sexta-feira, novembro 03, 2006

Camponeses etíopes na tormenta eleitoral

Apesar da vitória que a oposição obteve na Etiópia nas eleições legislativas de 15 de Maio, o governo de Meles Zenawi arrogou-se a maioria no Parlamento. A democratização de um poder poupado pela “comunidade internacional” está a ser objecto de graves ataques; a repressão das manifestações de 15 de Junho terá causado 37 mortos e centenas de feridos. Os resultados definitivos do escrutínio devem ser proclamados a 8 de Julho, depois de concluídas as investigações exigidas pela oposição.

«Não aguentamos mais!» Em vésperas das eleições legislativas de 15 de Maio de 2005, a opressão exercida pelo Estado­‑Partido da Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (FDRPE) tornou-se insuportável para a comunidade de cerca de cinco mil camponeses coptas e amaras. Debre Sina, a vila mais próxima, situada a 200 quilómetros a nordeste de Adis-Abeba, fica a várias horas a pé. As pessoas deslocam-se até lá ao longo duma vereda difícil, cortada por rios que ficam intransponíveis quando chove muito.

Mesmo que a pobreza possa ser pior noutras paragens, na Etiópia ela é imensa [1]. A fome crónica só poupa a minoria dos que se dizem «ricos» por terem três refeições diárias durante todo o ano. «Se a gente comesse carne uma vez por mês», lança um velho cultivador, «isso via-se na nossa cara!»

A densidade ultrapassa os 150 habitantes por quilómetro quadrado. Esta forte pressão populacional obriga a que se cultivem terras cada vez mais pobres. A adversidade e a degradação do ambiente, bem como o passivo do atraso técnico, levam a que cada camponês cultive, em média, 0,8 hectares, fazendo uma colheita de cerca de 480 quilos de cereais para cinco a seis pessoas, quando seriam precisos 600 a 700 quilos só para as alimentar correctamente. «Vivemos cada vez pior», declaram quase todos os camponeses. Nas zonas rurais, o rendimento anual por habitante era nitidamente superior em 1974, no fim do reinado do imperador Hailé Selassié.

No entanto, a Etiópia – cujo homem forte é o primeiro-ministro Meles Zenawi, chefe da guerrilha que em 1991 derrubou a ditadura militar­‑comunista de Mengistu Hailé Mariam, o Derg – é um dos raros países do Sul que assenta o seu desenvolvimento na mobilização das zonas rurais, onde vive 85 por cento da população. O país é regido por uma «democratização revolucionária», tida como superior à democracia representativa «burguesa» por implicar as comunidades rurais nas decisões do dia a dia a respeito dos seus próprios problemas, adaptando estas, todavia, as orientações que vêm de cima. Na realidade, quem ordena é o mengist – o governo, o partido quase único, o Estado –, mas também qualquer um dos seus membros e agentes. O camponês, o gebäre – literalmente, «aquele que é obrigado ao trabalho penoso» –, limita-se a executar. Os trabalhos colectivos e as contribuições “voluntárias”, que são obrigatórias, equivalem, juntamente com as taxas e impostos diversos, pelo menos a três meses do labor anual do cultivador. Um dirigismo tentacular, implacável e arrogante, esteriliza a mobilização da força de trabalho do camponês, refreia o seu espírito empreendedor quando este desponta, encerra-o numa subordinação infantil, paralisando, em suma, as suas capacidades pessoais. O afrontamento larvar do mengist e do gebäre neutraliza os seus respectivos potenciais de desenvolvimento.

A terra, questão de vida ou de morte, continua a ser propriedade pública, na linha recta da história: quem possui a terra, detém o poder. Os cultivadores têm apenas o usufruto dela, que sabem ser precário. A pretexto de que terá abusado da sua posição, a birokrasi – aqueles que assumiram quaisquer responsabilidades no tempo do Derg – foi grandemente espoliada pela redistribuição fundiária de 1997. Essa “punição” de cerca de 10 por cento da população continua a ser “uma lição para todos”. Além disso, as autoridades locais podem bloquear à vontade o acesso a serviços vitais ou aos empréstimos, que a bem dizer monopolizam. Esta dupla vulnerabilidade aliena inteiramente o camponês: «Se a gente quiser sobreviver, temos de fazer o que as autoridades nos dizem.»

