quinta-feira, outubro 26, 2006

Linhas de fractura na América Latina

A primeira Cimeira entre a América do Sul e a Liga Árabe, que terminou a 11 de Maio no Brasil, sublinhou o desejo de independência do subcontinente americano, bem como a sua recusa do unilateralismo tradicionalmente imposto pelos Estados Unidos. Estes estão em recuo em toda a região, confrontados com o descontentamento dos movimentos populares, com governos de esquerda ou com a queda de presidentes que se tinham tornado seus aliados. Isso não significa, no entanto, que a América Latina caminhe a um só passo.

Tempos houve em que, segundo se conta, qualquer jornalista que chegasse a La Paz (Bolívia) se instalava no hotel situado do outro lado da praça Murillo, defronte do Palácio do Governo, e pedia um quarto «com vista sob o golpe de Estado». Um novo relato criado neste início do século XXI contará sem dúvida que qualquer presidente que assuma funções exigirá agora, por cautela, um escritório com «acesso directo ao helicóptero». Depois do argentino Fernando de la Rua, em 2001, e do boliviano Gonzalo Sánchez de Lozada, em 2003, foi graças a este tipo de aeronave salvadora que, a 20 de Abril, o chefe de Estado equatoriano, Lucio Gutiérrez, se pôs em fuga da sede da presidência, o Palácio Carondelet.

Triste fim para um ex-homem providencial... Enquanto coronel, Gutiérrez tinha sido um dos promotores do efémero golpe de Estado que em Janeiro de 2000, apoiando uma revolta popular com forte componente indígena, fez cair o presidente Jamil Mahuad. Comparado de um modo um pouco precipitado a um “Chávez equatoriano”, o oficial passou seis meses na prisão, foi afastado do exército e... ganhou a eleição presidencial de Novembro de 2002, em aliança com o movimento Pachakutik, braço político da Confederação das Nações Indígenas do Equador (CONAIE), a poderosa organização das populações autóctones empobrecidas [1].

Alguns meses bastaram para que o antigo coronel, traindo todo o seu mundo, a começar pelos ministros oriundos do movimento Pachakutik, se associasse às teses do Fundo Monetário Internacional (FMI) e se definisse a si mesmo como «o melhor aliado de Bush» na região.

Passando de medidas impopulares a baixas manobras políticas, Gutiérrez acabou, a 8 de Dezembro de 2004, por ir demasiado longe. Nesse dia, uma maioria parlamentar “às ordens” reestruturou o Supremo Tribunal e substituiu 27 dos seus 31 juízes. A 31 de Março de 2005, os magistrados recentemente nomeados anularam os julgamentos em curso contra os antigos presidentes Gustavo Noboa – acusado de corrupção e destituído em Fevereiro de 1997 – e Abdalá Bucaram – obrigado a abandonar funções no decurso de uma investigação sobre desvios de fundos públicos. O regresso ao país dos dois antigos chefes de Estado, respectivamente exilados no Panamá e na República Dominicana, provocou uma insurreição.

Abandonado pelo exército, onde reina um forte mal-estar, Gutiérrez é também abandonado pelo Congresso. É destituído por 60 dos 100 parlamentares, que tentam evitar naufragar com ele. De um ponto de vista jurídico, a razão invocada – «abandono da função» (por «não respeitar a Constituição») – foi por muitos vista como contestável. No entanto, e apesar de Gutiérrez ter até ao último instante manifestado um forte apoio ao seu aliado, Washington limitou-se a “aliviar a pressão”. Preservar as “instituições” e a “legitimidade do sistema político” torna-se a prioridade para todos.

Numa América Latina durante demasiado tempo submetida ao fundamentalismo liberal – 225 milhões de pobres, ou seja 43,9 por cento da população –, os governos estão sentados num barril de pólvora. Apesar dos “cães de guarda” decididos a preservar o statu quo – «Aceita a tua situação. Mesmo em período de crise económica, o dinheiro não traz felicidade» [2] –, parece ter chegado ao fim o tempo em que as populações pareciam resignar-se («A justiça social? Está cada dia mais próxima... tal como a linha do horizonte!»).

