quinta-feira, novembro 02, 2006

As memórias antagonistas do Kosovo

“Multietnicidade”, “direito ao regresso dos refugiados”, “protecção das minorias”: esta é a orientação definida pela Cimeira Europeia de Junho tendo em vista as conversações sobre o estatuto do Kosovo, que deverão iniciar­‑se este ano. Para lá das suas releituras nacionalistas, a história incita a que se ponha fim ao secular jogo pendular entre kosovares sérvios ortodoxos e albaneses muçulmanos, para garantir finalmente os direitos de todos.

A poucos quilómetros de Pristina, capital do Kosovo, encontram-se frente a frente dois memoriais. Uma torre celebra a batalha de Kosovo Polje, perdida, face ao invasor turco, no dia 28 de Junho de 1389 por uma coligação de povos cristãos dos Balcãs, chefiada pelo príncipe sérvio Lazar Hrebeljanovic. Foi no local onde ocorreu essa batalha, no lugar chamado Gazimestan, que Slobodan Milosevic pronunciou, a 28 de Junho de 1989, o seu discurso de reabilitação do nacionalismo sérvio, assinando ipso facto a morte da Jugoslávia perante quase um milhão de sérvios.

Dez anos mais tarde, a 28 de Junho de 1999, monsenhor Pavle, patriarca da Igreja ortodoxa sérvia, celebrou neste mesmo lugar, perante um punhado de fiéis, o apelo (ofício dos defuntos) em memória do príncipe Lazar, sob apertada protecção dos militares da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) que tinham acabado de penetrar no Kosovo.

Perto dali ergue-se a turbe, túmulo do sultão Murad, o outro protagonista da batalha de 1389. Este belo edifício, que um jardinzinho rodeia, é o tradicional lugar de devoção dos muçulmanos do Kosovo. Desde há séculos, a função de turbetar (guarda do túmulo) é transmitida de pai para filho na mesma família, de origem turca. O último turbetar faleceu em 2001, sendo agora a sua viúva que assume esse cargo. Esta mulher é bósnia, eslava muçulmana do Sandjak de Novi Pazar. Apesar de ter contraído matrimónio com um turco do Kosovo, nunca aprendeu a língua albanesa e não esconde a animosidade que tem pelos “shiptari”, nome que os sérvios e outros eslavos do Sul dão, com desprezo, aos albaneses. No interior da turbe, uma árvore genealógica expõe a linhagem dos sultões osmanlitas. A turbe é pois uma espécie de monumento relíquia de um Estado há muito desaparecido, o Império Otomano.

Seis anos depois dos bombardeamentos executados pela OTAN na Primavera de 1999, o Kosovo continua a ser o principal centro de tensões dos Balcãs. Os bloqueios políticos remetem para diferentes interpretações da sua história, situando-se o Kosovo na encruzilhada das memórias antagonistas dos Balcãs, a memória sérvia e a memória albanesa, mas também as de todos os impérios e de todos os povos que ali se cruzaram.

Em princípio, as posições de uns e outros são inconciliáveis. Os albaneses só querem ouvir falar de independência, que para os sérvios é uma perspectiva inaceitável. Com efeito, o lugar que o Kosovo ocupa, desde há mais de um século, nos imaginários nacionais destes dois povos, é em grande medida sobredimensionado.

Para os sérvios, o Kosovo tem origem no núcleo territorial controlado a partir do século XII pela dinastia principesca dos Nemanjic. O filho mais novo do fundador da dinastia, monge do monte Atos com o nome de Sava, estabeleceu a autonomia da Igreja sérvia, reconhecida em 1219. O Kosovo encontrava-se também no centro de gravidade do Império do czar Dusan, proclamado em 1346. Alguns dos maiores mosteiros sérvios ortodoxos encontram-se no Kosovo, tais como o de Visoki Decani ou o de Gracanica. E na cidade de Pec está instalada a sede da Igreja sérvia ortodoxa. O patriarca de Pec simboliza a autocefalia – ou seja, a independência eclesiástica – da ortodoxia sérvia. O patriarca, mesmo que resida em Belgrado, continua a arvorar o título de «patriarca de Pec», sendo-lhe simbolicamente atribuídos no Kosovo o seu cargo e respectivas funções.

