sábado, outubro 28, 2006

A Coca-Cola, a Pepsi e as políticas de segurança alimentar

Numa democracia, uma proibição de produtos e actividades prejudiciais é uma expressão das liberdades e direitos dos cidadãos. As proibições protegem os cidadãos de perigos contra a saúde e o meio­ ambiente. É por isso foi proibido o tabaco nos lugares públicos. É por isso que as substâncias com ozono empobrecido foram proibidas sob o Protocolo de Montreal. É por isso que a Convenção de Basileia proibiu o comércio de resíduos tóxicos e perigosos.
A Coca­‑Cola e a Pepsi juntaram-se com firmeza ao grupo de produtos tóxicos e perigosos que é preciso proibir para proteger a saúde dos cidadãos e o meio­ ambiente. No dia 22 de Agosto, a campanha “Coca-Cola e Pepsi saiam da Índia” intensificou o seu movimento para proibir a Coca-Cola e a Pepsi com um dia de acções “Proibir a Coca­‑Cola e a Pepsi”. Kerala proibiu as Colas. Karnataka, Madhya Pradesh, Gujarat e Rajastão proibiram os refrigerantes nas instituições educativas e nas cantinas do estado. E as zonas livres de Coca-Cola e Pepsi estão a estender­‑se por todo o país.

ROUBAR ÁGUA, PRODUZIR SEDE

Existem poderosas razões ambientais e de direitos humanos para proibir a produção de refrigerantes na Índia. Cada fábrica de Coca­‑Cola e Pepsi extrai 1-2 milhões de litros de água por dia. Se cada fábrica extrai 1­‑2 milhões de litros por dia e há 90 fábricas, a extracção diária encontra-se entre 90-180 milhões de litros. Isto cobriria as necessidades diárias de água potável de milhões de pessoas. Cada litro de refrigerantes destrói e contamina 10 litros de água. E nos lodos tóxicos produzidos encontraram-se altos níveis de cádmio e chumbo (Conselho de Controle da Contaminação de Kerala, Centro Hazard).
A exposição prolongada ao cádmio tem o potencial de causar efeitos como disfunção renal, danos nos ossos, no fígado e no sangue. O chumbo afecta o sistema nervoso central, os rins, o sangue e o sistema cardiovascular. As mulheres de uma pequena aldeia de Kerala conseguiram fechar uma fábrica da Coca­‑Cola. «Quando bebeis Coca-Cola, bebeis o sangue do povo», afirmou Mylamma, a mulher que iniciou o movimento contra a Coca-Cola em Plachimada. A fábrica da Coca-Cola em Plachimada foi autorizada em Março de 2000 a produzir 1.224.000 garrafas de produtos da Coca-Cola por dia e recebeu do panchayat [conselho municipal] uma licença provisória para instalar uma bomba motorizada de extracção de água. No entanto, a companhia começou a extrair ilegalmente milhões de litros de água limpa. De acordo com a gente local, a Coca­‑Cola extraía 1,5 milhões de litros por dia. O nível de água começou a descer, baixando de 150 para 500 pés abaixo da superfície terrestre. Os membros das tribos e os camponeses lamentavam-se de que o armazenamento e o abastecimento de água estavam a ser afectados negativamente pela instalação indiscriminada de poços de perfuração para a captação de águas subterrâneas, ocasionando graves consequências para as colheitas. Os poços também estavam a ameaçar as fontes tradicionais de água potável, tanques e reservatórios de água, vias fluviais e canais. Quando a companhia falhou em corresponder à solicitação de detalhes do panchayat, recebeu uma notificação judicial e a licença foi­‑lhe cancelada. A Coca-Cola tentou sem sucesso subornar o presidente do panchayat, A. Krishnan, com 300 milhões de rupias.

Não só a Coca-Cola roubava a água da comunidade local, como também contaminava aquilo de que não se apropriava. A companhia depositava desperdícios no exterior da fábrica que, na estação das chuvas, se disseminavam pelos arrozais, canais e poços, ocasionando graves perigos para a saúde. Como resultado deste despejo, 260 poços perfurados providenciados pelas autoridades públicas para a água potável e para as instalações agrícolas, tinham secado. A Coca-Cola também estava a bombear águas residuais para poços secos nas dependências da companhia. Em 2003, a autoridade médica do distrito informou as pessoas de Plachimada que a sua água era imprópria para beber. As mulheres, que já sabiam que a sua água era tóxica, tinham que caminhar milhas para conseguir água. A Coca-Cola tinha criado escassez de água numa região que tinha água abundante ao verter lodos residuais contendo grandes quantidades de chumbo, cromo e cádmio.

