terça-feira, setembro 26, 2006

Porque tem a esquerda dificuldade em encarnar uma outra Itália

A Itália terá conhecido uma das mais confusas campanhas eleitorais da sua história recente. É certo que, a quinze dias do escrutínio de 9 e 10 de Abril, a União, que reúne todas as forças que se opõem a Silvio Berlusconi, reforçou o seu avanço em relação à Casa das Liberdades, dirigida pelo “Cavaliere”. Mas os debates não foram minimamente esclarecedores quanto à orientação que uma oposição vitoriosa poderá adoptar, nem sequer quanto à paisagem política que, a mais longo prazo, poderá suceder ao berlusconismo.

A 11 de Fevereiro último, no próprio dia da dissolução do Parlamento e da convocação das próximas eleições legislativas dos dias 9 e 10 de Abril, o antigo presidente da Comissão Europeia Romano Prodi, candidato da oposição italiana, apresentou solenemente o programa da União, a sua coligação de centro-esquerda. O texto em questão, fruto do trabalho de doze grupos de estudo – um por cada dos principais pontos do programa – é volumoso: são quase trezentas páginas. Para os responsáveis do centro-esquerda, trata-se de apresentar as grandes linhas do futuro governo, caso, em conformidade com o que apontam as sondagens, o centro­‑esquerda vença.

Antes da campanha, a acusação formulada com mais frequência à coligação de Prodi por parte da maioria de centro­‑direita, a Casa das Liberdades, era justamente a de que ela não tinha um projecto comum. Segundo o presidente do Conselho Silvio Berlusconi, a União – uma coligação que junta onze partidos, composta por uma ala moderada maioritária e por uma forte minoria radical – estaria demasiado dividida sobre as escolhas fundamentais para constituir uma força credível. O seu único cimento seria a hostilidade relativamente ao chefe do governo e líder da direita.

Não sendo desprovida de fundamento, a acusação é tão mais acutilante quanto a Itália, que teme acima de tudo a instabilidade, não esqueceu a crise de 1998 - quando a Refundação Comunista, o partido mais forte da esquerda radical, agora novamente aliada com Prodi, fez cair o governo deste último. A decisão de abrir a campanha eleitoral com a apresentação do programa da União tinha então como objectivo privar Berlusconi do seu mais forte argumento.

No entanto, este “golpe” falhou o seu objectivo. Claro que é injusto pretender que o programa laboriosamente concebido pela esquerda não diz nada, como afirmaram numerosos editorialistas. Este texto muito longo desenha, em traços largos, uma estratégia geral muito diferente daquela em que se apoia desde há cinco anos a acção do governo de Berlusconi. O programa propõe uma política social mais avançada e mais corajosa do que as medidas, muito prudentes, postas em prática pelos governos de centro-esquerda durante o quinquénio 1996­‑2001. Mas é necessário reconhecer que a coligação não cumpriu a sua promessa de fazer escolhas claras, precisas e unitárias sobre todas as questões importantes.

Na procura de um equilíbrio entre as exigências, muitas vezes opostas, dos partidos da União, o programa recorre a fórmulas bizantinas. Assim, entre a sua ala moderada, favorável à retirada das tropas italianas do Iraque após um acordo com as autoridades deste país e os americanos, e a sua ala radical, que pede uma retirada imediata no caso de vitória eleitoral, a coligação optou por uma fórmula ambígua: «anúncio imediato de retirada». A mesma opção quanto à educação: uma vez que a ala esquerda exige a revogação total da reforma berlusconiana e a ala moderada uma “correcção”, o programa acaba por estipular de maneira enigmática que a coligação, «marcando uma radical descontinuidade com as orientações e as escolhas do centro­‑direita, vai revogar as leis em vigor que estão em contradição com [o seu] programa».

Noutros domínios é ainda pior. A tentativa de propor uma lei para melhorar a situação dos casais não casados, nomeadamente homossexuais, falhou em razão da oposição irredutível de Francesco Rutelli, responsável do partido Margarida, o segundo da União, herdeiro da antiga Democracia Cristã. Este defendeu, ponto por ponto, todas as posições do Vaticano e as do poderoso presidente da Conferência Episcopal Italiana, o cardeal Camillo Ruini. Conclusão: nada foi decidido, as discussões serão retomadas após as eleições.