Pela primeira vez desde a década de 60, vários governos de esquerda – Argentina, Brasil, Uruguai e Venezuela – procuram inflectir o curso destas “Repúblicas sem cidadãos”, caracterizadas pelo desprezo social e a exclusão. E isto ainda que o presidente venezuelano Hugo Chávez seja, com Fidel Castro, o único presidente que defende um modelo de desenvolvimento que se distancia significativamente do Consenso de Washington. Face a esta contestação, que os desafia em diferentes pontos do hemisfério, os Estados Unidos procuram reagir reforçando o eixo dos seus aliados incondicionais, composto pelo México e a América Central, os países andinos no quadro dos quais o Equador de Gutiérrez ocupava, com a Colômbia, um lugar decisivo (tal como a Bolívia de Sánchez de Lozada).

Desde a década de 90, a ofensiva conduzida por Washington assumiu a forma de acordos de comércio livre, começando pelo Acordo de Comércio Livre da América do Norte (NAFTA/ALENA [3]), que registou uma suspensão com a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Este último projecto, que em Janeiro de 2005 deveria ter espalhado o vírus do ultraliberalismo em todo o continente, enterrou-se quando confrontado com a resistência dos movimentos sociais da Campanha Continental Contra a ALCA, com a recusa do Mercado Comum do Sul (Mercosul [4]) e com a resistência da Venezuela.

A fim de contornar a dificuldade, o Império assina à pressa tratados bilaterais com a América Central e a República Dominicana (Central American Free Trade Agreement, CAFTA), o Equador, a Colômbia e o Peru [5]. Como a ALCA morre, estes tratados de comércio livre abarcam tanto os aspectos estritamente económicos como a gestão estatal, a legislação do trabalho, a propriedade intelectual, o ambiente, os recursos naturais e energéticos, a saúde e a educação. São levadas a cabo pseudo­‑negociações que apenas permitem que os países latinos introduzam pequenas alterações, sem que Washington faça quaisquer concessões quanto ao essencial, beneficiando apenas os seus interesses.

Perante esta neocolonização mal disfarçada, as populações protestam. «Estou em crer que eles vão acabar por privatizar o Estado», ouve-se aqui e ali. «Se as coisas continuarem assim, um dia acordamos e o país pertencerá à Coca-Cola!» Há uma grande contestação na América Central. No Peru e no Equador, uma campanha de recolha de assinaturas procura obrigar os governos a convocarem uma consulta popular sobre os tratados. Na Bolívia, a pressão das organizações sociais impediu o poder de avançar na negociação do tratado de livre comércio, que rebaptizaram com o nome «total loucura capitalista».

No entanto, o recente derrube dos chefes de Estado boliviano e equatoriano apenas deu origem, pelo menos por agora, a perspectivas incertas e ambíguas. Tal como na Argentina, em Dezembro de 2000, foi com o grito «Que se vayan todos!» (Que se vão todos embora!) que os equatorianos tomaram as ruas. Tratou-se de uma insurreição multiclassista, autoconvocada à margem dos partidos e dos dirigentes políticos – como em La Paz e em Buenos Aires –, em que as rádios livres desempenharam um papel essencial. De parte foram deixados a própria CONAIE e o movimento Pachakutik, cujos dirigentes foram criticados pelas (curtas) responsabilidades governamentais ao lado de Gutiérrez.

Tal como a Bolívia substituíra Sánchez de Lozada pelo vice-presidente Carlos Mesa (que não pertence a qualquer partido), o Equador substituiu Gutiérrez pelo mais próximo adjunto deste – Alfredo Palacio, um médico sem filiação política. Ou seja, nenhum dos dois tem um grande apoio.

É um facto que, em circunstâncias semelhantes, o exercício do poder em Buenos Aires por Nestor Kirchner, peronista que fez uma viragem para o centro­‑esquerda, constituiu uma boa surpresa. Resistindo ao FMI, o seu governo anunciou uma moratória sobre a dívida privada, medida que chegou ao fim em Março de 2005 depois de os credores terem aceitado renunciar a 65,6 por cento do montante da dívida. A 10 de Março, Kirchner apelou ao boicote das empresas petrolíferas Shell e Esso, que haviam aumentado 3 por cento os preços dos combustíveis. O apelo foi imediatamente apoiado por centenas de manifestantes, que ocuparam as estações de serviço, mas a situação social, extremamente preocupante, não teve qualquer evolução.

