quarta-feira, novembro 01, 2006

A África e a reforma das Nações Unidas

De 1 a 5 de Julho, a Líbia acolhe duas reuniões da União Africana, em Sirte e depois em Trípoli, para determinar uma posição comum sobre a reforma das Nações Unidas. Com um eventual lugar no Conselho de Segurança sobre a mesa. Trata-se de uma aposta importante para a afirmação de África na cena mundial. No entanto, apesar de algumas convergências, é provável que os Estados africanos abordem este dossiê de forma desagregada por ocasião da Assembleia Geral da organização, em Setembro.

«A Organização de Unidade Africana (OUA) tem vindo a exigir insistentemente que África, enquanto região geográfica, esteja equitativamente representada nos principais órgãos das Nações Unidas, nomeadamente no Conselho de Segurança, no Conselho Económico e Social e nas instituições especializadas» [1]. Desde a sua criação em 1963, que a OUA reclamava um alargamento da representação africana nas instâncias mundiais. Com efeito, assumindo-se como grande ausente da Conferência de São Francisco em 1945 e sem contar nessa época com mais do que quatro Estados independentes [2], a África teve de aguardar até 1965 para obter cinco lugares não permanentes no Conselho de Segurança, embora partilhados com a Ásia [3].

À medida que as independências se foram sucedendo, o aumento do número de países africanos incitou­‑os a reivindicar maiores responsabilidades no seio das Nações Unidas (ONU). Desde a década de 1960, começou a desenvolver o sonho, algo desmesurado para a época, de alcançar um dia, através de um dos seus representantes, um lugar de membro permanente do Conselho de Segurança.

Em debate desde o fim da Guerra Fria, a reforma da ONU proporciona agora uma ocasião excepcional. Em 1997, na declaração de Harare [4], a OUA considerava oficialmente que os países do continente deveriam ser representados num Conselho de Segurança democratizado, eficaz e transparente. Reclamou pelo menos dois lugares permanentes e cinco lugares não permanentes.

Segundo esta fórmula, os lugares deveriam ser ocupados em nome de África, de acordo com um sistema de rotação fundado sobre critérios estabelecidos pela OUA. A declaração previa também um direito de veto para os Estados do continente que beneficiassem do estatuto de membros permanentes, devendo no entanto esta prerrogativa ser progressivamente suprimida para todos os seus detentores.

Por ocasião da reunião de Abuja. em Janeiro de 2005, os chefes de Estado e de governo da União Africana confiaram a gestão do dossiê a um comité ministerial dito “dos Quinze” [5]. Este tinha como mandato examinar a reforma no seu conjunto e, em particular, o “Relatório sobre as ameaças, os desafios e a mudança” entregue em Dezembro de 2004 pelo Grupo de Personalidades de Alto Nível nomeado pelo secretário­‑geral das Nações Unidas [6]. Duas opções foram então consideradas: a atribuição de dois lugares permanentes e de um lugar não permanente suplementares a África (o continente disporia assim no total de seis lugares); ou a criação de uma nova categoria de lugares, em que o mandato seria de quatro anos renováveis, sistema no qual se concederia a África dois lugares de quatro anos e um único lugar não permanente, embora beneficiasse de seis lugares no total (dois de quatro anos e quatro não permanentes de dois anos não renováveis).

Que cartada lançar sobre a mesa: a da permanência ou a da rotação? Acabando por não optar por qualquer das duas opções, o Comité dos Quinze concordou em exigir pelo menos dois lugares permanentes e cinco lugares não permanentes [7]. Este documento, denominado Consenso de Elzuwini – do nome da cidade da Swazilândia onde foi adoptado –, não exige “mais lugares para África” mas sim a atribuição de lugares permanentes a dois países africanos específicos escolhidos pelo continente. Os Estados africanos insistem, neste quadro, na obtenção do direito de veto, exigência da qual contam fazer, pelo menos, um elemento de negociação. O Conselho Executivo da União Africana – equivalente ao Conselho de Ministros da União Europeia – que ocorreu a 7 e 8 de Março de 2005 criou um Mecanismo de Acompanhamento, chamado “Comité dos Treze” [8]. Este organismo tem como mandato fazer campanha com o objectivo de promover o Consenso de Elzuwini e até mesmo negociar certos aspectos da reforma.