Com a batalha de Junho de 1389, o Kosovo simboliza também o desaparecimento político da nação sérvia. Lembram os historiadores que o resultado dessa batalha não foi decisivo, porque a vitória turca de Marica, em 1371, já tinha aberto as portas dos Balcãs aos conquistadores otomanos. Por outro lado, em 1389 o príncipe sérvio Lazar Hrebeljanovic comandava um exército onde se encontravam destacamentos de todos os povos cristãos dos Balcãs, como os bósnios do rei Tvrtko, não tendo pois o exército do príncipe Lazar um cunho “nacional” sérvio, termo anacrónico na Idade Média.

A batalha do Campo dos Melros (Kosovo Polje) passou rapidamente a ocupar um lugar muito importante no imaginário nacional sérvio, com canções populares celebrando as proezas dos heróis dessa batalha, segundo o modelo das canções de gesta da Idade Média ocidental.

Mas a passagem desta memória religiosa e popular da batalha à afirmação duma reivindicação política sérvia do Kosovo só se deu no século XIX. A partir dos anos de 1850, o principado sérvio, autónomo desde 1830, procurou estender-se para o sul, orientação estratégica definida pelo ministro Ilija Garasanin, o “Bismarck sérvio”, no seu famoso Esboço (Nacertanje). Com efeito, o império dos Habsburgos bloqueava no Norte e no Oeste as perspectivas de expansão da Sérvia, ao passo que nos territórios ainda sob domínio turco lavravam repetidas revoltas e contestações nacionais cada vez mais virulentas.

O nacionalismo sérvio do século XIX irá pois apoiar-se na tradição literária e religiosa relativa ao Kosovo para justificar as suas reivindicações políticas, sendo assim o mito transformado em reivindicação territorial pelo nacionalismo moderno. O quinto centenário da batalha de Kosovo Polje, comemorado em 1889, foi a ocasião escolhida para afirmar este novo estatuto político do Kosovo. Ao passo que o mito era até então celebrado pela Igreja ortodoxa, nomeadamente devido à opção mística do príncipe Lazar [1], na sua reescrita esta limitou­‑se a ter um papel marginal. É certo que a Igreja sérvia, privada do seu centro de Pec desde a supressão do patriarca em 1776, e tendo-se por isso retirado para Sremski Karlovci, na Voivodina, então território austríaco, esteve pouco implicada na emergência moderna do Estado sérvio.

RELEITURAS NACIONALISTAS

Todo o problema reside em que ao mesmo tempo o nascente nacionalismo albanês também se irá desenvolver no Kosovo. A Liga de Prizren, em 1878, representa de facto a primeira manifestação desse nacionalismo albanês contemporâneo. Muito integradas nas estruturas do Império Otomano, as populações albanesas dos Balcãs não foram de imediato tocadas pela emergência do nacionalismo, que no século XIX se afirma em toda a Europa. Ao mesmo tempo que as revoltas dos povos cristãos faziam vacilar o Império turco, as reivindicações dos delegados albaneses reunidos em Prizren continuaram a ser ambíguas. Pretendiam ser súbditos leais, dedicados à conservação do Império, ao mesmo tempo que reivindicavam uma reunificação e uma autonomia administrativa dos territórios albaneses. Ao lado duma grande maioria de muçulmanos, havia também alguns delegados católicos, o que sublinha o carácter não confessional da emergência política da nação albanesa.

