quarta-feira, novembro 01, 2006

Os xiitas divididos entre Teerão e Bagdade

A vitória da lista apadrinhada pelo ayatollah Sistani nas eleições legislativas iraquianas fez surgir o medo de uma “ameaça xiita”. No entanto, os debates no interior das comunidades xiitas reflectem antes do mais uma grande diversidade religiosa e política.

Desde a vitória eleitoral, ocorrida em 30 de Janeiro de 2005, da lista de coligação iraquiana apadrinhada pelo grande ayatollah Seyyed Ali Sistani, um espectro obceca os palácios, as embaixadas e alguns media do mundo árabe: O “crescente xiita”. O seu território vai dos cumes do monte Líbano às montanhas do grande Khurasan, no Nordeste do Irão, passando pela Mesopotâmia, pelo litoral do golfo Pérsico – nomeadamente a região oriental e petrolífera da Arábia Saudita – e pelo planalto iraniano. Este espantalho nasceu em laboratórios de estudos estratégicos, essencialmente americanos. Aliado objectivo ou suposto dos inimigos de outrora, este “poder xiita” surge na galeria já bem abundante dos inimigos a combater, das ameaças a esconjurar e das conspirações que põem em desvario as férteis imaginações desta região do mundo.

E no entanto, a simples observação, mesmo rápida, do que ali se passa, em particular do poder religioso estabelecido em Teerão, incita o observador a pôr de lado qualquer generalização apressada, para melhor apreender a diversidade do xiismo no Médio Oriente.

É verdade, por exemplo, que os xiitas reivindicaram uma melhor representação no Iraque, no Líbano e, de outra maneira, no Bahrein. Mas nisso temos de ver a exigência de populações maioritárias, durante muito tempo negligenciadas, ou até sujeitas a vexames, para quem os elos e estruturas religiosos constituem o cimento e a ossatura da sua coesão comunitária.

Na Arábia Saudita é diferente: mobiliza-se uma religião minoritária, reprimida como herética e privada dos seus direitos e liberdades fundamentais. O mesmo se passa no Paquistão e no Afeganistão, mas aqui com um factor suplementar: tomando como alvo o particularismo religioso xiita denunciado como uma heresia, o activismo fundamentalista sunita que se reclama do wahabismo acabou por reforçar o elo comunitário xiita. Muito diferente é a situação no Irão, onde está a decair o poder autoritário resultante da revolução de 1979 e da guerra contra o Iraque (1980-1988), doravante confrontado com uma sociedade cada vez mais contestatária [1].

NO IRÃO, O “GUIA” CONTESTADO

Aquando da sua viagem a Paris, em Abril de 2005, o presidente iraniano Mohammad Khatami não hesitou em constatar o insucesso da sua política de reformas, que visava pôr a República Islâmica no caminho da transição democrática. Afirmou ele então que «um poder religioso não é reformável no sentido da democracia sem uma nova leitura democrática da religião e das suas relações com o sufrágio universal». Extraído da «história do cristianismo e da Igreja», este ensinamento, precisou Khatami, está «também comprovado na história do islão sunita, mais inclinado ao legitimismo e ao funcionalismo dos religiosos». Acrescentou, com certo despeito, que graças à sua experiência tinha chegado à mesma conclusão «no respeitante à religião xiita, a qual, por ser mais contestatária do poder marcado pela usurparão original e em fusão com a ideia da justiça, tinha a ilusão de poder escapar a esta regra». E reconheceu, por último, que em qualquer sistema político que se reclame duma legitimidade transcendente, uma parte dos defensores do poder «pode bloquear toda a mudança democrática a pretexto de defender o carácter sagrado [que estes] conferem a toda uma série de tradições e privilégios».

Os oito anos da tumultuosa presidência de um dos mais leais servidores da República Islâmica tiveram pelo menos o mérito de acabar com uma ilusão. No limiar do 25º aniversário da vitória da Revolução e do 9º aniversário da sua eleição para a presidência, o desencanto perante os homens no poder em Teerão ultrapassa muito as fileiras duma juventude desiludida, confrontada com o desemprego e privada das liberdades fundamentais, chegando ao topo do Estado e até da hierarquia xiita. Paradoxalmente, beneficiou Mahmud Ahmadinejad, que soube canalizar em seu proveito a vontade de luta contra a corrupção (simbolizada por Hachemi Rafsanjani) e por uma sociedade mais justa.