DESPERTAR TARDIO

Apesar das aparências, subsistem profundas discórdias entre partidários dos assentos permanentes e os defensores do sistema de rotação. Na primeira categoria figuram os Estados que consideram, com ou sem razão, ter uma oportunidade real de obter o lugar (a Nigéria e a África do Sul), na segunda categoria, os países que “despertaram” mais tardiamente (o Egipto, o Senegal, a Argélia, o Quénia e a Líbia).

A África foi incapaz de chegar a acordo sobre os critérios de selecção dos Estados. Grosso modo, três critérios parecem poder ser extraídos. O primeiro consiste na experiência em matéria de manutenção da paz e da segurança, em África e no mundo [9]. Esta questão constitui a prerrogativa principal do Conselho de Segurança e também uma preocupação africana. Um segundo critério pode ser procurado na estabilidade política, no respeito pela democracia e pelos direitos humanos. Um terceiro critério poderia dizer respeito à aceitação e à “frequentabilidade” de um ou de outro país relativamente a outros Estados do continente. No entanto, de que forma garantir que os países seleccionados sirvam a causa de África, e não apenas a promoção do seu estatuto individual? Os critérios relativos ao peso económico e demográfico beneficiariam certamente a Nigéria ou a África do Sul.

O presidente do “mecanismo de acompanhamento” encarregou a Comissão da União Africana – que sucedeu à OUA em Julho de 2002 – de preparar um projecto de determinação de critérios com vista ao próximo Conselho Executivo da União Africana na Líbia, a 1 e 2 de Julho, e à reunião de chefes de Estado e de governo, em Trípoli, a 4 e 5 de Julho. Se África conseguir alcançar o seu objectivo, será a primeira vez que países individuais representarão um continente e não apenas eles próprios.

No entanto, é bastante provável que a selecção final dos candidatos para os lugares de membro permanente e não permanente do Conselho de Segurança caiba in fine à Assembleia Geral da ONU. Isto porque o alargamento do Conselho necessita de uma emenda à Carta da ONU, que requer uma maioria de dois terços dos 191 membros da Assembleia Geral, ou seja um total de 128 votos. Por conseguinte, os 53 Estados africanos não podem eleger por si próprios os seus candidatos.

A inexistência de uma estratégia por parte dos africanos é também patente na ausência de acções concertadas, à semelhança do que sucede com outros grupos regionais e com coligações ad hoc formadas por certos Estados [10]. A Nigéria procura uma estratégia comum com o “grupo dos quatro” (G4) – Brasil, Alemanha, Índia e Japão. Em contrapartida, outros países (o Senegal e a Argélia) preferem reportar­‑se apenas ao Consenso de Elzuwini. Outros ainda propuseram mesmo que fossem destacados enviados especiais para as capitais dos cinco membros permanentes para recolher as suas apreciações. Por ocasião da Cimeira na Líbia, o Conselho Executivo da União Africana deverá clarificar as posições, e emitir então recomendações à Assembleia Geral das Nações Unidas. Alguns consideram que a presença de um africano à cabeça da Organização – Kofi Annan é ganês – constituiu uma vantagem.

Não se verá a posição de África hipotecada, nas negociações internacionais, pela fragilidade do Consenso de Elzuwini e pela existência de estratégias individuais? A única iniciativa comum até agora tomada foi o encontro de três personalidades pertencentes ao “mecanismo de acompanhamento” com o secretário-geral das Nações Unidas, a 25 de Março de 2005, para lhe apresentar o Consenso de Elzuwini.

Para além disso, subsiste a dúvida sobre se será conveniente que o “mecanismo de acompanhamento” tome a iniciativa de fazer pressão por parte dos seus membros individuais, em nome do conjunto do grupo, ou se deverá antes designar pequenos grupos encarregues de missões determinadas (convencer cada uma das outras regiões, apresentar ideias, informações e respostas por intermédio de relatórios de missão). Não deverá África confrontar-se com as administrações e os legisladores dos cinco membros permanentes, e com os Estados mais importantes das outras regiões? Em todo o caso, o maior desafio que a posição africana enfrenta actualmente consiste na “consolidação” do Consenso de Elzuwini.