As mulheres de Plachimada não iam permitir esta hidropirataria. Em 2002, iniciaram uma dharna (sentada) à porta da Coca-Cola. Para comemorar o primeiro aniversário da sua agitação, juntei-me a elas no Dia da Terra de 2003. No dia 21 de Setembro de 2003, uma enorme marcha lançou um ultimato à Coca-Cola. Em Janeiro de 2004, a Conferência Mundial da Água levou activistas de todo o mundo a Plachimada para apoiar os activistas locais. Um movimento iniciado por mulheres adivasi locais tinha desencadeado uma onda nacional e mundial de energia popular em seu apoio.

Hoje, a fábrica está fechada e foram iniciados movimentos noutras fábricas.

Os gigantes da Cola estão a agravar a crise da água já experimentada pelas pessoas nas zonas rurais.

Só existe uma medida e um padrão no problema do uso do água: o direito fundamental à água limpa, segura e adequada não pode ser violado. E a Coca­‑Cola e a Pepsi estão a violar este direito. É por isso que a extracção de milhões de litros de água deve ser proibida. No caso de Plachimada, o Tribunal Supremo de Kerala tinha deliberado que «a água subterrânea pertence às pessoas. O Estado e suas instituições deverão actuar como fideicomissários desta grande riqueza. O Estado tem o dever de proteger as águas subterrâneas contra a exploração excessiva e a passividade do Estado neste aspecto equivalerá a infringir o direito à vida das pessoas garantido no artigo 21 da Constituição da Índia. As águas subterrâneas [que se encontram] sob a terra do 2º acusado, não lhe pertencem.

As águas subterrâneas pertencem a todos e o 2º acusado não tem direito a reclamar uma grande parte delas e o Governo não tem poder para autorizar um ente privado a extrair uma tão grande quantidade de água subterrânea, a qual é uma propriedade, que mantém em fideicomisso».

O princípio da água como um bem público e uma propriedade comum é o que conduziu à proibição da extracção de água em Plachimada. Este é o princípio que conduziu as comunidades locais de 55 fábricas da Coca­‑Cola e da Pepsi a processar essas corporações no dia 20 de Janeiro de 2005 por roubo de um recurso comunitário.

ROUBAR SAÚDE, PRODUZIR DOENÇAS

A luta contra a Coca­‑Cola é também uma luta pela saúde. Na Coca­‑Cola e na Pepsi foram encontrados resíduos de pesticidas. No entanto, os refrigerantes são perigosos mesmo sem pesticidas.

Os refrigerantes têm um valor nutritivo nulo comparados com as nossas bebidas autóctones como nimbu pani, lassi, panna, sattu. Os gigantes dos refrigerantes, através das suas agressivas campanhas publicitárias, conseguiram fazer com que a juventude da Índia se tornasse envergonhada da nossa cultura alimentícia autóctone, apesar do seu valor nutritivo e segurança. Monopolizaram o mercado da sede, comprando empresas autóctones como a Parle e desalojando as bebidas frias tradicionais feitas em casa ou na indústria artesanal. Mas o que a Coca­‑Cola e a Pepsi vendem é uma mistura tóxica colorida, com valores anti-nutritivos.

O Ministério da Saúde da Índia pediu às estrelas de cinema que não apoiem a Coca­‑Cola e a Pepsi por causa dos perigos do açúcar nos refrigerantes, implicados na obesidade e na diabetes, epidémicas entre os jovens. Marion Nestlé chamou aos refrigerantes a quinta­‑essência da «comida rasca», alta em calorias mas baixa em nutrientes. O Centro para a Ciência e o Ambiente no Interesse Público chamou aos refrigerantes «açúcar líquido». Uma lata de 12 onças pode conter 1,5 onças de açúcar.