Eis­‑nos bem longe da utopia original do Estado islâmico xiita; nos anos de 1970, por proposta dos ulemas xiitas libaneses e do fundador do partido Al-Daawah iraquiano, o ayatollah Mohammad Bagher Sadr [2] redigira uma «nota preliminar a propósito da Constituição da República Islâmica no Irão» e enviara-a ao ayatollah Ruhollah Khomeini, nessa altura ainda exilado em Paris. Esse texto formulava um primeiro esboço codificado do projecto constitucional do poder clerical xiita. Em conformidade com a teoria do velayat-e faqih – textualmente, o “governo do douto” [3] –, este poder não reconhecia fronteira nenhuma nem nacionalidades, subentendendo­‑se que dominava toda a umma (comunidade dos crentes) muçulmana no seio dum Estado islâmico universal que devia reinar até ao regresso do imã encoberto [3].

No cume do poder encontrava-se o marjaa, referência e fonte de imitação dos fiéis; representante do imã encoberto, ele devia encarnar o Estado em todos os seus aspectos, usufruir o monopólio de todos os seus atributos e exercer estes últimos por intermédio dos membros do clero e dos hawzés, as escolas e seminários religiosos. Esta teoria, nova na sua versão política, foi enxertada no projecto constitucional depois da revolução, embora tenha sido minoritária, criticada ou rejeitada pelos partidários da tradição xiita como o grande ayatollah Khoi, estabelecido em Najaf, liberais como o ayatollah Shariatmadari, de Qom, ou homens de esquerda como o ayatollah Taleqani, de Teerão. Teve como resultado um Estado quimérico, a “República Islâmica”, cujos dois termos, “República” e “Islâmica”, nunca deixaram de ser antagónicos [4].

Paralisado pelas convulsões revolucionárias, subjugado pelo ofuscante espectáculo do sequestro de reféns da Embaixada americana (1979), e sobretudo tolhido nas trincheiras da sangrenta guerra de oito anos desencadeada pelo Iraque do presidente Saddam Hussein, o movimento democrático iraniano não pôde impedir que uma oligarquia de predominância clerical se apoderasse totalmente do poder [5]. Erigido em dogma supremo da ideologia oficial, o velayat-e faqih apresentou-se como a pedra angular da nova construção da fé política. E os slogans oficiais condenaram todos os seus detractores às penas do inferno, ao lado do grande e do pequeno Satã. Ainda hoje, em qualquer ajuntamento público, a multidão continua a entoar a litania dos famosos slogans que dizem «Morte à América! Morte à Inglaterra! Morte a Israel! Morte a Saddam!», concluindo com: «Morram àqueles que se opõem ao velayat-e faqih!»

O ayatollah Khomeini sempre considerou que a sua legitimidade primeira, religiosa, tinha origem no seu estatuto de marjaa. Conseguira estabelecer solidamente este estatuto, primeiro nos hawzés de Qom, depois nos de Najaf (durante o seu exílio, entre 1964 e 1978), assegurando todos os dias os ofícios religiosos e dirigindo seminários teológicos que formaram milhares de clérigos, que por seu turno se tornaram influentes. Foi essa predominância do religioso que o levou, no seu testamento, a pedir que o ayatollah Golpayegani, o grande marjaa de Qom, sem qualquer lugar na hierarquia estatal, presidisse à oração fúnebre do seu falecimento.

A morte do ayatollah Khomeini, poucos meses após ter sido afastado o ayatollah Montazeri – o único entre os seus companheiros da aventura revolucionária que podia ter pretensões ao estatuto de marjaa –, confrontou os seus sucessores com um grave problema de legitimidade religiosa. O triunvirato composto por Ali Khamenei, Ali Akbar Rafsanjani e Ahmad Khomeini, que ficou na chefia do Estado durante os últimos meses da sua doença, modificou à pressa a Constituição: para alguém assumir a função do velayat-e faqih, já não era indispensável ser marjaa. Ou seja, o primeiro Estado clerical xiita, perante as dificuldades da sucessão, abandonava a primazia do religioso em proveito do político. Na realidade, subalterno na hierarquia religiosa, o sucessor de Khomeini, Ali Khamenei, dificilmente podia ter pretensões ao estatuto de marjaa, condição indispensável para que fosse aceite a sua preeminência sobre as escolas e as instituições clericais.