No Equador, o novo presidente, Palacio, assume as rédeas de um país em situação de extrema fragilidade. Por convicção ou para apaziguar a pressão popular, o ministro da Economia, Rafael Correa, considerou que «os acordos comerciais devem ser respeitados, mas os países não devem negociar em condição de escravatura» [6].

O ministro do Interior, Manuel Gándara, fez por seu lado saber que as negociações sobre o tratado de comércio livre se encontram interrompidas; que todos os contratos mineiros e petrolíferos serão reexaminados; que o Equador se distanciará relativamente ao Plano Colômbia; e que será estudada a anulação do acordo, assinado em 1992, de concessão de uma base militar aos Estados Unidos em Manta – operam nesta instalação estratégica do Southern Command (Comando Sul do Exército dos Estados Unidos) quinhentos soldados, tendo como alvo as guerrilhas colombianas [7]. Neste ponto, no entanto, depois de um almoço com a embaixadora americana Kristie Kenney, o presidente Palacio teve já que recuar. Estar-se-á perante um cenário semelhante ao da Bolívia?

Neste país, uma primeira “guerra da água” levada a cabo contra o efeito das privatizações, seguida de uma “guerra do gás” que eclodiu pelas mesmas razões (causando 80 mortos e 500 feridos), levou à fuga do ultraliberal Sánchez de Lozada [8]. A 18 de Julho de 2004, o seu sucessor Carlos Mesa, apoiado pelo Movimento para o Socialismo (MAS) de Evo Morales, o principal partido da oposição, organizou um “referendo do gás” no qual a população se pronunciou em massa a favor da recuperação do sector dos hidrocarbonetos. O movimento social unificou-se em torno de quatro reivindicações: convocação de uma Assembleia Constituinte, à semelhança daquele que foi o acto fundador da revolução bolivariana na Venezuela; rejeição da ALCA e/ou do tratado de comércio livre; expulsão da transnacional Aguas de Illimani (Suez Lyonnaise des Eaux); e votação de uma lei sobre os hidrocarbonetos que estabeleça, entre outras medidas, um imposto de 50 por cento (aprovado pelo referendo) sobre a exportação pelos consórcios transnacionais.

Apanhado, todavia, entre o martelo da convulsão social e a bigorna do FMI, do Banco Mundial e das multinacionais, Mesa defende agora que esta lei, já aprovada pelo Congresso, é de “impossível” aplicação, por não ser aceite pela comunidade internacional. Violentamente contestado, Mesa já não consegue governar.

A oposição, ainda que tenha alcançado uma espécie de poder de veto graças à desobediência civil generalizada, não sai necessariamente reforçada do processo. Desprovidos de ideologia e de bases populares, os chamados partidos tradicionais estão actualmente limitados a um papel secundário nos acontecimentos. Mesmo dirigentes radicais como Felipe Quispe (Movimento Indígena Pachacuti, MIP) e Evo Morales (MAS), pessoalmente criticado por ter pactuado, num primeiro tempo, com Mesa, estão sob a ameaça de serem submetidos à “justiça comunitária” caso traiam o Pacto para a Dignidade e a Soberania do Povo Boliviano.

A breve trecho poderá surgir uma situação semelhante no Peru, onde à catástrofe Alberto Fujimori sucedeu o desastre Alejandro Toledo. Com efeito, sucedem-se os bloqueios de estradas, as ocupações de edifícios públicos e os confrontos com as forças da ordem e do exército. A 1 de Janeiro de 2005, um grupo de antigos militares ultranacionalistas (os “etnocaceristas”) desencadeou inclusivamente uma acção armada. A corrupção, presente em todos os níveis do Estado, e o desastre social dão lugar a um debate permanente: deve manter­‑se Toledo no poder até 2006 ou deve “sair” antes? Mas, também aqui, não se vislumbra qualquer alternativa política, tão grande é a rejeição dos partidos políticos e dos líderes destes.

OBJECTIVOS COMUNS PARA LÁ DAS DIVERGÊNCIAS

Mesmo na Nicarágua, agitada em Abril e Maio por violentas manifestações contra o aumento dos preços dos combustíveis – tendo mais de oitenta autarcas (em 152 municípios) exigido que o presidente Enrique Bolanos resolvesse os problemas energéticos ou então se demitisse –, não é certo que a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) esteja em condições de governar, se a situação se colocar. Com efeito, devido a uma falta de democracia interna, a FSLN atravessa uma grave crise que afastou muitos dos seus antigos militantes ou partidários.