Cada vez mais, os gigantes dos refrigerantes estão a utilizar o High Fructose Corn Syrup [Xarope de Cereais rico em frutose] (HFCS). Contudo, o Ministério da Saúde não avaliou o problema dos riscos para a saúde do HFCS e dos riscos para a saúde dos alimentos GM no caso de os cereais utilizados serem transgénicos. Se o Governo quer que os cidadãos tenham adoçantes seguros, deveria proibir o HFCS e encorajar os cultivadores de cana de açúcar na Índia a produzirem de forma orgânica. O Governo Central está claramente a fracassar na protecção da saúde dos cidadãos indianos.

Composição de nutrientes dos refrigerantes, para 12 onças, em comparação com o sumo de laranja e o leite magro:
O açúcar nos refrigerantes não é um açúcar natural, a sacarose, mas xarope de cereais rico em frutose. Na Índia começaram a ser montadas fábricas para a produção de xarope e, se não forem promulgadas normas estritas, a dieta indiana poderia seguir o caminho da dieta estadunidense, com o xarope de cereais rico em frutose a provocar resistência à insulina. Ao contrário da sacarose, a frutose não passa por alguns dos passos metabólicos intermediários críticos, mas é desviada para o fígado onde imita a capacidade da insulina de levar o fígado a libertar ácidos gordos na corrente sanguínea. Alguns estudos descobriram que as dietas com frutose têm mais 31% de triglicéridos que as dietas com sacarose. A frutose também baixa a taxa de oxidação dos ácidos gordos. P. A. Mayes, um cientista da Universidade de Londres, concluiu que a absorção a longo prazo de frutose provoca adaptações de enzimas que aumentam a formação de gordura por lipogénese e a formação de VLDL (colesterol maligno) conduzindo à trigliceridemia (demasiados triglicéridos no sangue), menor tolerância à glicose e hiperinsulinemia (demasiada insulina no sangue). Cientistas da Universidade da Califórnia em Berkeley também confirmaram que o uso excessivo de frutose estava a levar a dieta norte­‑americana para mudanças metabólicas que facilitam o armazenamento de gorduras.

A Índia não pode se permitir estes altos custos para a saúde de uma dieta de frutose que também tem outros custos nutricionais como efeitos secundários. Quando se usam cereais para produzir xarope de frutose, aos pobres é negado um alimento de primeira necessidade. 30% dos cereais já são utilizados como matéria prima na produção de rações para o gado e frutose, e são desviados da alimentação humana. Além disso, a substituição de adoçantes mais saudáveis derivados da cana de açúcar como o gur e o khandsari priva os camponeses de rendimentos e meios de subsistência. O impacto das colas na cadeia alimentar e na economia é por isso enorme e não termina na garrafa.

Mas, em qualquer caso, o que está no interior da garrafa não é apropriado para uma dieta saudável. É bem sabido que o consumo de refrigerantes contribui para a deterioração da dentadura e os adolescentes que consomem refrigerantes apresentam um risco 3 a 4 vezes maior de fracturas nos ossos do aqueles que não os bebem. Os refrigerantes estão a tornar-se na fonte principal de cafeína na dieta das crianças, com cada lata de 12 onças de cola contendo cerca de 45 miligramas de cafeína.

E existem outros ingredientes na mistura tóxica: um composto anti-congelante – o glicol de etileno – para uma refrigeração mais baixa, e ácido fosfórico para lhe dar um pouco de força. As pessoas estão a consumir 4 Kg de produtos químicos por ano com base em 20,6 milhões de toneladas de produtos químicos na forma de corantes artificiais, condimentos, etc. (Prashant Bhushan, Soft drinks – A toxic­‑brew). Por isso, não devíamos estar preocupados só com os pesticidas, mas com as misturas tóxicas em que os nossos filhos estão a viciar­‑se graças aos gigantes da cola.

A outra violação da Coca­‑Cola e da Pepsi é a violação do direito à saúde. O ácido fosfórico e o dióxido de carbono tornam os refrigerantes extremamente ácidos, razão pela qual são eficazes como limpadores de retretes. Não aprovaríamos que os nossos filhos bebessem limpadores de retretes, contudo os refrigerantes industriais, que têm as mesmas propriedades ácidas, vendem­‑se livremente.