Apesar de toda a gente estar farta, o escrutínio de 15 de Maio de 2005 apresentou-se de início como os anteriores: uma formalidade para o regime, e mais uma penosa obrigação para os resignados eleitores rurais. «Se nós somos dirigidos por este governo, como podemos nós votar contra ele?» É certo que a passagem das cidades para a oposição fora amplamente diagnosticada. Ao lado das Forças Democráticas Etíopes Unidas (FDEU), coligação “federalista” com uma base sobretudo étnica, implantada numa terça parte do Sudeste do país, onde vive mais de metade da população, a recente Coligação para a Unidade e a Democracia (CUD), liberal e mais “unitária”, progrediu de forma fulgurante.

O denominador comum dos seus partidários – urbanos, intelectuais, dos círculos de negócios, desempregados aos milhões – reside em que todos execram um poder que consideram ser urna oligarquia política e financeira, onde estranhamente se misturam negociatas, um velho fundo abissínio de cultura feudal e um remanescente do marxismo­‑leninismo (na versão albanesa) por que se guiou a sua guerrilha [2]. Denunciam neste poder a preponderância dos tigres (7 por cento da população), que agudiza perigosamente as tensões étnicas, visto uma ala da Coligação cultivar o espírito de vingança amara, a etnia dominante da época imperial.

Em contrapartida, a FDRPE afirma ter de tal modo acarinhado as zonas rurais que estas lhe são inteiramente favoráveis. Na verdade, domina-as com mão de ferro. Mas ninguém tinha pensado que, segura de si até à cegueira, a FDRPE adoptasse uma atitude suicida abstendo-se de fazer campanha abrindo assim à oposição um amplo campo de acção. «O poder que tem as armas deixa-se criticar por opositores sem armas, até diante das repartições da administração!», exclamou a população quando a oposição se apresentou pela primeira vez em público em Debre Sina. Espantando-se logo a seguir: «E a polícia não faz nada!» Mas à estupefacção seguiu­‑se o medo. Os que se atreviam a ouvir os oradores da oposição faziam-no o mais longe possível, para não serem identificados. «Temos guerra! Na nossa história não pode haver dois mengist ao mesmo tempo!» Alguns trataram de ir pôr o gado a bom recato e esconder as suas parcas posses, ao mesmo tempo que censuravam: «O mengist cometeu um erro, deixando vir para aqui a oposição!»

COLAPSO DA HIERARQUIA TRADICIONAL

Mas a birokrasi entreviu a sua vingança. A sua dupla punição – espoliação fundiária e segregação política – não é bem aceite por uma população que em geral continua a considerá-la a sua elite legítima, contrariamente às autoridades locais nomeadas pelo poder. O seu prestígio social e a sua relativa abastança diminuem a sua vulnerabilidade. Só ela afirmou desde logo, juntamente com alguns camponeses “ricos”, que assumia «o risco» de votar na oposição. Tornando-se até a sua vanguarda.

A guerra, porém, não aconteceu. A oposição foi ao encontro do eleitorado rural. Mas devido à fraqueza da primeira, conjugado com a lonjura e a dispersão do segundo, muitos camponeses nada ficaram a saber do programa oposicionista, a não ser por rumores. A dúzia de debates na rádio e na televisão, que tiveram um impacte enorme nas cidades, foram um fracasso entre os camponeses; os poucos que os ouviram confessaram que «eram muito complicados» e que já os tinham «esquecido».

Mas a verdade é que a oposição esteve presente, e o poder ausente. E só por isso a tradicional hierarquia desmoronou-se. «Ele [o poder] anda tão mal que até tem de discutir com os seus inimigos, sem sequer poder eliminá­‑los!» Acima de tudo, esse poder foi dessacralizado. O autocratismo não é apenas um dado imanente, é de essência divina, o braço de Deus na Terra. O primeiro excede o segundo unicamente «porque dá a vida e decide a morte», manda «na chuva e no sol». De maneira que pudemos ouvir coisas como esta: «Deus decidiu que o tempo deste mengist tinha chegado ao fim», muitas vezes seguida de «A oposição vai substitui-lo». A obediência e a sacralização alteraram-se. «Visto fazermos parte da oposição», diziam os que dela se reclamavam, «já não obedecemos a este mengist».

Apercebendo-se da impertinência, o Partido-Estado contra-atacou a três semanas do escrutínio. Quase todos os funcionários, membros da FDRPE, foram mobilizados para as zonas rurais. Mas não se mostraram convincentes. «Nós desenvolvemos as zonas rurais!», matraqueavam eles. Os camponeses retorquiam­‑lhes: «Estas estradas, estas escolas, estes centros de saúde, fomos nós que os construímos e pagámos, vocês nem sequer são capazes de os pôr a funcionar.»

A isso seguiu-se então o medo e a chantagem. Em grupos de dois, em geral um miliciano, de Kalachnikov a tiracolo, e um membro da FDRPE – um kadre! – foram de porta em porta com a missão de levar toda a gente a assinar um registo a favor do partido, sob pena de os recalcitrantes arcarem com “as consequências”. «Se vocês se recusarem a assinar, não vão poder continuar a viver aqui, porque nós vamos ganhar». Subentendido: as vossas terras ser-vos-ão retiradas. A maior parte aceitou. Uns aceitaram decidindo ao mesmo tempo votar em segredo na oposição: «Já que a Frente faz batota, também nós vamos fazer batota!» Outros perguntando­‑se: «Eles vieram com armas, a oposição não as tem, como poderá ela proteger-me se eu não assinar?» Muitos temiam que essa aceitação os comprometesse. Apesar do secretismo das cabinas de voto, meios indirectos e misteriosos podiam levar o poder a saber em quem eles tinham votado; e negarem-se, depois de terem assinado aquele papel, agravaria a sua futura punição.

Os boatos iam aumentando, voltando a fazer pairar o espectro duma guerra civil como aquela por que a Etiópia teve de passar no tempo do Derg [3]. Era imensa a perturbação perante o surgimento da oposição e a violência do contra-ataque do poder, que tinha prometido eleições «livres e equitativas». A alternativa do voto, demasiado rápida e confusa, era vista mais como uma obrigação a que as pessoas não podiam furtar-se, do que como uma boa oportunidade. Em absoluto, sem dúvida, escolher um candidato poderia ser um progresso, ainda mais nítido se a alternativa se revelasse benéfica. Mas que calamidade terem de «escolher entre duas más soluções»! Porque o mengist é imutável: «Nada mudou, o landlord, o Derg, a FDRPE, é tudo igual e assim há­‑de ficar». Até os mais informados militantes da oposição pensavam que na melhor das hipóteses os iriam deixar sossegados durante dois ou três anos, crendo que depois disso tudo iria recomeçar como dantes. Felizmente, só faltava entregarem-se a Deus, «que decidirá quem há-de ganhar».

Os camponeses, na sua maior parte, não se decidiram com base na aversão que nutriam pelo regime nem com base na esperança que depositavam na oposição. Tinham um único objectivo: sobreviver. Era isso que decidia a sua conduta, inclusive eleitoral. A questão que se punham era pois a seguinte: quem poderiam eles escolher sem arriscar a vida? A resposta só podia ser uma: o vencedor. O programa do candidato, o balanço que fazia ou as promessas que apresentava eram secundários. Daí a obsessão: «Votar como a maioria» – porque, «se é fácil punirem algumas pessoas, será muito mais difícil punirem toda a gente».