Estamos perante situações mais fortemente marcadas pela incerteza ou pelos perigos de caos do que pelo aparecimento de verdadeiras alternativas. Mas nem por isso deixa de ser verdade que, perdendo um por um os seus “peões”, Washington se encontra agora na defensiva. Do ponto de vista do general Bantz Craddock, comandante­‑chefe do Southern Command, «na Bolívia, no Equador e no Peru a desconfiança e a falta de fé nas instituições estimulam a emergência de demagogos anti­americanos, antiglobalização e que se opõem ao comércio livre» [10]. Pior ainda, o eixo formado pelo Brasil, a Argentina, o Uruguai e a Venezuela (neste caso, com Cuba em segundo plano) faz soçobrar qualquer iniciativa do Departamento de Estado tendente a reassumir o controlo...

Quando, perante a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) de Julho de 2004, em Fort Lauderdale (Florida), os Estados Unidos avançaram a ideia de uma modificação da Carta Democrática Interamericana de modo a permitir isolar os países «que se distanciem gradualmente da democracia», ou até intervir neles – objectivo designado: a Venezuela –, apenas suscitaram um sorriso cortês. Durante a reunião dos ministros da Defesa em Quito, de 16 a 18 de Novembro de 2004, a Venezuela, o Brasil e a Bolívia rejeitaram, com base na não ingerência, a pretensão do secretário de Estado e da Defesa americano, Donald Rumsfeld, apoiado pelos dirigentes colombiano e centro-americano, de pôr em prática uma nova concepção da “segurança preventiva” e de constituir uma força multinacional latino-americana – sob comando do Pentágono, evidentemente.

Ora, mesmo na Colômbia de Alvaro Uribe Vélez, o seu mais fiel vassalo, a política americana está penosamente a marcar passo. Apesar dos 3,3 mil milhões de dólares de ajuda militar a Bogotá ao longo dos seis últimos anos, do fornecimento de mais de 65 helicópteros Blackhawk e Huey, e da formação de três novos batalhões de elite, o exército colombiano atola­‑se no conflito interno.

O Plano Patriota, a mais ambiciosa ofensiva jamais levada a cabo contra as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), traduziu-se numa operação que envolveu 17.000 soldados no Sul do país, mas não foi capaz de vencer as guerrilhas móveis, que jogam com a rapidez e a surpresa, e que, na montanha ou na selva, derrotam pesados batalhões. Enquanto a secretária de Estado americana Condoleezza Rice, em visita a Bogotá a 27 de Abril de 2005, anunciou para Setembro deste ano o fim oficial do Plano Colômbia (mas não o da ajuda americana), as tropas governamentais sofriam golpes muito pesados no Sudoeste do país e rebentava uma violenta crise no interior do exército. A destituição de quatro generais de alta patente [11] tornou evidentes as profundas fracturas no seio de uma instituição traumatizada pelas mudanças de doutrina impostas a partir do Pentágono e pelas derrotas sofridas no terreno.

Existe uma outra pedra, e grande, no sapato de Washington: «A Venezuela exerce uma influência desestabilizadora na América Latina», advertiu Rice em Fevereiro. As fortes pressões diplomáticas para que os vizinhos tentem “lulalizar” [12] o presidente venezuelano têm contudo fracassado, tanto mais que não é da natureza daquele homem deixar-se manipular. Quando o secretário de Estado norte-americano inicia, a 26 de Abril, uma ronda por quatro países do continente (Chile, Brasil, Colômbia e El Salvador), não consegue obter de Brasília a mais pequena declaração crítica em relação à revolução bolivariana e vê-se do mesmo modo delicadamente evitado em Santiago.

Não é que a política de ruptura de Chávez faça os vizinhos pularem de entusiasmo. Não tem forçosamente a mesma perspectiva sobre o modelo de integração do Mercosul – que define como «submetido aos ditames do capital e à lógica mercantil» – que o Brasil, convertido ao “realismo” e saudado pelo FMI. Chávez defende incansavelmente a implantação da Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA [13]) e uma integração com uma forte componente social, tendo mesmo chegado a declarar o seguinte, a 4 de Março: «Devemos inventar o novo socialismo para o século XXI. O capitalismo não é um modelo de desenvolvimento sustentável».