A concomitante afirmação dos dois nacionalismos, num período de grave crise do Império Otomano, provocou as primeiras violências “inter­‑étnicas” no Kosovo. Ao passo que os camponeses sérvios e albaneses tinham coabitado durante séculos sem grandes confrontos, a partir do fim do século XIX as violências multiplicaram­‑se, desencadeando o infernal mecanismo da vingança. A realidade plurissecular duma coexistência regida pelas regras subtis da “boa vizinhança” (komsiluk) não poderá resistir à afirmação moderna das nações.

A partir do momento em que os dois nacionalismos se estruturam e desenvolvem reivindicações perfeitamente inconciliáveis a respeito do Kosovo, ambos procedem também a reinterpretações contraditórias da história dessa região do mundo.

Num tal recurso ao passado, os albaneses partiram com sérias deficiências. Com efeito, a toponímia do Kosovo é em grande parte eslava. Nos nossos dias, as formas “albanesas” dos nomes de lugares, cujo emprego os nacionalistas querem generalizar, são muitas vezes formas recentemente albanizadas de nomes eslavos. Obrigados a reconhecer esta realidade, os albaneses explicam-na com a violência da “colonização” eslava a partir da Idade Média, sublinhando que os sérvios terão chegado “tardiamente” à região.

Os albaneses sublinham também, naturalmente, as políticas de repovoamento organizado do Kosovo, nos anos de 1930 e nos anos de 1990, embora essas duas vagas de populações nunca tenham passado de alguns milhares de pessoas, as quais saíram todas do Kosovo a partir de 1999.

Os albaneses sublinham também a sua dimensão de “povo autóctone”, exaltando as suas raízes ilírias. A antiga tribo dos ilírios povoou uma grande parte dos Balcãs ocidentais, de tal modo, aliás, que a maior parte dos povos desta região tem um importante substrato ilírio, nomeadamente nas zonas costeiras da Albânia, do Montenegro ou da Dalmácia. Mas nada permite afirmar um elo privilegiado entre os ilírios da Antiguidade e os actuais albaneses. Esse elo, proclamado pelos historiadores militantes, tem sobretudo o objectivo de exaltar o carácter “autóctone” dos albaneses, que desse modo podem apresentar-se como “o povo mais antigo da Europa”, chegando mesmo a comparar-se aos gregos [2]. Seja como for, a presença dos eslavos na região não é anterior às migrações dos séculos VI e VII. Se a história sérvia se desenvolveu depois no Kosovo, se a toponímia da região é eslava, pouco interessa, porque isso resultaria, na óptica militante albanesa, de uma «conquista colonial» [3]... Permitindo que os nacionalistas albaneses concluam que os sérvios não têm “direito nenhum” ao Kosovo.

Os sérvios desenvolveram teorias paralelas, sublinhando que a vantagem demográfica dos albaneses só surgiu de facto a partir do século XX, não correspondendo pois o fenómeno a uma evolução natural, mas sim à invasão em massa de imigrantes oriundos das montanhas do Norte da Albânia. Os círculos nacionalistas sérvios anticomunistas acusam aliás o regime do marechal Tito de ter favorecido essa invasão depois de 1945, para enfraquecer a Sérvia e o povo sérvio, ao mesmo tempo que certas leis restritivas impediram os colonos dos anos de 1930 de regressar ao Kosovo. Na realidade, porém, as únicas leis que alguma vez foram votadas diziam respeito à reforma agrária, tendo efectivamente podido ser, em alguns casos, desfavoráveis aos colonos sérvios ou montenegrinos que se haviam estabelecido ali no período de entre as duas guerras e que ficaram sem as suas terras.

Uma outra “vantagem” sérvia que os albaneses contestam são as igrejas e os mosteiros ortodoxos. Os nacionalistas albaneses explicam facilmente que estes importantes lugares da ortodoxia terão sido construídos sobre as ruínas de igrejas e mosteiros católicos, naturalmente mais antigos, lembrando que antes da sua conversão ao islão, bastante tardia (só se generalizou nos séculos XVII e XVIII), os albaneses do Kosovo eram católicos.