Apesar disso, foram atribuídos ao novo guia poderes absolutos, tanto nas questões políticas como nas religiosas. A fé total e sem falhas depositada na sua pessoa tornava-se ao mesmo tempo condição da cidadania e motivo de inquisição. Apesar destes trunfos e de consideráveis meios financeiros, o ayatollah Ali Khamenei nunca conseguiu impor-se como autoridade suprema, nem no Irão nem no restante mundo xiita, quer entre os fiéis, quer na hierarquia religiosa. Em suma, separaram-se de novo a legitimidade religiosa e a do Estado, cada qual com as suas exigências próprias e os seus pressupostos, muitas vezes contraditórios. A distribuição do dinheiro e dos privilégios num Estado que vive dos seus rendimentos, cujo orçamento é essencialmente sustentado pelos rendimentos do petróleo, torna-se desde logo o principal meio de comprar os favores duma parte da hierarquia religiosa, a priori dócil. Um tal favoritismo engendrou uma nova categoria de oportunistas do Estado, chamados agha zadeh (filhos de ayatollah), figuras de proa das crescentes desigualdades sociais.

Esta confusão entre o político e o religioso levou o xiismo iraniano a funcionalizar o clero e a estatizar o seu funcionamento, como no mundo sunita. Anunciou o fim da autonomia do clero xiita, baseada no seu financiamento pelas dádivas dos fiéis, autonomia que o clero sunita lhe invejava. Por outro lado, consciente da sua fraqueza, o guia obstinou-se a reforçar os seus atributos estatais, em primeiro lugar o seu controlo directo e diário dos órgãos militares e de segurança, passando uma grande parte do tempo nos quartéis e assistindo aos inúmeros desfiles e inspecções militares. Incapaz de aspirar à autoridade religiosa graças à qual o seu mentor tinha abatido a monarquia do Xá, acumulou poderes que o assemelharam a um chefe do Estado de antes da revolução. Uma grande parte da população não hesitou aliás em chamar-lhe, anedoticamente, «Seyyed Ali Xá» – e não «grande ayatollah».

Na véspera do centenário da primeira revolução iraniana de 1906, que tentou pôr fim ao poder monárquico absoluto, a oposição do movimento democrático focalizou-se na figura do guia e na sua omnipotência. Se o eleitorado elegeu Mohammed Khatami duas vezes para a presidência, foi para combater esse absolutismo. E se o desencanto popular é tão grande contra os reformadores, apesar das conquistas obtidas pela sociedade civil durante a governação de Khatami, foi justamente devido à sua incapacidade de conter os excessos do velayat-e faqih: o guia, nomeado vitaliciamente, concentra a maior parte dos atributos do Estado, escapa a qualquer controlo democrático e compra cada vez mais os seus apoios entre as forças armadas, os aparelhos de controlo e repressão, bem como nos órgãos de propaganda.

Além disso, a grande maioria dos religiosos de base distancia-se da própria instituição do velayat-e faqih. E com toda a razão. Por um lado, porque lhes tiraram os respectivos privilégios e favores; por outro lado, porque a população, descontente com a deterioração das suas condições de vida, se nega cada vez mais a confiar num clero suspeito de beneficiar do erário do Estado e a dar-lhe uma contribuição financeira. De tal maneira que a oposição democrática e a sociedade civil encontram a seu lado muitos clérigos e religiosos, oriundos não só do quietismo tradicional de uma grande parte dos ulemas xiitas, mas também do radicalismo revolucionário, adepto fervoroso, nos primeiros anos, do velayat-e faqih; como o ayatollah Montazeri, eles já não hesitam em reconhecer o erro cometido e exigem uma revisão desta teoria para limitar as prerrogativas do guia às questões estritamente religiosas [6].

No Iraque, o poder do Baas, reclamando-se do nacionalismo, mostrou-se impiedoso perante o clero xiita árabe, o qual, com as suas grandes figuras da década de 1970, tais como Seyyed Mohsen Hakim e Seyyed Mohammad Bagher Sadr, não hesitara em desafiá-lo. Estes homens corriam muitas vezes o risco de serem liquidados fisicamente, e os religiosos não árabes estabelecidos no Iraque de serem expulsos e desterrados – apesar dos seus muitos anos de residência no Iraque.

Mas a importância dos centros religiosos xiitas e o seu enraizamento na Mesopotâmia (com as cidades santas de Najaf e Karbala), a irradiação dos seus hawzés e escolas religiosas, deram também um campo de acção ao poder iraquiano. Este, por conseguinte, fez um jogo subtil relativamente a alguns grandes ayatollahs não árabes, nomeadamente os que eram de origem iraniana. Foi assim, apesar das tensões ocasionais, que se instaurou um modus vivendi entre Bagdade e o grande ayatollah de origem iraniana Seyyed Abolghassem Khoi: quietista, este não dissimulou a sua oposição ao activismo político dos religiosos, e sobretudo à teoria do velayat-e faqih. A sua principal preocupação era a protecção dos hawzés da cidade santa de Najaf, cuja influência e irradiação milenares, mais ou menos toleradas mesmo sob o domínio otomano, estavam ameaçados pelo autoritarismo laicizante do Baas. Najaf sofria também com a rivalidade da cidade santa de Qom, no Irão, a qual, graças às larguezas do Estado, oferecia mais vantagens e perspectivas aos alunos e aos professores. De tal modo que a independência de Najaf em relação aos poderes estabelecidos em Teerão ou Bagdade se tornou a condição indispensável do seu funcionamento, pressupondo um jogo de equilíbrio entre os dois poderes inimigos.

Adepto da mesma tradição e muito ligado ao esforço empreendido pelo ayatollah Khoi, o ayatollah Seyyed Ali Sistani ficou a dever a sua ascensão ao topo da hierarquia religiosa xiita – reconhecida no Iraque, no Irão e nas outras comunidades xiitas do mundo – ao facto de ter mantido estritamente a mesma política. Para salvaguardar os interesses a longo prazo do xiismo e das suas estruturas perante dois Estados com preocupações nacionais contraditórias e para manter a sua influência e respeitabilidade entre as populações que viviam nesses Estados, tudo tem de ser posto ao serviço da salvaguarda de uma certa independência. E no caso de esta não permitir demasiadas confusões com o Estado, será então preciso proibir que a hierarquia religiosa e aqueles que dela se reclamam tenham acesso a qualquer exercício directo do poder político. Foi assim que o ayatollah Sistani, como o seu antecessor Khoi, retomou o caminho da grande tradição xiita de independência em relação ao poder terreno, dessacralizado, considerado um mal menor na expectativa escatológica do regresso do imã encoberto e do advento do Poder do Messias infalível.

Ao mesmo tempo que a cidade santa de Qom, centro das escolas e seminários religiosos xiitas no Irão, teve de suportar o facto de ficar sob tutela das autoridades políticas e de se ver privada das dádivas de numerosos fiéis, a sua irmã mais velha na história do xiismo, a cidade santa de Najaf, voltou a ter o seu lugar de outrora, graças à autonomia e à liberdade de crítica que reconquistou desde a queda de Saddam Hussein. É verdade que está longe de dispor dos meios que o Estado iraniano põe à disposição de Qom, mas a extraordinária ascensão de Seyyed Ali Sistani, apesar de ainda ser titular dum passaporte iraniano, unicamente graças à sua influência espiritual, derrubou o dinamismo religioso interno do xiismo. Goza doravante de uma autoridade religiosa suprema não apenas sobre Najaf mas sobre todo o mundo xiita, nomeadamente no Irão, onde a sua influência, popularidade e os meios financeiros à sua disposição ultrapassam, de longe, os dos seus rivais e adversários.

COMPROMISSO NO IRAQUE

A tradição milenar do quietismo xiita vingou-se assim do activismo revolucionário da década de 1970, cansado pela usura do poder e pelas necessidades de gestão duma sociedade moderna. Logo nas primeiras semanas subsequentes à queda do regime baasista, apesar dos atentados e da insegurança, as cidades santas de Najaf e Karbala foram de novo abertas aos peregrinos iranianos, que ali encontram mestres espirituais mais próximos do seu messianismo escatológico. No seu imaginário, o velho mestre de Najaf representa a bem dizer a antítese dos déspotas no poder no Iraque. O marjaa xiita passa assim a ter de novo o seu papel tradicional de antipoder, oferecendo refúgio aos fiéis face aos mulás usurpadores.

O modo de acesso ao poder das forças xiitas no Irão e no Iraque é também muito diferente. Em Teerão, uma revolução popular levara a melhor antes de pôr o seu destino nas mãos de um chefe carismático, aureolado pela vitória contra a monarquia; em Bagdade foi necessária a intervenção militar dos Estados Unidos e dos seus aliados para derrubar a ditadura, abrindo do mesmo passo o caminho a centenas de partidos e grupos políticos de diversas origens.

