As negociações do ciclo de Doha na Organização Mundial do Comércio (OMC) acabam de encalhar. Para a OMC, que visa a liberalização económica a passo forçado para maior lucro das grandes potências e das suas empresas, «todos os países são perdedores». Afirmamos o nosso profundo desacordo com esta análise.
As grandes potências (Estados Unidos, União Europeia, Japão, Índia, Brasil, Austrália – que representavam os países agro‑exportadores) não tiveram êxito em chegar a um acordo sobre o modo de regular a economia mundial. Isso significa que na mais pura lógica neoliberal, estas grandes potências encalharam. Notem que os países pobres, nomeadamente os países africanos, não participaram realmente nas negociações. Apesar das proclamações da OMC e da impostura semântica relativas a este “ciclo do desenvolvimento”, um eventual acordo ter-se-ia feito contra eles, incapazes de pesar neste recinto opressivo. Em qualquer caso, os povos, sejam do Norte ou do Sul, podem congratular-se: escaparam a uma nova máquina de triturar, ainda mais potente que a actual: liberalização acrescida da economia mundial, a mais larga abertura possível dos mercados, despojando os Estados de um máximo de prerrogativas em proveito das empresas multinacionais. Após os fracassos da OMC em Seattle em 1999 e Cancun em 2003, trata-se de um novo impasse para uma lógica moribunda.
Recordemos que o tema da OMC tinha ocupado uma parte das reflexões aquando da última cimeira dos oito países mais industrializados (G8 [1]), que se realizou em meados de Julho em São Petersburgo (Rússia). O G8, acompanhado pelos presidentes de alguns países emergentes (China, Brasil, Índia, África do Sul, México), tinha dado um prazo de um mês para encontrar as bases de um acordo. Uma semana mais tarde, o Director Geral da OMC, Pascal Lamy, teve de decidir-se a interromper as negociações. Ao mesmo tempo, a Rússia não conseguiu ainda obter a luz verde dos Estados Unidos para a adesão à OMC.
Outros temas põem em destaque o fracasso de uma cimeira do G8 que se revela finalmente inútil. «Sem progresso notável», este «G8 sem amplitude» (dixit a imprensa) é temporariamente impotente e desqualificado. No Médio Oriente, ninguém acredita um segundo que as prestidigitações do G8 sobre um Líbano presa das represálias militares de Israel sejam seguidas de efeitos. Sobre a energia, a advertência do G8 ao Irão sobre a energia nuclear não serviu para nada e a Rússia recusou‑se a ratificar a Carta Europeia da Energia, protegendo o monopólio de Gazprom. O G8 preocupou-se pelo elevado preço do petróleo, mas o dia do encerramento do G8 viu o petróleo atingir o seu preço mais elevado em Londres...
Quanto aos temas do desenvolvimento e da redução da dívida, que tinham tido lugar de destaque na cimeira de 2005 do G8, desapareceram da ordem do dia quando nada está determinado. Só 19 países são referenciados pelas medidas anunciadas em 2005 e a redução dos seus reembolsos será inferior a 50 mil milhões de dólares nos 40 próximos anos. É pouco face às despesas militares mundiais anuais (1,1 biliões de dólares), tanto mais que esta redução é obtida após um processo de vários anos que permitiu ao FMI e ao Banco Mundial impor reformas drásticas: liberalização económica, privatizações, redução dos orçamentos sociais, supressão das subvenções aos produtos básicos... Para os 19 países em causa, a situação continuou a degradar‑se: as reduções realizadas não conseguiram sequer contrabalançar o aumento do preço do petróleo, duramente sentido pelas populações do Sul, mesmo em certos países produtores de petróleo como o Congo‑Brazzaville.
A lógica defendida pelo G8 e pela OMC acaba de limpar dois desaires agudos numa semana. Porquê? Porque as relações de força se alteraram. Graças às exportações de matérias primas cujos preços correntes conheceram um aumento importante nestes dois últimos anos, as reservas em moedas fortes (dólares, euros nomeadamente) dos países em desenvolvimento atingem picos: mais de 2.100 mil milhões de dólares, dos quais 925 mil milhões de dólares só para a China. É muito superior às reservas de câmbio dos Estados Unidos e da União Europeia juntos. Constituídas em parte por títulos do Tesouro dos Estados Unidos ou de países europeus, estas reservas podem alterar duradoiramente a distribuição das cartas. Hoje, o Sul é prestamista líquido para os países desenvolvidos e teria todas as possibilidades de romper com os diktats do G8. Ainda é necessário que os líderes do Sul tenham a vontade de se opor a estas exigências, o que está longe de ser o caso. Só a acção dos cidadãos do Sul pode conduzir os seus governantes na boa direcção.