A adopção oficial desta teoria nacionalista pela diocese católica do Kosovo bloqueia todas as perspectivas de diálogo ecuménico. Segundo os monges sérvios, confinados em mosteiros transformados em fortalezas entrincheiradas, protegidas pelos soldados da OTAN, os extremistas albaneses têm em vista uma dupla estratégia de denegação: embora quase 150 lugares de culto ortodoxos tenham sido alvo de vandalismo, profanados ou inteiramente destruídos desde Junho de 1999, os albaneses chegam a pôr em causa a identidade ortodoxa dos mosteiros ainda intactos...

Esta polémica mostra perfeitamente que a batalha pela memória continua a ser acesa. Em 2002, os deputados sérvios decidiram boicotar o Parlamento do Kosovo, na sequência duma notória provocação que não suscitou reacções suficientemente vigorosas da autoridade internacional de tutela; com efeito, o vestíbulo da Assembleia Nacional foi decorado com frescos que evocavam a história do povo albanês, “esquecendo” assim a história dos outros povos do Kosovo. Na realidade, cada um dos dois povos continua a afirmar o carácter exclusivo dos seus próprios direitos sobre o Kosovo. A presença dos “outros” só pode ser o resultado duma usurpação, da violência ou da colonização.

A tardia islamização dos albaneses do Kosovo permitiu também que certas correntes nacionalistas, em particular em torno de Ibrahim Rugova, presidente do Kosovo, apresentassem essa conversão ao islão como um “acidente da história”. O catolicismo seria a verdadeira religião ancestral dos albaneses do Kosovo e permitiria até fundar a sua especificidade identitária relativamente aos albaneses da Albânia. Nesta construção ideológica, a muito pequena comunidade católica do Kosovo (menos de 5 por cento da população albanesa) tem uma posição privilegiada, bem como as comunidades de tradição “cripto-católica”, que praticam, para escapar às discriminações, um islão de fachada ao mesmo tempo que continuam a ser católicas [4].

Na Albânia, na construção da identidade nacional foi atribuído um papel às comunidades bektashitas. Esta ordem de dervixes era particularmente influente no Sul da Albânia, cadinho de numerosos intelectuais implicados no movimento do “renascimento nacional” (rilindja) do fim do século XIX e do início do século XX. Muito heterodoxo relativamente ao islão sunita, o bektashismo chegou mesmo a ser visto como uma confissão específica.

Mas a realidade actual é muito amarga. Desde 1999, a comunidade católica do Kosovo tem sido vítima de um certo número de ataques físicos, e os dervixes, quer pertençam à ordem dos Bektashitas ou a outras confrarias, são particularmente visados pela intolerância dos que procuram impor a norma dum sunismo rigorista. Dezenas de turbe [5] foram destruídas perante a indiferença geral, apesar de representarem uma parte essencial do património histórico e espiritual do Kosovo.

Também aqui prevalece uma dupla lógica. Ibrahim Rugova tenta fundar a identidade de uma Dardânia – do nome da província romana cujo território correspondia em parte ao Kosovo actual – que teria as suas raízes no passado católico da região, e alguns intelectuais, nomeadamente os que se movem em torno da revista Java, professam um anti­‑islamismo militante. Estes intelectuais, como Milgjen Kelmendi, procuram também reabilitar as variantes locais da língua albanesa, que foi uniformizada segundo a norma tosque, em vigor no Sul da Albânia. Tais esforços têm um objectivo concomitante: afirmar a identidade nacional dos kosovares, distinta da dos albaneses da Albânia.