Ainda mais incómoda é a questão do comboio de alta velocidade no troço previsto para o vale de Susa. Toda a população local se insurgiu contra a linha de TGV Lyon-Turim, com o apoio dos partidos radicais da União, enquanto que as formações moderadas se lhe declaram favoráveis. Na vã esperança de esconder este desacordo, o programa da União não menciona o problema. Este singular esquecimento não escapou a Il Sole/24 Ore, diário da Confindustria, a confederação patronal italiana, que imediatamente o denunciou. Desejoso de tranquilizar os industriais, Prodi evocou um «equívoco» e garantiu que o TGV será construído. Alguns minutos depois, era desmentido pelos três responsáveis da ala radical, o secretário da Refundação Comunista, Fausto Bertinotti, o dos Verdes, Alfonso Pecoraro Scanio, e o do Partido dos Comunistas Italianos (PDCI), Oliviero Diliberto. O incidente forneceu à direita um excelente argumento de propaganda: ele seria a prova das divisões que persistem dentro da União.

Às contradições do centro-esquerda e à falta de jeito com a qual este lidou com as mesmas juntou­‑se uma ofensiva mediática de Berlusconi sem precedentes. Nas semanas que precederam o início da campanha, o presidente do Conselho invadiu literalmente o pequeno ecrã e as rádios, passando frequentemente no mesmo dia de um cenário a outro. Com uma perigosa eficácia: a corrida que, há apenas três meses, parecia à partida ganha pela União, dir-se-ia de novo em aberto, em inícios de Fevereiro, aquando do início oficial da campanha eleitoral. Se o centro-esquerda mantinha a vantagem, a actual maioria tinha recuperado pontos e encontrava­‑se em melhor posição.

UMA AMBIGUIDADE ESTRUTURAL

A incapacidade da União de ultrapassar as suas divisões e de clarificar as ambiguidades que daí resultam é, em parte, natural e inevitável. A coligação junta onze partidos, dos quais apenas três – os Democratas de Esquerda (DS), a Margarida e a Refundação Comunista – poderão ultrapassar o limiar mínimo de votos requeridos para ficarem representados no Parlamento. Mas as forças maioritárias têm uma identidade forte e detêm posições locais sólidas. A aliança que Prodi dirige vai de um partido herdeiro da antiga direita democrata-cristã, como a União dos Democratas pela Europa (Udeur) de Clemente Mastella, até formações de extrema-esquerda, como a Refundação – que apresenta também na sua lista representantes do movimento alterglobalista.

Todas estas formações têm, é evidente, um denominador comum: a vontade de derrotar Berlusconi, que coloca a sua posição política ao serviço das suas próprias empresas e não hesita em fazer votar leis para escapar, com os seus colaboradores, à justiça [1]. Mas a plataforma comum da União vai mais longe: por mais heteróclito que pareça, o centro­‑esquerda está verdadeiramente unido, desde 2001, na oposição de fundo à política da direita. Em contrapartida, sobre muitas questões que estão na ordem do dia, os partidos da União divergem, ou chegam mesmo a opor-se.

Teoricamente, a hegemonia da ala esquerda deveria ser total, sendo o principal partido da coligação os Democratas de Esquerda, herdeiros directos do antigo Partido Comunista Italiano (PCI), que foi durante quarenta anos o mais poderoso do Ocidente. Mas, mais de quinze anos após o abandono de qualquer referência ao comunismo, a principal formação da esquerda italiana não parou de se deslocar para o centro, rivalizando com os outros para conquistar o eleitorado moderado. No entanto, subsistem no interior do antigo PCI pulsões mais radicais. Esta ambiguidade estrutural alimenta evidentemente a confusão geral.

Para compreender os obstáculos com os quais choca o centro­‑esquerda, é também necessário evocar uma razão contingente: a nova lei eleitoral, que a direita impôs no último minuto. Esta legislação procura combinar duas opções absolutamente contrárias: de um lado, o regresso à proporcionalidade quase integral; do outro, o salvamento do bipolarismo que constrange os partidos a coligarem-se. Tratando-se da eleição da Câmara dos Deputados, a lei fixa para as formações que se apresentem sozinhas 4 por cento como limiar mínimo – mas apenas 2 por cento para as que façam parte de uma coligação que tenha um candidato ao cargo de primeiro­‑ministro e seja fundada num programa comum. A coligação que ganhar receberá um “prémio de maioria”, isto é, terá automaticamente 53 por cento dos lugares do Parlamento.

Este sistema parece concebido para fazer rebentar os conflitos latentes no seio da União: o regresso à proporcionalidade empurra de facto as formações de perfil mais acentuado a exacerbarem os aspectos mais conflituais, a fim de assegurarem visibilidade e, ao mesmo tempo, um futuro político. Simultaneamente, a necessidade de formar coligações obriga a construir alianças muito vastas, cujas componentes estão condenadas a opor-se para não desaparecerem.

