quinta-feira, outubro 05, 2006

O ensino da filosofia

Um semanário noticiava há poucos dias que várias licenciaturas do ensino superior, incluindo a própria licenciatura em Filosofia, iriam ficar impedidas de exigir o exame a esta disciplina como prova de acesso aos seus cursos, devendo optar por exames de outras matérias como a História, Português ou Geografia.Das 357 licenciaturas que exigiam a Filosofia como prova de acesso, todas vão ficar privadas de o fazer por decisão do Ministério da Educação através da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior.De há muito que a política educativa em Portugal navega num mar tormentoso a bordo de uma nau sem rumo definido.Subliminarmente, porém, a anafada burocracia do Ministério da Educação, em que nenhum governante parece ter mão, lá vai impondo, ao melhor estilo do moderno “eduquês”, sucessivas reformas e contra-reformas, doses maciças de didáctica e pedagogia e um imparável resvalo para a chinela da tecnocracia.Não tarda e a formação filosófica deixará de fazer parte dos curricula do ensino secundário, quando no ensino superior o número de cursos e de estudantes tem vindo a declinar irreversivelmente.A Filosofia como saber autónomo corre assim o risco de desaparecer do panteão do conhecimento, quer na sua componente formativa geral enquanto disciplina do secundário, quer mesmo enquanto ramo autónomo de formação superior, e os seus cultores remetidos ao estatuto de um escol bizarro e minoritário, que na verdade já o vem sendo na representação social que dele faz o vulgo, e, ao que parece também, alguns dos mais altos comandos da nação.A Portugal tem faltado um modelo educativo coerente e consistente.A educação de outros tempos privilegiava muitas vezes a memorização acrítica dos conhecimentos, considerava a didáctica e a pedagogia artes menores, estabelecia, ainda que só implicitamente, uma rígida hierarquização dos saberes, distinguindo claramente, através da segregação do ensino técnico-profissional, o saber-fazer de vocação mais profissionalizante da preparação mais geral e teorética do ensino secundário tradicional, antecâmara do acesso à universidade.Esse modelo convinha ao espírito obscurantista e elitista da época que olhava de soslaio o questionamento crítico e prolongava no sistema de ensino o imobilismo social do regime, reproduzindo-o e fortalecendo-o.Apesar dos seus múltiplos defeitos essa escola que as gerações com mais de 40 anos ainda conheceram era disciplinadora e exigente, rigorosa na preparação e na progressão dos alunos, cumprindo assim com razoável eficácia o seu principal papel social, o de ensinar e aprender.A escola actual tem vindo a claudicar naquilo que é a sua função primária.A massificação do ensino em todos os graus, sem dúvida desejável e imperiosa face aos preocupantes níveis de analfabetismo e iliteracia, não foi capaz de preservar a qualidade e o rigor.Redundou na facilitação e no nivelamento por baixo, deixou de imperar a disciplina e o respeito pela hierarquia escolar – não a disciplina imposta pelo medo das represálias ou um timorato temor reverencial, mas a disciplina indispensável à aquisição metódica e esforçada de todo o saber.O ensino técnico-profissional, agora em vias de reabilitação, sofreu um rude golpe, gerando fortes desequilíbrios na estrutura do emprego.A docência perdeu prestígio social e o seu magistério atraiu muitos profissionais sem vocação, que as dificuldades do mercado de trabalho e a facilidade de acesso ao emprego público propiciaram.Pede-se hoje ainda aos docentes que, além de educadores e pedagogos, pois ensinar é antes de mais deter sólidos conhecimentos sobre as matérias lectivas e transmiti-los eficazmente, que sejam psicólogos, educadores e assistentes sociais, forçados que se sentem em substituir muitas vezes a família na socialização e inclusão social do aluno, no combate ao abandono e ao insucesso escolar e outras maleitas do corpo social. Ficou e está por fazer um verdadeiro debate sobre o nosso modelo educativo, debate afinal sobre a filosofia da educação.Debatem-se as colocações e a mobilidade dos professores, o estatuto da carreira docente, o encerramento de escolas, a existência ou não de exames neste ou naquele ciclo, matérias que naturalmente importam à gestão do sistema de ensino, porém acessórias face ao debate essencial.O que deve ser a escola, que deve ensinar, que deve ser afinal educar, numa sociedade livre, plural, aberta e democrática.Aquilo que deveria ser uma discussão pública, aberta e participada e lançar os caboucos de um verdadeiro pacto de regime para a educação, é de modo sub-reptício decidido no silêncio dos gabinetes.O verdadeiro debate a empreender é se queremos uma escola funcionalizada e espartilhada, subjugada ao peso da “filosofia espontânea” do materialismo, da tecnocracia e do mais puro economicismo, ou se queremos uma escola que ensine cada um a pensar, a questionar e a questionar-se, a conhecer e a conhecer-se, a formar uma vontade livre e esclarecida, a optar entre o certo e o errado, entre o verdadeiro e o falso, a decidir em consciência o sentido da sua vida e o seu papel no país e no mundo.A morte da filosofia bem pode ser o prenúncio da morte do espírito.No universo das ciências todas são mais úteis, nenhuma porém é mais importante que a Filosofia.
Aristóteles tinha razão.

Rui Pedrotohttp://www.oprimeirodejaneiro.pt/?op=artigo&sec=9bf31c7ff062936a96d3c8bd1f8f2ff3&subsec=&id
=f88006f0a96e04e6294b3d02edb9b9fe

Sem comentários: