Como é habitual em períodos de eleições presidenciais nos EUA, o debate que opõe os temas acerca do comércio livre e do proteccionismo aumenta de tom com a aproximação do próximo processo eleitoral — desta vez com a aparência de debate sobre "outsourcing". Tal como no passado, a maioria dos economistas nos EUA está de acordo em que o comércio livre é o "caminho recto e estreito" que todos nós devemos adoptar, apesar dos apelos ao proteccionismo. Curiosamente, poucos destes economistas parecem perceber que os EUA, actualmente, não são o paraíso do comércio livre que fingem ser. No século XIX, quando a maioria das indústrias dos EUA tinha um nível de desenvolvimento inferior ao das suas contrapartes europeias, o país dava como certo que o comércio livre não era do interesse nacional. Isto torna-se evidente ao analisar as notas americanas que têm representadas as efígies de políticos cujas práticas teriam hoje sido severamente criticadas pelo Banco Mundial e pela OMC. Na nota de um dólar encontra-se o primeiro presidente, George Washington. Ele optou por usar fatos de fabrico americano, em lugar dos fatos britânicos de melhor qualidade, durante a sua cerimónia de posse — uma potencial violação das regras propostas pela OMC no sentido da transparência das aquisições governamentais. Nas já raramente encontradas notas de dois dólares temos Thomas Jefferson que se opôs fortemente ao regime de protecção de patentes. Ele defendia que as ideias são "como o ar" e por isso não deveriam ser posse de ninguém. Durante os cerca de cem anos anteriores à Segunda Guerra Mundial, a economia dos EUA era, em todo o mundo, a mais fortemente protegida. Na realidade, Abraham Lincoln, um proteccionista bem conhecido, e cuja efígie aparece na nota de cinco dólares, aumentou as tarifas após a guerra civil para um nível nunca, nem antes nem depois disso, visto nos EUA. Alexander Hamilton, o primeiro secretário do Tesouro, aparece na nota de dez dólares. Hamilton foi a pessoa que inventou a doutrina denominada "indústria nascente", a qual advogava que os países menos desenvolvidos precisam de proteger as suas indústrias contra a competição de países mais desenvolvidos. Apesar de Benjamin Franklin, na nota de cem dólares, não ter apoiado o argumento de indústria nascente de Hamilton, ele defendia que uma forte protecção seria uma medida efectiva contra o "dumping social" dos então países de baixos salários na Europa. Na nota de cinquenta dólares temos Ulysses Grant, o herói da guerra civil que se tornou presidente. Desafiando a pressão britânica para a adopção do mercado livre, ele observou que "dentro de 200 anos, quando os EUA tiverem retirado do regime de protecção comercial tudo aquilo que este pode oferecer, então adoptarão também o mercado livre". E chegamos a Andrew Jackson na nota de vinte dólares. À primeira vista, Jackson, defensor famoso de um governo reduzido, pode até parecer ajustar-se à doutrina ortodoxa da actual política económica. Porém, ele não teve muito êxito na protecção dos direitos de propriedade. Afinal de contas, foi quem expulsou muitos dos nativos americanos das suas pátrias. Além disso era hostil aos investidores estrangeiros anulando o primeiro banco central de facto do país, o (segundo) Banco dos EUA, parcialmente com o argumento de que era maioritariamente possuído por investidores estrangeiros (principalmente britânicos). Assim, fazendo uma análise a partir da moeda americana, os mais venerados políticos da história dos EUA parecem ser precisamente aqueles que adoptaram políticas que a actual corrente ortodoxa rejeita veementemente. No entanto, os americanos não têm um monopólio do duplo padrão, dado que virtualmente todos o países ricos — da Inglaterra de hoje até à Coreia e Taiwan — usam tarifas protectoras e subsidiadas para incentivar o seu próprio desenvolvimento industrial. Esses países também não promoveram a protecção dos direitos da propriedade intelectual, especialmente dos estrangeiros — a Suíça e os Países Baixos não possuíam legislação que regulasse as patentes até às primeiras décadas do século XX. A partir do momento em que se tornaram ricos, estes países começaram a exigir aos países mais pobres a prática do comércio livre e a introdução de instituições "avançadas" como seja a aceitação de legislação para protecção de patentes. Friedrich List, o grande economista alemão do século XIX, comparou tal exigência à "retirada brusca da escada" pela qual os países ricos subiram até ao topo, negando assim aos países mais pobres a possibilidade de se desenvolverem. Depois da Segunda Guerra Mundial, graças às políticas decorrentes dos sentimentos de culpa pós colonial e da guerra-fria, não se verificou tão insistentemente a tal "retirada da escada". Porém, durante as passadas duas décadas, os países em desenvolvimento estiveram sob uma enorme pressão no sentido da aceitação do comércio livre, da abertura dos seus mercados de capitais, e da implementação das "melhores práticas" como seja a legislação sobre patentes. Os países ricos raramente reconhecem que fazendo essa pressão eles estão a pregar exactamente aquilo que não fizeram nas suas práticas. O resultado foi uma forte desaceleração do crescimento económico dos países em desenvolvimento. O crescimento do rendimento per capita nos países em desenvolvimento foi reduzido à metade: dos 3% anuais durante o período compreendido entre as décadas de 60 e 80, para 1.5% durante o período de 80 a 2000. A esta luz, é necessária uma reavaliação radical das práticas ortodoxas actualmente em curso. Em termos práticos, isto significa o reescrever as regras do comércio internacional de modo a que os países possam adoptar políticas e instituições mais favoráveis às suas condições. O registo dos últimos vinte anos sugere que isto pode dar aos países em desenvolvimento mais oportunidade para o o crescimento e o desenvolvimento.
Ha-Joon Chang
http://resistir.info/
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