Volta, no entanto, a verificar-se uma partilha de objectivos quando o que está em causa é o reforço da Comunidade Sul-Americana das Nações (CSN [14]), criada a 8 de Dezembro de 2004, bem como uma ordem internacional que rejeite o unilateralismo para se fundar na igualdade dos Estados. Os acordos económicos (energéticos, industriais) fazem o resto. A título de exemplo, a Venezuela importa anualmente dos Estados Unidos, para a sua indústria petrolífera, 5 mil milhões de dólares em bens e serviços. Chávez pretende que, doravante, 25 por cento destas aquisições sejam feitas na Argentina e no Brasil. Por outro lado, pensem eles como pensarem, estes chefes de Estado têm que cuidar dos respectivos sectores populares. É público e notório que os piqueteros argentinos ou os camponeses sem terra brasileiros se sentem mais representados por Chávez do que pelos seus próprios presidentes.

Entretanto, para Washington, o pior ainda estava para vir. Desde Outubro de 2004, a Organização dos Estados Americanos (OEA) encontrava-se acéfala devido à demissão do seu efémero secretário-geral (por 17 dias!), Miguel Angel Rodríguez. O ex-presidente da Costa Rica foi apanhado num caso de corrupção e julgado no seu país, acusado de ter recebido luvas no valor de 2,4 milhões de dólares da empresa francesa Alcatel. São nessa altura três os candidatos que aspiram a substituí-lo: o mexicano Luis Ernesto Derbez, conservador, ministro dos Negócios Estrangeiros e antigo consultor do Banco Mundial; o ministro chileno do Interior, José Miguel Insulza, ex­‑conselheiro de Salvador Allende, que exerce funções ministeriais desde que foi nomeado para os Negócios Estrangeiros em 1994; e, por fim, o candidato da Casa Branca, o ex-presidente salvadorenho Francisco Flores. Este último, enquanto estava no poder, enviou um contingente militar simbólico para o Iraque, que lá permanece.

Ao longo de sessenta anos, nunca esta organização de 34 países da América e das Caraíbas (com excepção de Cuba) assistiu à vitória de um candidato que não fosse apoiado pela Casa Branca. Mas antes mesmo da primeira volta, a 11 de Abril, e apesar de enormes pressões, Flores parecia tão isolado que, para evitar uma humilhação Washington, pediu-lhe que se retirasse.

Os Estados Unidos não têm, à priori, mais divergências com o Chile – que não rompeu com a economia de mercado pura e dura e assinou um tratado de comércio livre em 2004 – do que com o México, membro do NAFTA. Washington pode pressionar o seu mais próximo vizinho do Sul optando por reprimir ou por regularizar os 4 milhões (ou mais) de mexicanos sem papéis cujas remessas de dinheiro para o país, no valor de 38 mil milhões de dólares em 2003, ultrapassaram os rendimentos do turismo e representaram metade do valor das exportações.

“CANDIDATO DE CONSENSO”

Por outro lado, Hugo Chávez apoia entusiasticamente... o chileno Insulza. Tem as suas razões: à solidariedade sul­‑americana junta-se o facto de o presidente mexicano Vicente Fox manter laços de amizade com George W. Bush; de ter sido lançada uma operação de desestabilização pelo governo mexicano contra o autarca de esquerda da Cidade do México, Andrés Manuel López Obrador, candidato do Partido da Revolução Democrática (PRD) às eleições presidenciais de 2006 [15]; e de o México ter votado contra Cuba na Comissão dos Direitos do Homem das Nações Unidas [16]. Por instrução do Departamento de Estado, os países que apoiaram Flores passaram a fazer campanha pelo mexicano Derbez.

Apesar das cinco voltas de escrutínio realizadas, os dois candidatos continuavam em situação de igualdade, tendo cada um 17 votos (são necessários 18 para se ser eleito). Votaram pelo chileno o Brasil, a Argentina, o Uruguai, o Paraguai, o Equador, a Venezuela, a República Dominicana e dez países das Caraíbas. Em vésperas do 2 de Maio, data prevista para uma nova consulta, a tendência parecia mudar a favor de Insulza. O desenlace teve lugar a 29 de Abril, durante uma reunião de Rice com vários ministros dos Negócios Estrangeiros (El Salvador, Paraguai, Colômbia, Chile e Canadá), Derbez e Insulza. No final do encontro, e para surpresa geral, o mexicano Derbez anunciou a retirada da sua candidatura.