Um outro assunto embaraça a União: o processo, no mínimo confuso, de unificação entre os dois principais partidos da coligação, os Democratas de Esquerda e a Margarida. Prodi empurrou, naturalmente, nesse sentido: candidato de toda a coligação, o antigo presidente da Comissão Europeia não tem nenhum partido para o apoiar nos momentos difíceis. E a sua experiência passada fê-lo medir os limites desta situação. Pagou por ela um preço alto em 1998 quando, na sequência de uma repentina crise da sua maioria, o secretário dos Democratas de Esquerda de então, Massimo D’Alema, tomou o seu lugar na presidência do Conselho italiano. A unificação dos Democratas de Esquerda e da Margarida precavê-lo-ia contra uma aventura do mesmo género, dando lugar a um grande partido da esquerda moderada, do qual ele seria o dirigente natural.

As pressões de Prodi obrigaram os Democratas de Esquerda, mas sobretudo a Margarida, inicialmente hesitante, a avançar nesta direcção, com a constituição de uma lista única para a eleição da Câmara dos Deputados. Os dois partidos apresentam-se todavia divididos na eleição do Senado. Um passo em frente, dois passos atrás... A competição entre os dois partidos, longe de se reduzir, pelo contrário reforçou-se, tendo como fito o controlo do eventual partido único. Aliás, o responsável da Margarida, Rutelli, não esconde a ambição de seduzir os votos dos desiludidos eleitores do centro-direita de forma a recuperar um dia – não tão longínquo – o eleitorado da Forza Itália.

Os analistas que, quase todos, prevêem, em caso de vitória do centro-esquerda, fortes tensões políticas no seu seio têm certamente razão. Mas a ameaça à estabilidade da nova afiança virá mais dos centristas da Margarida e da Udeur do que dos comunistas da Refundação, já que Bertinotti se esmera em evidenciar uma enorme lealdade em relação a Prodi. Desde há dois anos, em cada situação de risco de afrontamento, ele fez prova de uma grande flexibilidade – ao ponto de excluir das suas listas um candidato trotskista, cujas declarações tinham sido julgadas «incompatíveis» com as posições da aliança.

O Partido da Refundação Comunista sabe muito bem que não pode reeditar o golpe de 1998 – quando, ao sair da coligação, provocou a demissão de Prodi –, sob pena de ficar ostracizado e condenado a guetizar­‑se, ou mesmo a desaparecer. Depois da eventual vitória, mostrar-se-á sem dúvida como o partido mais fiel à aliança. Não é esse o caso dos centristas: Rutelli aposta na explosão do centro-direita e no desaparecimento da Forza Itália, herdeira de uma boa parte dos votos da antiga Democracia Cristã. O partido-empresa de Berlusconi, segundo espera, não sobreviverá a uma saída da cena política do seu fundador e único líder. Para atrair estes votos, a Margarida poderá denunciar a aliança com a ala radical da União e procurar um acordo com o sector mais católico da Casa das Liberdades, a União do Centro (UDC), dirigida pelo presidente da Câmara dos Deputados, Pierferdinando Casini.

É impossível, em contrapartida, medir desde já as consequências de uma derrota do centro­‑esquerda. Só há uma certeza: estas serão muito mais dolorosas do que em 2001. Na altura, um tal resultado parecia provável, não fazendo a Refundação Comunista parte da aliança. Desta vez, pelo contrário, a União junta de facto todos os partidos que se opõem a Berlusconi e espera vencer, em perfeita continuidade com o sucesso obtido no escrutínio europeu de 2004 e nas eleições regionais de 2005. A esquerda teria as maiores dificuldades em se recompor de uma tal decepção e sofreria um traumatismo profundo.

Trata-se contudo de um perigo que, apesar de não estar totalmente conjurado, foi ficando mais distante com o passar das semanas. A recuperação do “Cavaliere”, essencialmente resultante da sua omnipresença mediática, registou no início de Março uma evidente paragem. Num contexto de avanço (ligeiro) do centro­‑esquerda, a clara vitória de Prodi sobre Berlusconi no primeiro duelo televisivo de 14 de Março permitiu ao primeiro dar uma imagem de dirigente sério e responsável. Ainda assim, só conseguirá realmente vencer se convencer os italianos da coesão dos anti-Berlusconi em torno de uma política verdadeiramente nova...

[1] Pierre Musso, M. Silvio Berlusconi trébuche sur les médias, Le Monde diplomatique, Fevereiro de 2004. [ed. brasileira: Um “golpe de Estado” na mídia?]
Andrea Colombo
http://infoalternativa.org/europa/e046.htm

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