Este projecto político foi elaborado a partir da década de 1980, e sobretudo na década seguinte, durante a resistência ao regime sérvio de Milosevic. Com efeito, os intelectuais filiados na Liga Democrática do Kosovo não tinham como objectivo uma “Grande Albânia”, de que estão muito mais próximas as correntes oriundas da guerrilha do Exército de Libertação do Kosovo (UCK). Mas semelhante projecto está em vias de ser varrido pelas reivindicações e unificação das terras albanesas dos Balcãs e pela afirmação de um islão sunita normalizado, que tenta afirmar a sua influência na sociedade. Poder-se-á imaginar um movimento de “pêndulo” histórico? O Kosovo foi integrado no reino da Sérvia em 1913. No quadro da Jugoslávia monárquica, de 1918 a 1941, foram levadas a cabo enérgicas políticas de centralização e servização do Kosovo em detrimento das populações albanesas, que se vingaram durante a Segunda Guerra Mundial. O Kosovo fora esquartejado, ficando o sector mineiro do Norte sob directa administração alemã e tendo sido atribuído um outro sector aos ocupantes búlgaros, enquanto a maior parte do território era atribuída à “Grande Albânia”, criada sob a égide da Itália mussoliniana.

DOMINAÇÕES ALTERNADAS

O movimento plurinacional dos partidários comunistas do marechal Tito só tardiamente se desenvolveu no Kosovo; na Segunda Guerra Mundial foram sobretudo os tchetniks (ultranacionalistas sérvios) que se opuseram às forças de ocupação e aos seus colaboradores albaneses [6].

Por conseguinte, os períodos de dominação de um povo pelo outro alternam­‑se: predominância sérvia de 1918 a 1941, predominância albanesa de 1941 a 1945, predominância sérvia nos primeiros tempos da Jugoslávia socialista, visto o ministro do Interior, o sérvio Aleksandar Rankovic, ter executado uma política centralizadora muito suspeitosa para com qualquer manifestação susceptível de apoiar o reemergir do nacionalismo albanês. A queda de Rankovic (1965), e sobretudo a nova Constituição jugoslava descentralizadora de 1974 voltaram a dar vantagem aos albaneses. Entre 1974 e 1981, o Kosovo passou por uma “idade de ouro”, sob a direcção de quadros comunistas locais, na sua grande maioria albaneses.

No entanto, o desenvolvimento das reivindicações nacionais albanesas acabou rapidamente por pôr em causa esse frágil equilíbrio. As manifestações albanesas de 1981, violentamente reprimidas, visavam elevar o Kosovo ao nível de república federada da Jugoslávia, e as duas orientações políticas desenvolveram-se a partir desse momento fundador. Ao mesmo tempo que os professores da Universidade de Pristina, criada em 1968 e centro do renascimento nacional, afirmavam a identidade específica do Kosovo, os seus alunos aderiam aos movimentos clandestinos que preconizavam a “Grande Albânia”, controlados pela Albânia estalinista de Enver Hoxha. Na década de 1990, destes movimentos, muito implantados na diáspora albanesa da Europa Ocidental, nasceu o UCK [7].

Da supressão da autonomia, em 1989, ao ano de 1999, o regime sérvio de Slobodan Milosevic fez pesar sobre o Kosovo uma mão de ferro. Mas a estratégia por que optaram os dirigentes albaneses, congregados na Liga Democrática do Kosovo (LDK) de Ibrahim Rugova, a “resistência não violenta passiva”, teve como resultado a edificação de uma contra­‑sociedade, sem dúvida respondendo à violência de Belgrado, mas que também comprometeu a possibilidade duma futura reconciliação.

Essa criação duma contra-sociedade albanesa foi acompanhada por uma intensa propaganda no estrangeiro, visando comparar o estatuto do Kosovo com uma situação colonial, em que a população “indígena” (albanesa) teria sido oprimida por um poder estrangeiro. Nesta perspectiva, não faltaram as abordagens demográficas, explicando­‑se correntemente que mais de 90 por cento dos habitantes do Kosovo eram albaneses, quando os números do último recenseamento efectuado (1981) apenas indicavam 81 por cento.