Assentemos as bases de uma lógica muito diferente. Os países em desenvolvimento deveriam deixar o FMI, o Banco Mundial e a OMC, tornando-os desde então caducos. Estes países poderiam pôr em conjunto metade das suas reservas de câmbio para construir novas instituições centradas na satisfação das necessidades humanas fundamentais, o que não é o caso das instituições actuais. A dívida externa dos países em desenvolvimento é mais elevada que nunca: 2.800 mil milhões de dólares. Ela organiza a continuação de uma dominação que torna impossível qualquer forma de desenvolvimento sustentável e justo. Os cidadãos do Sul foram forçados a reembolsar várias vezes uma dívida amplamente odiosa, contratada por governos que nunca os consultaram. Os países em desenvolvimento deveriam constituir uma frente para o não pagamento da dívida.
É necessário comprometer-se rapidamente com esta outra via, senão o G8 acabará por retomar o controle. Como? Uma nova crise da dívida, com taxas de juro em alta e preços correntes das matérias primas que podem inverter‑se brutalmente, como no fim dos anos 1970? Uma dependência em relação aos cereais exportados pelos países do Norte? As grandes sociedades agro‑alimentares especulam sobre os stocks de cereais para fazer subir os preços. Ora, por recomendação do Banco Mundial e do FMI, os países do Sul substituíram progressivamente a sua produção cerealífera por produções de exportação (café, cacau, algodão, bananas...). Veremos no futuro fomes programadas a partir do Norte, enquanto as diminuições de dívida concedidas com uma mão pelos organismos multilaterais são repostas pela outra através das sociedades agro‑exportadoras do Norte?
O modelo económico actual é estruturalmente gerador de dívida, pobreza, desigualdades, corrupção, incluindo no Norte. É agora que é necessário dirigir um cartão vermelho definitivo ao G8 e à OMC, sem esquecer o FMI e o Banco Mundial, temporariamente fora do jogo internacional. Não para colocar outros actores trabalhando no mesmo sentido, mas para alterar radicalmente a lógica que defendem.
[1] Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Reino Unido, Rússia.
Eric Toussaint e Damien Millet
http://www.infoalternativa.org/autores/toussaint/toussaint019.htm
As grandes potências (Estados Unidos, União Europeia, Japão, Índia, Brasil, Austrália – que representavam os países agro‑exportadores) não tiveram êxito em chegar a um acordo sobre o modo de regular a economia mundial. Isso significa que na mais pura lógica neoliberal, estas grandes potências encalharam. Notem que os países pobres, nomeadamente os países africanos, não participaram realmente nas negociações. Apesar das proclamações da OMC e da impostura semântica relativas a este “ciclo do desenvolvimento”, um eventual acordo ter-se-ia feito contra eles, incapazes de pesar neste recinto opressivo. Em qualquer caso, os povos, sejam do Norte ou do Sul, podem congratular-se: escaparam a uma nova máquina de triturar, ainda mais potente que a actual: liberalização acrescida da economia mundial, a mais larga abertura possível dos mercados, despojando os Estados de um máximo de prerrogativas em proveito das empresas multinacionais. Após os fracassos da OMC em Seattle em 1999 e Cancun em 2003, trata-se de um novo impasse para uma lógica moribunda.
Recordemos que o tema da OMC tinha ocupado uma parte das reflexões aquando da última cimeira dos oito países mais industrializados (G8 [1]), que se realizou em meados de Julho em São Petersburgo (Rússia). O G8, acompanhado pelos presidentes de alguns países emergentes (China, Brasil, Índia, África do Sul, México), tinha dado um prazo de um mês para encontrar as bases de um acordo. Uma semana mais tarde, o Director Geral da OMC, Pascal Lamy, teve de decidir-se a interromper as negociações. Ao mesmo tempo, a Rússia não conseguiu ainda obter a luz verde dos Estados Unidos para a adesão à OMC.
Outros temas põem em destaque o fracasso de uma cimeira do G8 que se revela finalmente inútil. «Sem progresso notável», este «G8 sem amplitude» (dixit a imprensa) é temporariamente impotente e desqualificado. No Médio Oriente, ninguém acredita um segundo que as prestidigitações do G8 sobre um Líbano presa das represálias militares de Israel sejam seguidas de efeitos. Sobre a energia, a advertência do G8 ao Irão sobre a energia nuclear não serviu para nada e a Rússia recusou‑se a ratificar a Carta Europeia da Energia, protegendo o monopólio de Gazprom. O G8 preocupou-se pelo elevado preço do petróleo, mas o dia do encerramento do G8 viu o petróleo atingir o seu preço mais elevado em Londres...
