quarta-feira, outubro 25, 2006

Medo de espelhos

Tariq Ali, neste romance, aventura-se numa profunda e inesquecível viagem histórica ao tempo em que interpreta o presente com os olhos passados de um pai e futuros de um filho.



«A esperança, ao contrário do medo, não pode ser nunca uma emoção passiva.» (Tariq Ali)

O título é instigante. Sucessivas metáforas nas superfícies espelhadas da história são desvendadas nas confidências entre pai e filho. Os personagens costuram a ficção nos contextos históricos. Constroem e destroem o muro de Berlim... Recriam os tijolos ideológicos nas ruínas...

Os espelhos necessários das heranças familiares, os espelhos da sociedade que preferimos encobrir, os que desejamos nos estender em imagens de realizações, as representações dos medos desvelados...

Wladimir Meyer é um professor de literatura nascido e criado no mundo socialista. Com a queda do muro, perde os seus referenciais e tem uma percepção pessimista do presente corrompido pelos sex-shops e fast foods impostos pelo capitalismo. Os alicerces históricos dos sonhos de mais de uma geração estão soterrados. O filho, Karl Meyer, considera que os seus pais são uns dinossauros e que fazem parte de uma geração fracassada.

Tariq Ali aventura-se numa profunda e inesquecível viagem histórica ao tempo em que interpreta o presente com os olhos passados do pai e futuros do filho. Os ódios raciais, a perda das ideologias e a fragilidade diante de um mundo indiferente ganham força no desemprego e na quebra abrupta do regime autoritário. Com a queda do muro, erguem-se novas construções entre as gerações. Os choques são inevitáveis e seriam irreparáveis se não houvesse o resgate histórico.

O escritor desenha a Europa do final do século XIX, as fragmentações e os acordos. Percebemos os indícios das tantas guerras do início do século XX: a ascensão do fascismo, a guerra civil espanhola, as perseguições... O mundo soviético entra em cena como um refúgio para os indivíduos mais idealistas, mas logo as intrigas e traições surgem no seio da sociedade socialista, desmitificando o comunismo idealizado por Marx.

Wlady refugia-se nas suas vivências e escreve longas cartas para o filho, enquanto se aprofunda nas próprias questões existenciais. A vida da sua mãe Gertrude, alemã de família judia, e a do seu suposto pai Ludwik, também de origem judia e nascido numa pequena aldeia na fronteira entre os territórios austro­‑húngaros e os domínios do czar russo, convergem na luta pelo ideal socialista. São os alicerces humanos para os muros edificados durante a guerra fria.

As longas jornadas de resgate são intercaladas com acontecimentos presentes, encontros com jovens destituídos dos sonhos, pseudo­‑movimentos artísticos, lixos capitalistas e socialistas, vazios...

«Eles destruíram deliberadamente o nosso respeito por nós mesmos, a nossa dignidade de seres humanos, o que também marcou fundo a nossa comunidade. Às vezes, as opções existenciais são a única solução para os indivíduos.»

«Quando as pessoas comuns perdem a sua humanidade, é péssimo o reflexo sobre o Estado de que são cidadãos.»

Karl relê diversas vezes a carta dos pais e pela primeira vez sente necessidade de se justificar. As mudanças na liderança do seu Partido deixaram­‑no inseguro, queria clarear os seus pensamentos e sentia falta do pai. Escreve uma carta...

«O que me enlouquece na sua geração é a recusa em aceitar o veredicto da história. Houve um tempo em que a história caminhava inexoravelmente para a frente, em direcção às vossas utopias. Então vocês a viam como um processo com um sujeito: o grande, invencível mundo do proletariado unido como classe contra o seu inimigo. Agora, a história virou uma puta. Veja o mundo ao seu redor, Wlady. Olhe bem. Camponeses pobres do Ruanda matando os seus vizinhos pobres em nome de uma tribo. Sérvios de religião ortodoxa matando muçulmanos bósnios, católicos croatas matando os outros dois. Progresso?»

A queda do muro não representa apenas as ruínas das crenças e lutas de uma geração, representa o grande vazio ideológico e a falta de perspectiva de todos os contemporâneos. Não há resistência ou sonho que sobreviva à certeza de que a história é prostituída num mundo destituído de humanidade. O filho tenta justificar as suas opções nos fundamentos do veredicto histórico, o pai narra a construção dos seus ideais no curso do processo...

Tariq Ali mostra o outro lado do muro com a reversão no papel de Gertrude. Nas lembranças de Wlady, sempre restam lacunas na história, mas a sua mãe é narrada como uma jovem idealista que amadurece no corpo do socialismo e luta pela causa como agente soviética. O leitor é seduzido pela força e pelos sonhos de Gertrude. A infância de Wlady está costurada em lembranças de guerra e em reuniões clandestinas.

A vontade de conhecer melhor o seu pai, morto por agentes de Stalin antes do seu nascimento, faz com que Wlady, em posse dos documentos arquivados na KGB, descubra a sua origem ilegítima. Não é filho de Ludwik e sim de um espião inglês. A sua mãe, Gertrude, não é quem ele sempre idealizou. Ela traiu Ludwik, participando até da sua morte, e espionava o próprio filho nos grupos clandestinos da Alemanha Oriental.

As atitudes de Ludwik, que se deixou assassinar, e de Gertrude, que sobreviveu à traição, são justificadas na fala de Klaus Winter, agente inglês: «Não nego que houve gente que preferiu o suicídio. A decisão que tomámos foi a de permanecer vivos, e para isso tínhamos de sacrificar a nossa dignidade, o nosso respeito próprio.»

A decepção com as descobertas sobre a mãe é mais um muro que cai. Era espionado pelos olhos que embalaram os seus primeiros sonhos, descobre-se ilegítimo e com o nascimento amparado na traição e na perda da dignidade da sua mãe...

Wlady percebe-se sozinho e vazio. O reencontro com a esposa e o filho dá um novo significado à sua vida, ou talvez apenas acentue o motivo pelo qual verdadeiramente se deve lutar.

Fecho o livro. Deixo-me preencher por todas as emoções... Distante da ficção, a minha percepção é ofuscada pelos tantos espelhos, pela violência da guerra e dos actos terroristas, pela realidade brasileira, pelos governantes, pela apatia do povo... Tento resgatar a nossa história, mas não tenho o distanciamento necessário para uma análise crítica e imparcial. Sinto necessidade de construir um muro que proteja os meus ideais dos desencantos, mas tenho medo de muros...
Helena Sut
http://infoalternativa.org/cultura/livro019.htm

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