O movimento xiita iraquiano teve pois de trabalhar com outras correntes políticas e de aceitar os compromissos que o ocupante lhe impôs. E embora a habilidade táctica do ayatollah Sistani lhe tenha permitido unir os ulemas xiitas e ganhar as eleições de Janeiro, a complexa composição desta comunidade e das suas representações políticas e religiosas obriga-o a um jogo de equilíbrio e a um funcionamento pluralista mais próximo do jogo democrático. Por último, o mosaico comunitário iraquiano e a necessidade de alianças com os representantes de outras comunidades, como os curdos ou as populações sunitas, impõem a todas as correntes do xiismo iraquiano – mesmo às más extremistas – que moderem as suas exigências islamitas.

Deste modo, o primeiro-ministro Ibrahim Al-Jaafari, dirigente do Al-Daawah, e os ministros oriundos do Conselho Supremo da Revolução islâmica Iraniana (CSRH), parecem ter renunciado ao seu sonho; têm de respeitar a instauração dum Estado federal com base num compromisso democrático, para que todas as componentes da sociedade se sintam suficientemente representadas e se evitem divisões comunitárias e a tentação do regresso a um Estado autoritário, com a bênção do ocupante.

Em certas ruas principais dos bairros xiitas de Beirute e das cidades do Sul do Líbano, grandes retratos do guia iraniano, o ayatollah Khamenei, com o pomposo título de valyyé amre moslemine (“o tutor encarregado de governar todos os muçulmanos do mundo”), exprimem a pretensão de restabelecerem o califado em todo o mundo muçulmano [7]. Mas a tentativa de impor a todos os fiéis o guia iraniano como marjaa, fonte de imitação, teve ainda menos êxito no Líbano do que no Irão. A figura de proa dos religiosos xiitas libaneses, o ayatollah Hossein Fadlallah, não escondeu a sua irritação perante os desígnios hegemónicos do guia iraniano, criticando a teoria do velayat-e faqih, insistindo na necessidade de salvaguardar a independência da instituição do marjaa e de fazer respeitar a livre escolha pelos fiéis da sua fonte de imitação.

A direcção do Hezbollah, tributária das larguezas financeiras de Teerão, apregoa as suas boas relações com o poder iraniano, mas esta organização é atravessada pelos virulentos debates teológicos que ocorrem em Qom e Najaf a respeito da legitimidade da teoria do velayat-e faqih, bem como pelos debates políticos no seio do poder iraniano. Além disso, o Hezbollah desenvolveu numerosas actividades sociais e culturais, desempenhando um crescente papel político na cena libanesa, como acaba de ser confirmado pelas eleições legislativas. É certo que até há cinco anos os imperativos da luta contra o ocupante israelita impunham uma união total da comunidade xiita por trás do Hezbollah e da resistência. Mas, desde a libertação do Sul do Líbano, essa unanimidade ganha fendas, por força da diversidade interna dos xiitas, da antiguidade de outras organizações – religiosas, como o Conselho dos ulemas xiitas, ou políticas, como o Amal – e da necessidade de compromissos no seio do mosaico libanês.

Em tais condições, a teoria do velayat-e faqih, por confundir de forma extrema a política e o religioso, longe de congregar todas as comunidades xiitas do mundo em torno dum projecto de Estado islâmico, constitui agora um pomo de discórdia. Até mesmo no Irão, onde nasceu, é contestada por um movimento amplo e dinâmico, em nome de uma certa separação entre os poderes político e religioso. Uns buscam a salvação na religião, os outros a libertação na política.


[1] Ahmad Salamantian, Paradoxo iraniano, Le Monde diplomatique, Julho de 2005.
[2] Assassinado em 9 de Abril de 1980, juntamente com grande parte da sua família, pelos serviços de Saddam Hussein.
[3] Palavras para compreender, Le Monde diplomatique, Julho de 2005.
[4] Ahmad Salamantian e Simine Chamlou, “Les dix années de la révolution islamique en Iran”, Revue du tiers­‑monde, n.º 123, Paris, Julho-Setembro de 1990.
[5] Ver, do mesmo autor, “La révolution iranienne broyée par ses contradictions”, Le Monde diplomatique, Junho de 1993, e “L’imam Khomeiny se retourne contre les conservateurs”, Le Monde diplomatique, Junho de 1988.
[6] Éric Rouleau, “Un enjeu pour le monde musulman; en Iran, islam contre islam”, Le Monde diplomatique, Junho de 1999 [ed. portuguesa: “No Irão, islão contra islão”].
[7] O último califado (poder soberano sobre o mundo muçulmano no seu conjunto) foi abolido em 1924 por Mustafá Kemal, dito Ataturk, fundador da República turca laica sobre as ruínas do Império Otomano.
Ahmad Salamatian
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/moriente/mo074.htm

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