Quanto aos temas do desenvolvimento e da redução da dívida, que tinham tido lugar de destaque na cimeira de 2005 do G8, desapareceram da ordem do dia quando nada está determinado. Só 19 países são referenciados pelas medidas anunciadas em 2005 e a redução dos seus reembolsos será inferior a 50 mil milhões de dólares nos 40 próximos anos. É pouco face às despesas militares mundiais anuais (1,1 biliões de dólares), tanto mais que esta redução é obtida após um processo de vários anos que permitiu ao FMI e ao Banco Mundial impor reformas drásticas: liberalização económica, privatizações, redução dos orçamentos sociais, supressão das subvenções aos produtos básicos... Para os 19 países em causa, a situação continuou a degradar‑se: as reduções realizadas não conseguiram sequer contrabalançar o aumento do preço do petróleo, duramente sentido pelas populações do Sul, mesmo em certos países produtores de petróleo como o Congo‑Brazzaville.
A lógica defendida pelo G8 e pela OMC acaba de limpar dois desaires agudos numa semana. Porquê? Porque as relações de força se alteraram. Graças às exportações de matérias primas cujos preços correntes conheceram um aumento importante nestes dois últimos anos, as reservas em moedas fortes (dólares, euros nomeadamente) dos países em desenvolvimento atingem picos: mais de 2.100 mil milhões de dólares, dos quais 925 mil milhões de dólares só para a China. É muito superior às reservas de câmbio dos Estados Unidos e da União Europeia juntos. Constituídas em parte por títulos do Tesouro dos Estados Unidos ou de países europeus, estas reservas podem alterar duradoiramente a distribuição das cartas. Hoje, o Sul é prestamista líquido para os países desenvolvidos e teria todas as possibilidades de romper com os diktats do G8. Ainda é necessário que os líderes do Sul tenham a vontade de se opor a estas exigências, o que está longe de ser o caso. Só a acção dos cidadãos do Sul pode conduzir os seus governantes na boa direcção.
Assentemos as bases de uma lógica muito diferente. Os países em desenvolvimento deveriam deixar o FMI, o Banco Mundial e a OMC, tornando-os desde então caducos. Estes países poderiam pôr em conjunto metade das suas reservas de câmbio para construir novas instituições centradas na satisfação das necessidades humanas fundamentais, o que não é o caso das instituições actuais. A dívida externa dos países em desenvolvimento é mais elevada que nunca: 2.800 mil milhões de dólares. Ela organiza a continuação de uma dominação que torna impossível qualquer forma de desenvolvimento sustentável e justo. Os cidadãos do Sul foram forçados a reembolsar várias vezes uma dívida amplamente odiosa, contratada por governos que nunca os consultaram. Os países em desenvolvimento deveriam constituir uma frente para o não pagamento da dívida.
É necessário comprometer-se rapidamente com esta outra via, senão o G8 acabará por retomar o controle. Como? Uma nova crise da dívida, com taxas de juro em alta e preços correntes das matérias primas que podem inverter‑se brutalmente, como no fim dos anos 1970? Uma dependência em relação aos cereais exportados pelos países do Norte? As grandes sociedades agro‑alimentares especulam sobre os stocks de cereais para fazer subir os preços. Ora, por recomendação do Banco Mundial e do FMI, os países do Sul substituíram progressivamente a sua produção cerealífera por produções de exportação (café, cacau, algodão, bananas...). Veremos no futuro fomes programadas a partir do Norte, enquanto as diminuições de dívida concedidas com uma mão pelos organismos multilaterais são repostas pela outra através das sociedades agro‑exportadoras do Norte?
O modelo económico actual é estruturalmente gerador de dívida, pobreza, desigualdades, corrupção, incluindo no Norte. É agora que é necessário dirigir um cartão vermelho definitivo ao G8 e à OMC, sem esquecer o FMI e o Banco Mundial, temporariamente fora do jogo internacional. Não para colocar outros actores trabalhando no mesmo sentido, mas para alterar radicalmente a lógica que defendem.
[1] Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Reino Unido, Rússia.
Eric Toussaint e Damien Millet
http://www.infoalternativa.org/autores/toussaint/toussaint019.htm
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