É por causa destes perigos que escolas nos Estados Unidos proibiram os refrigerantes. É por causa destes perigos que 10.000 escolas e faculdades da Índia se declararam espaços livres de Coca­‑Cola e Pepsi. É por causa destes perigos que o governo de Kerala proibiu as colas. É por causa destes perigos que o refeitório do Parlamento Indiano não serve Coca­‑Cola nem Pepsi. E é por causa destes perigos que representantes da Pepsi admitiram que as suas bebidas não são saudáveis para as crianças.

No entanto, o Governo da União está a vacilar sob a pressão das Corporações e a pressão dos EUA. O Ministério da Saúde da União questionou o estudo do Centro para a Ciência e Ambiente sobre os resíduos de pesticidas da Coca­‑Cola e da Pepsi citando literalmente outro estudo encomendado pela Coca-Cola. Claramente, a saúde dos cidadãos não pode ser posta nas mãos de um governo que estabelece normas arbitrárias que garantem a segurança da obtenção de enormes lucros à Coca­‑Cola e à Pepsi, mas não garantem a segurança para a saúde dos cidadãos.

O Ministério da Saúde anunciou que, por Janeiro de 2007, haverá normas de segurança para a Coca­‑Cola e a Pepsi. No entanto, a Coca­‑Cola e a Pepsi não se tornarão seguras após Janeiro de 2007. Há duas razões pelas quais a dependência exclusiva do estabelecimento de normas não é fiável para garantir que os cidadãos disponham de produtos saudáveis e seguros. Em primeiro lugar, as decisões governamentais centralizadas podem ser facilmente influenciadas pelos interesses das corporações, como constatámos na resposta do governo ao debate no Parlamento. Há uma ciência corporativa e há uma ciência pública. Numa época de domínio das corporações, a ciência corporativa dominará. Em segundo lugar, as normas, pela sua própria natureza, são redutoras. As normas serão estabelecidas para os resíduos de pesticidas baseadas apenas nos níveis permitidos em ingredientes como a água e o açúcar, sem ter em conta os efeitos prejudiciais do produto sobre a saúde das pessoas e o meio­ ambiente. Precisamos de uma segurança alimentar holística, não de pseudo normas de segurança manipuladas e redutoras que protegem as corporações e não as pessoas.

As próprias observações do Ministério de Saúde tornam claro que as “normas de segurança” redutoras não tornam “seguras” a Coca­‑Cola e a Pepsi. Enquanto declarava que os resíduos de pesticidas se encontravam «dentro dos limites de segurança» em garrafas testadas em Mysore e Gujarat, também afirmou que as colas eram comida rasca e não eram seguras para a saúde. A segurança é mais do que normas relativas aos resíduos de pesticidas. E, como comprovámos, laboratórios diferentes estão a dar resultados diferentes.

Proibir ou não proibir a Coca­‑Cola e a Pepsi não pode e não deveria depender só de se um laboratório concreto não encontra nos refrigerantes níveis particulares de resíduos pesticidas particulares acima dos limites permitidos. Os problemas com a Coca­‑Cola e a Pepsi que ocasionam uma crise de água e uma crise de saúde são por si sós razões suficientes para as proibir. Conjuntamente, tornam imperativa uma proibição. Estes são crimes contra a natureza e as pessoas. Os crimes são determinados pelo seu impacto, não por “normas” de instrumentos utilizados para cometer um crime. A Coca­‑Cola e a Pepsi estão comprometidas na violação dos aquíferos terrestres e no lento envenenamento das nossas crianças. E não existem “normas seguras” para o assassinato lento. É por isso que devemos bani­‑las das nossas vidas por meio de acções como cidadãos livres e soberanos de uma Índia livre e soberana.

Um discurso de um ministro influenciado pelos gigantes da cola não lhes dá “carta branca” como alegaram. A carta branca deve vir dos cidadãos livres da Índia. E o povo da Índia não deu à Coca­‑Cola e à Pepsi uma carta branca. Devemos seguir o exemplo dado por Plachimada e Kerala para tornar a Índia livre de Coca­‑Cola e de Pepsi para proteger as nossas águas subterrâneas e a saúde das nossas futuras gerações.

Devemos resistir a qualquer tentativa de privar os cidadãos e os Estados dos direitos constitucionais de tomar decisões sobre a segurança da nossa alimentação, tal como estabelece a Lei de Segurança Alimentar de 2006.
Vandana Shiva
http://www.infoalternativa.org/autores/shiva/shiva007.htm

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