África poderia beneficiar de um apoio chinês em virtude do reconhecimento pioneiro pelo continente da China Popular e da sua penetração promissora no mercado africano [11]. Este apoio arrisca-se no entanto a fugir­‑lhes “por ricochete”, tendo em conta as fortes reservas mantidas pela China sobre a reforma em geral, por causa da candidatura do Japão ao Conselho de Segurança. Poderá África beneficiar do apoio da Europa, por razões não só históricas como pragmáticas (as potencialidades do mercado africano)?

De momento nada aponta neste sentido. A França parece decidida a não revelar qualquer preferência entre os países candidatos, em nome da «reapropriação do processo por parte dos próprios africanos», segundo a fórmula consagrada. Se a maior parte dos comentadores africanos considera que os Estados Unidos pretendem reformar o sistema das Nações Unidas apenas com o intuito de abrir a porta do Conselho de Segurança ao Japão, a posição de Washington será evidentemente determinante. Em todo o caso parece adquirido que os Estados Unidos, que a 17 de Junho se pronunciaram por uma reforma limitada alargando o organismo a não mais que vinte países – e não a 25 como reclama o G4 –, se oporão a qualquer direito de veto para os novos membros permanentes. De momento, os esforços de África apontados a este órgão de decisão mundial permanecem pouco precisos, pouco visíveis, pouco legíveis...

[1] Lucien Manokou, “L’Afrique et le Conseil de sécurité de l’ONU (1946-1990)”, Guerres mondiales et conflits contemporains, n.º 196, Paris, Dezembro de 1999, p. 10.
[2] Etiópia, Libéria, Egipto e África do Sul.
[3] O Conselho de Segurança é composto por cinco membros permanentes (França, Reino Unido, Estados Unidos, Rússia e China) e, desde 1965, dez membros não permanentes eleitos por dois anos pela Assembleia Geral. Estes últimos são renovados, metade em cada ano, tendo em conta a representação dos continentes.
[4] OUA, AHG/decl.3 (XXXIII), Déclaration sur la réforme du Conseil de sécurité, 33ª Sessão Ordinária da Conferência de Chefes de Estado e de Governo, Harare, Zimbabwe, 4 de Junho de 1997.
[5] Baseado numa “repartição geográfica equitativa”, o comité inclui: o Gana, o Níger, a Nigéria e o Senegal (África Ocidental), os Camarões, o Congo, e o Gabão (África Central), o Uganda, o Ruanda e a Tanzânia (África Oriental), a Angola, o Botswana e o Zimbabwe (África Austral), e finalmente a Argélia e a Líbia (Norte de África).
[6] Para a composição do painel, ver http://www.un.org/french/reform/highlevelpanel.html.
[7] UA (2005), Ext./EX.CL.12(VII), Position commune africaine sur la reforme des Nations unies, 7ª Sessão Extraordinária do Conselho Executivo, Adis-Abeba (Etiópia), 7-8 de Março de 2005, p. 10.
[8] Benim, Senegal, Congo-Brazzaville, Chade, Djibuti, Etiópia, Botswana, África do Sul, Argélia e Líbia – e o presidente do Conselho Executivo (Nigéria), o presidente da Comissão (Alpha Oumar Konaré) e o presidente do Consenso de Elzuwini (Gana).
[9] Jean-Emmanuel Pondi (dir.), L’ONU vue d’Afrique, Maisonneuve et Larose, Paris, 2005.
[10] Bardo Fassbender “Pressure for Security Council Reform”, David M. Malone (dir.), The UN Security Council. From Cold War to the 21st Century, Lynne Rienner Publishers, Londres, p. 342.
[11] Jean-Christophe Servant, La Chine à l’assaut du marché africain, Le Monde diplomatique, Maio de 2005.

Delphine Lecoutre
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/africa/africa027.htm

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