeadamente desde 1989.
Em suma, tudo isso tornou o povo italiano mais especializado na arte de obedecer e de se desenrascar do que na de conquistar liberdades e direitos. A direita sabe que pode contar com este fundo obscuro da sociedade. A França dorme ou constrói barricadas. A Itália não dorme, grunhe de boa vontade, mas só muito raramente recorre às barricadas. E ainda menos após a queda do nosso curioso comunismo, que lhe ensinava contudo a bater‑se pelos seus direitos. Esta tradição perdeu até o seu nome, e o país parece já nem sequer ter consciência desta fronteira antifascista que, em França, leva a dizer “não” a Jean-Marie Le Pen.
COMPLEXO DE CULPABILIDADE
Há mais: a esquerda interiorizou um complexo de culpabilidade em relação ao balanço do comunismo e uma espécie de crença na fatalidade das “leis superiores da economia”, que a fez derivar – e não apenas no nosso país – até às margens do neoliberalismo. Quem ainda resiste? O sindicato afirma-o, mas deve fazer jus. Os partidos não o fazem de maneira explícita, excepto os de extrema esquerda; mas, para eles como para os altermundialistas, é um grande inimigo simbólico, que lhes parece impossível enfrentar no seu próprio país. É assim que só minorias muito politizadas se apropriaram da batalha contra o trabalho precário, inventando santo Precário como a festa do “May Day”, alternativa ao 1º de Maio dos sindicatos, e protestando por ocasião de eventos que contudo só atraem raros precários e que não incomodam os governos existentes.
Para lá destas mobilizações, reside uma incerteza – mesmo no movimento francês – sobre o mecanismo que produz a precariedade. Uma coisa é denunciá‑la como um efeito do pós‑fordismo e da globalização, outra coisa é jogar com as próprias contradições dos governos que se fixam como objectivo a redução dos direitos e do custo do trabalho, outra coisa é ainda, e sobretudo, produzir uma alternativa não fictícia e agir neste sentido.
Aconteceu o mesmo com o “não” à Constituição europeia: bloqueou esta, mas não foi capaz de desembocar numa solução de substituição. A maior parte dos meios de comunicação social do Hexágono – mas também italianos – viram nisso o resultado de um encontro nefasto entre “soberanismo” e populismo. Ora tratava‑se de uma rebelião contra a redução da França, em nome da competitividade, a um puro mercado, e do trabalho a uma simples mercadoria. Uma mesma reacção bloqueou a directiva Bolkestein.
Mas a flexibilidade de trabalho, que destrói o que se chama as “rigidezes” deste, enraíza-se profundamente na globalização e na exigência de sobrevivência das empresas. Não apenas face à ofensiva dos grandes produtores asiáticos, mas também dentro do próprio Ocidente. Como responder? É difícil crer no sonho do crescimento zero, que só teria sentido num planeta relativamente homogéneo ou unificado por um sopro de solidariedade actualmente inexistente. É igualmente difícil imaginar que o nacionalismo progressista da América Latina seja suficiente, mesmo se provoca uma primeira grande brecha no “consenso de Washington” e altera assim o cenário político mundial. Mas o cenário social? Quais são os eixos portadores do modo de viver e de produzir do qual decorre a redução do trabalho a uma mercadoria e – teria dito Kant – do homem a um instrumento? Aí está um terreno a esclarecer, incluindo nos nossos países.
[1] Ler Andrea Colombo, Porque tem a esquerda dificuldade em encarnar uma outra Itália, Le Monde diplomatique, Abril de 2006.
[2] Dita “co-co-co”, esta instituía uma verdadeira modalidade de emprego por intervalos. O seu título será completado por “a projecto”, sem mudar de natureza.
Rossana Rossanda
http://infoalternativa.org/europa/e043.htm
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