«Condoleezza Rice compreendeu que continuar a apoiar Derbez era correr para a derrota», observa Peter Hakim, director da organização Diálogo Inter-Americano, sediada em Washington. «Se ele tivesse ganho com um ou dois votos de vantagem, o continente teria aparecido dividido por culpa dos Estados Unidos e, se tivesse perdido, o que era mais provável, teria sido uma grande derrota... para os Estados Unidos» [17]. Nestas condições, Washington procura não perder a face e aceita deixar o cantinho livre a Insulza, “candidato de consenso” finalmente eleito a 2 de Maio com 31 votos (duas abstenções e um voto branco).

Apesar desta manobra de último minuto, Washington surge claramente como o grande vencido da votação. Será, ainda assim, um erro considerar a vitória do ex-ministro do Interior chileno como a chegada de um progressista à frente da organização continental. Segundo um diplomata que seguiu de perto as últimas negociações, «vários elementos indicam que, antes de lhe deixar o caminho aberto, os Estados Unidos conseguiram obter alguns compromissos da parte de Insulza, tal como do governo chileno, particularmente no que diz respeito à política da OUA em relação à Venezuela e a Cuba».

Ainda assim, neste “pátio traseiro” politicamente mais fragmentado do que nunca, nada parece indicar que o novo secretário-geral tenha as mãos completamente livres se por acaso for tomado de uma vontade de impor o rumo desejado pelos Estados Unidos.

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[1] Ler Laurent Tranier, Os indígenas equatorianos face ao desafio evangélico, Le Monde diplomatique, Abril de 2005.
[2] Cromos, Bogotá, 20 de Dezembro de 1999.
[3] O NAFTA reúne, desde 1994, o México, os Estados Unidos e o Canadá.
[4] À Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, iniciadores do Mercosul em 1994, juntaram-se vários países associados: Bolívia e Chile (1996), Peru (2003), Colômbia, Equador e Venezuela (2004).
[5] O Parlamento chileno, precursor, aprovou em Outubro de 2003 um tratado de comércio livre que entrou em vigor em Janeiro de 2004. El Salvador, as Honduras e a Guatemala ratificaram o CAFTA, ainda não aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos.
[6] Sally Burch, “Ecuador, cambio de rumbo?”, Alai, Quito, 22 de Abril de 2005.
[7] Hernando Calvo Ospina, Nas fronteiras do Plano Colômbia, Le Monde diplomatique, Fevereiro de 2005.
[8] Ignacio Ramonet, Bolivie, Le Monde diplomatique, Novembro de 2003 [ed. brasileira: Bolívia].
[9] A Argentina enfrenta 34 processos entrepostos no Centro Internacional para a Resolução de Diferendos Relativos aos Investimentos (CIADI) do Banco Mundial (Raúl Zibechi, La Jornada, Cidade do México, 1 de Abril de 2005).
[10] Declaração perante o Congresso dos Estados Unidos, a 9 de Março de 2005.
[11] General Roberto Pizarro, segundo comandante e chefe do estado-maior interarmas; Fabio García, chefe das operações; Hernán Cadavid, chefe do desenvolvimento; e Jairo Pineda, inspector-geral do exército.
[12] Alusão à política moderada do presidente brasileiro Luiz Inácio “Lula” da Silva.
[13] A primeira reunião entre Cuba e a Venezuela com vista à aplicação da Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), realizada a 28 de Abril em Havana, aprofundou a colaboração económica entre os dois países.
[14] A CSN reúne os países do Mercosul, a Comunidade Andina das Nações (Bolívia, Colômbia, Peru, Equador e Venezuela) e ainda o Suriname e a Guiana.
[15] Anne Vigna, Golpe baixo falhado na Cidade do México, Le Monde diplomatique, Junho de 2005.
[16] Dos países latino-americanos membros da CDH, os seguintes votaram a favor da resolução apresentada pelos Estados Unidos contra Cuba: México, Costa Rica, Guatemala e Honduras. Abstiveram-se a Argentina, o Brasil, a República Dominicana, o Equador, o Paraguai e o Peru.
[17] BBC Mundo, Londres, 2 de Maio de 2005
Maurice Lemoine
http://www.infoalternativa.org/amlatina/amlatina023.htm

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