Os historiadores sérvios teorizaram os direitos específicos do seu povo opondo os direitos “históricos” da Sérvia aos “direitos demográficos” dos albaneses, nitidamente maioritários, pelo menos desde meados do século XX. Entre os sérvios e entre os albaneses, os manuais escolares contribuem grandemente para reproduzir e fortificar estas contraditórias interpretações do passado. Nos grandes reveses do protectorado internacional do Kosovo dever­‑se-á seguramente incluir a ausência de qualquer reforma efectiva dos conteúdos dos programas escolares, bem como de qualquer iniciativa visando levar as diversas comunidades a ultrapassar as suas projecções identitárias antagonistas [8].

O objectivo oficial dos bombardeamentos efectuados pela OTAN na Primavera de 1999 consistiu em fazer cessar as violências do exército e da polícia sérvios, as quais por sua vez respondiam ao desenvolvimento da guerrilha albanesa. Mas os albaneses viram na acção da Aliança Atlântica um apoio à sua reivindicação de independência e receberam os soldados da OTAN como “libertadores”; estes últimos nada fizeram para impedir a “correspondente limpeza étnica” de que foram vítimas os sérvios e as outras comunidades não albanesas. Na realidade, as forças ocidentais utilizaram as reivindicações albanesas para justificar os seus próprios objectivos, que consistiam, entre outras coisas, em enfraquecer o regime sérvio de Milosevic.

Terão agora os sérvios “perdido” o Kosovo? No caso de a comunidade internacional se empenhar com vista a um reconhecimento da independência do Kosovo, será muito provável um novo êxodo dos cerca de 100.000 sérvios que continuam a viver naquilo a que não podemos deixar de chamar um “protectorado internacional”.

Optando por privilegiar e, por isso mesmo, por legitimar um discurso nacional, a comunidade internacional tem uma responsabilidade esmagadora, na medida em que ela própria desprezou os valores que proclama, os de uma sociedade aberta e tolerante. Ao favorecer a emergência de um Kosovo exclusivamente albanês, sem querer até agora reconhecer formalmente a sua independência, a comunidade internacional colocou­‑se ainda por cima numa terrível armadilha, que bem pode estender-se a todas as populações do Kosovo e arrastar a região para uma nova espiral de violência.

[1] Na véspera da batalha, um anjo terá perguntado ao príncipe Lazar Hrebeljanovic se ele desejava alcançar a vitória e o reino deste mundo, ou se preferia o reino espiritual. Lazar optou pela segunda possibilidade, adoptando o modelo de Cristo.
[2] Esta projecção no passado da nação moderna é uma constante dos nacionalismos. Podemos citar, por exemplo, a exaltação das origens “dácio-romanas” dos romenos, levada a cabo no regime de Nicolae Ceausescu. Estes mecanismos foram estudados, entre outros, por Ernest Gellner, Nações e nacionalismo, Gradiva, Lisboa, 1993.
[3] As teses albanesas encontram-se resumidas por Rexhep Qosja (traduzido por Christian Gut), La Question albanaise, Fayard, Paris, 1995.
[4] Os católicos concentram-se no oeste do Kosovo, nas regiões de Prizren e Djakovica, ao passo que a tradição do cripto­‑catolicismo foi particularmente viva em Vitina ou em Gnjilane.
[5] As turbe são os túmulos dos santos dervixes cujo poder de intercessão é reconhecido (como acontece com os marabus na África do Norte) e que são objecto da devoção popular (NT).
[6] O pai de Rugova, membro do movimento Balli Kombetar, foi assim executado no quadro das políticas de depuração levadas a cabo no fim da guerra.
[7] Ler Christophe Chiclet, Aux origines de l’Armée de libération du Kosovo, Le Monde diplomatique, Maio de 1999.
[8] Besnik Pula, Kosovo: l’école et l’expérience de l’Etat, Le Courrier des Balkans, 28/10/2004.
Jean-Arnault Dérens
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/europa/e042.htm

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