Mas então quem será eleito? Rechaçando as discussões, com medo de se darem a conhecer de forma prematura, só se irão decidir na véspera do escrutínio, ou mesmo na manhã em que forem votar, em grupo, ou melhor, perguntando aos primeiros eleitores, já de volta, quem tinham escolhido. Alguns esperavam até que, como habitualmente, o voto se fizesse à frente de todos, ficando assim a saber quem eleger.

Em Debre Sina e arredores, a oposição obteve 60 a 80 por cento dos sufrágios. A FDRPE não voltou a conquistar ali o terreno perdido. Neste resultado eleitoral, a influência social da birokrasi teve o seu peso, mas o que contou foi sobretudo o seu argumento determinante: a oposição ganhou porque invadiu as cidades, o epicentro do poder. Provou-o a sua manifestação em Adis-Abeba, no dia 8 de Maio, que reuniu «pelo menos quatro milhões de pessoas». Na realidade, provavelmente três vezes menos. Mas a taxa de abstenção, de cerca de 20 por cento, foi apesar de tudo elevada entre os eleitores que temiam ser «punidos» se não votassem. A percentagem dos votos brancos ou nulos atingiu os 32 por cento. Muitos eleitores depositaram na urna boletins de voto voluntariamente inválidos, para não serem acusados de ter optado por um ou outro campo, fosse qual fosse o vencedor. Uma mulher idosa que vivia sobretudo da mendicidade, confessou com grande perspicácia: «Eu fui votar para evitar chatices. Mas, para ter ainda menos chatices, num boletim pus o voto na FDRPE, e no outro votei na oposição.»

À escala nacional, o quase partido único apresentou a sua vitória como um facto consumado logo no dia seguinte ao escrutínio, mal viu que os primeiros resultados revelavam... uma vitória maciça da oposição. Nas semanas seguintes, o secretariado eleitoral “independente” (nomeado pelo actual Parlamento) concedeu «provisoriamente» à FDRPE 302 lugares dos 517 atribuídos, embora a oposição, que apenas obteve 12 lugares, lhe tenha apresentado uma acusação formal de fraudes maciças em mais de trezentas circunscrições. Dois dos dirigentes da oposição foram temporariamente detidos, três mil dos seus quadros e militantes foram presos. No dia 8 de Junho, após a proibição das manifestações, foram mortos 37 manifestantes e simples transeuntes, tendo sido presos uns mil “suspeitos”. O terror da população atenuou a obsessão do poder: que se reproduzisse ali um cenário semelhante ao ocorrido na Ucrânia e na Geórgia.

A oposição contava com os doadores internacionais para obrigar o primeiro-ministro Meles Zenawi, que aqueles adulam, a pôr fim à repressão, tal como contava que eles lhe impusessem uma abertura eleitoral. A ajuda dos doadores representa anualmente quase um terço do produto interno bruto. Mas, na opinião destes, Zenawi nunca abandonará o poder efectivo. Heteróclita e sem experiência, a oposição seria incapaz de assumir o poder e a população tornar-se-ia a primeira vítima dum afrontamento. Por isso, qualquer que tenha sido o veredicto real da votação, ele obriga a um compromisso “legalista”. Meles Zenawi já prognosticou que na sua maior parte as queixas por fraude são «infundadas». É provavelmente demasiado tarde para as examinar como deve ser.
[1] Joseph Stiglitz, “FMI, la preuve par l’Ethiopie”, Manière de voir, n.º 79, Résistances africaines, Fevereiro­‑Março de 2005.
[2] Jean-Louis Peninou, Ethiopie-Erythrée, une paix en trompe l’oeil, Le Monde diplomatique, Julho de 2000.
[3] Gérard Gascom, La Grande Ethiopie, une utopie africaine, CNRS, Paris, 1995.
René Lefort
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/africa/etiopia001.htm

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